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Superior ao amor da espécie é o amor filosófico, aquele que, em vez de gerar uma nova vida, faz a alma dar à luz o bem e a beleza, não apenas em si, mas também exteriormente, na medida em que comunica esse bem e essa beleza compartilhando-os publicamente. À pederastia Platão opõe não a heterossexuali- dade, de que jamais faz nenhuma “apologia” explícita, senão em um nível inferior como algo correto e conforme à Natureza, mas uma autêntica pedagogia, a casta e virtuosa relação amo- rosa entre mestre e discípulo. Afinal, a pederastia grega era uma prática pedagógica institucionalizada, e é precisamente enquanto pedagogia que é repensada e recusada por Platão. Semear nas almas é superior a semear em úteros, não sendo à toa que, em outro diálogo, A república, a família compreende todo o Estado, a maternidade e a paternidade não geram filhos para os indivíduos genitores, mas para a sociedade que os nutre, protege e educa – trata-se de uma relação pública de amor na qual a razoabilidade das uniões eugênicas deve substituir as paixões individuais. A sociedade, afinal, é o modo como a razão organiza a espécie humana. Quando se trata da relação amorosa

privada, Platão, no Fedro em especial, chega a se dar o trabalho de

formular discursos sobre as mesquinharias dos amores movidos por paixões, amores estes que sempre terminam por envolver negócios, trocas e disputas, alegrias superficiais e ressentimentos, até mesmo revanchismo. O amor que não busca o prazer, por sua vez, não se ressente de vê-lo frustrado – é o exemplo socrático, ao menos à primeira vista ou como queria anunciá-lo Platão. Trata-se, no Fedro, de uma crítica real dos “amores possíveis” entre os humanos, os amores do dia a dia que se vê pelas ruas e, hoje, estampados em revistas. Tais amores não são autênticos para ele. O “nobre amor” – que em grego soaria como bom e belo amor – não admite relação com a ideia de que “amantes contendem com os seus amados por causa de ninharias, que os invejam e os prejudicam” (243 c) tal como defenderia Lísias no discurso exposto no diálogo Fedro (PLATÃO, 1960, p. 215)14. Pensar

assim do amor – como muitos pensam hoje em dia – é, segundo Platão, pela boca de Sócrates (242 e) (PLATÃO, 1960, p. 213.), pecar contra Eros, um ato de impiedade, pois nenhum deus é mau nem promove ou inspira o mal, tanto menos o deus do amor – sim, aqui Eros é um deus –, sempre voltado para a beleza, sabendo-se que toda maldade é feia.

Sobre esses pretensos amores que, na realidade, não passam de barganhas de prazer por prazer, há ainda no Banquete uma ilustração que nos mostra que Alcibíades, elogiando Sócrates em vez de elogiar o amor, quer de fato destratá-lo por mero ressentimento, por mero orgulho ferido. Por outro lado, o mesmo discurso de Alcibíades, mantendo-se verdadeiro na dor que exprime, aparece como testemunho, em primeiro lugar, da força do caráter de Sócrates; em segundo lugar, de seu comedimento e possível recusa da pederastia; e, finalmente, como prova da estima do mestre pelo caráter espiritual do bem e da beleza verdadeiramente dignos de se amar. Tudo isso se

14 Lísias também dará nome a outro diálogo sobre o amor, sendo aí tematizada, mais especificamente, a amizade.

reconhece na seguinte ironia relatada por Alcibíades. Quando este conta sua investida sobre Sócrates, este último lhe teria dito, mediante os exaltados elogios do jovem amante:

Caro Alcibíades, é bem provável que realmente não sejas um vulgar, se chega a ser verdade o que dizes a meu respeito, e se há em mim algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza verias em mim, e total- mente diferente da formosura que há em ti. Se então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar beleza por beleza, não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao contrário, em lugar da aparência é a realidade do que é belo que tentas adquirir (218 d-219 a) (PLATÃO, 1983, p. 49).

O trecho relatado por Alcibíades fala por si mesmo, mas ainda assim é importante destacar uma breve série de considerações. Apesar de sua conhecida (e irônica) modéstia, Sócrates concede que Alcibíades, estando correto em seus elo- gios, demonstra ter um espírito elevado o bastante para querer unir-se e aprender junto a um bom caráter – o bem e a beleza almejados pelo jovem são espirituais. Isso condiz perfeita- mente com o “lado nobre” do semideus Eros cuja natureza e origem foram ensinadas por Diotima a Sócrates. Por outro lado, Alcibíades se trai julgando que sua beleza física, sua riqueza material e sua influência política, bens de que Sócrates é noto- riamente desprovido, seriam capazes de seduzi-lo e trazê-lo para junto de si. Ora, isso supõe serem os bens do primeiro mais valiosos do que os do segundo, tornando sua proposta pretensamente irrecusável, pois, caso contrário, não teria sen- tido em ofender-se mediante a recusa, muito menos em tê-los oferecido como vantajosa contrapartida. Com isso, Alcibíades revela sua mediocridade e, possivelmente, a falsidade de seus elogios aduladores, cuja intenção mais profunda seria antes ter o respeitado Sócrates apenas para si. Trata-se, desta vez, do lado vulgar e cobiçoso do Eros descrito por Diotima. Alcibíades, portanto, julga-se melhor do que é, e acredita poder acrescentar vantagens àquelas que já detém. Aliás, é muitíssimo comum a amantes desse tipo estimar tão alto seus sentimentos e dons

que a recusa lhes parece intolerável, sinal de baixeza, crueldade, insensibilidade ou desatenção por parte do amado, motivação para as mais patéticas “provas de amor” como se amor fosse algo que se comprasse. Ironicamente, contudo, Alcibíades não é de fato tão “vulgar”, pois o que lhe falta e o que pretende receber do amado é a verdadeira vantagem que não possui, mas cujo valor ele é capaz de reconhecer a ponto de querer “comprar”: bens indestrutíveis em troca de bens perecíveis.

Essa ambígua sinergia, porém, não se deve buscar através de uma desequilibrada barganha com o outro, como que ofe- recendo frutas em troca de ouro, mas produzida em si mesmo, tal como podemos ler na prece final de Sócrates, que grifo, no

Fedro: “Dai-me a beleza da alma, a beleza interior e fazei com

que o meu exterior se harmonize com essa beleza espiritual”, ao que diz Fedro: “Pede para mim a mesma cousa, pois os amigos

tudo devem ter em comum” (PLATÃO, 1960, p. 262-263, grifo nosso).

Lemos também em Aristóteles (1380 b-1381 a), no quarto capítulo do livro II da Arte retórica:

Que amar [philein] seja então definido como querer para alguém as coisas que acreditamos serem boas, por ele e não por nós, e ocasioná-las tanto quanto estiver em nosso poder. [...] segue-se necessariamente que é um amigo [philon] aquele que compartilha nosso prazer na fortuna [synedomenon tois

agathois] e nosso pesar na aflição, por nossa causa e não por

qualquer outra razão. [...] E são amigos aqueles que têm as mesmas ideias de bem e mal e amam e odeiam as mesmas pessoas, uma vez que necessariamente querem as mesmas coisas; por conseguinte, aquele que quer para outro o que quer para si mesmo parece ser o seu amigo (ARISTÓTELES, 1926, p. 192/193).

Antes que se levante objeções à exigência de que amigos devem pensar, sentir e querer o mesmo, deve-se atentar para o fato de que isso é condição para se poder verdadeiramente querer para o outro e pelo bem do outro o que se quer para si e pelo próprio bem. Caso contrário, não se é amigo, na medida em que se quer para o outro não o seu bem como se fosse o meu,

mas o meu como se fosse também o seu; ser amigo implica um acordo de almas, não uma adequação. Em síntese, amar consiste em querer a felicidade do outro, não apenas a própria. Trata-se, claramente, porém, de uma virtude política, de uma amizade de caráter público apenas possível entre homens livres e iguais a que posteriormente se dará o nome de “fraternidade”. Vale notar que Aristóteles dedica-se especialmente à philia, não tematizando outros tipos de amor senão acessoriamente e como tipos de philia, um sentimento favorável a algo ou a alguém.

Para Platão (278 b), portanto, o amor erótico mais elevado é o desejo de gerar na alma (PLATÃO, 1960, p. 261). O amor nobre tem a ver com a alma, sim, mas, como se lê no Fedro, isso não implica raciocínio ou maquinação de vantagens ou desvantagens; pelo contrário, trata-se de um certo desvario divinamente inspirado. Amor não envolve troca ou negócio; é loucura. Isso somente causa estranhamento vindo de Platão se se esquece de que se trata aí de Eros. Porém, o Eros impetuoso não mais se assimila ao êxtase dionisíaco, mas ao êxtase apolíneo que profere oráculos de sabedoria em Delfos como aquele da célebre inscrição “Conhece-te a ti mesmo”. Desta vez, não é mais a Diotima que Sócrates recorre como a uma sábia alegoria, mas a seu próprio daimon, que lhe dá a palavra final sobre o amor. É agora o próprio Sócrates quem se encontra possuído pelo apolíneo. Eis a missão do amor socrático, a missão da Filosofia: libertar a alma. Portanto, a assimilação platônica de eros pela divina philia tem um significado profundo que confere a esta uma nobre distinção frente às formas mais vulgares de amizade, sendo muito corretamente observado por Irley Franco (2008, p. 64, n. 5), que “é apenas no que diz respeito à intensidade que Platão distingue Eros de philia”. O eros filosófico é, na verdade, a divina philia, amor da contemplação, amor da sabedoria. Sobre essa amizade e o significado de “filosofia” escrevi algumas palavras em minha tese de doutorado, as quais aproveito para reproduzir aqui de maneira que espero não ser exaustiva:

Já no início de A república aparece a oposição entre poder e razão tal como Platão a entende. Sócrates, modelo do filósofo, amigo do saber, do discurso, do logos, é constrangido por Polemarco – cujo nome nos remete a polemos, guerra – a se deter na casa de Céfalo. Ainda que expresso em tom de brin- cadeira, não deve passar despercebido o que diz o discurso do poder quando Sócrates demonstra pretender recusar o convite: “Ora tu estás a ver quantos somos? [...] ou haveis de ser mais fortes do que estes amigos, ou tendes de permanecer aqui” (PLATÃO, 1996, [327 c] p. 2). O próprio veículo de Platão, o diálogo, nos remete à ideia de que o pensamento, de que o próprio logos se faz no jogo discursivo, no caráter dual (dia, dois) de toda con-versa, que não consiste no unilateral e impositivo dizer dos sofistas, mas inclui sua contrapartida: a

escuta. Sócrates não é o modelo de Platão pelo que ensina e pelo

que afirma, mas pelo seu perguntar que nada mais significa do que um querer ouvir, um dar ouvidos à fala, o que também é naturalmente requerido de seus interlocutores. [em nota: O próprio Platão nos leva a esta conclusão em sua Apologia de

Sócrates, 33 a-b] Como prova disto, ao responder a Polemarco

“ainda nos resta uma possibilidade, a de vos persuadirmos de que deveis deixar-nos partir”, recebe imediatamente como resposta: “Porventura seríeis capazes de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvir-vos? [...] compenetrai-vos de que não vos ouviremos” (PLATÃO, 1996, [327 c] p. 2). O apelo de Sócrates à escuta do logos não é ele mesmo escutado. É mais fácil querer falar do que silenciar para ouvir (MORAES, 2011, p. 100).

Cena similar é representada no Fedro (236 c), onde diz o protagonista: “Lembra-te que não sairemos daqui enquanto não tiveres exprimido aquilo de que, segundo disseste, o teu coração está cheio! Estamos sós, num lugar ermo e afastado dos homens, e eu sou o mais forte e o mais moço. Reflete no que te digo! Não me obrigues à violência! Fala! Faze-o voluntariamente, se não preferes falar à força!” (PLATÃO, 1960, p. 203). Aqui, querer fazer falar se sobrepõe ao querer ouvir sob a forma de desafio, como exercício de poder. Voltemos, então, à sequência:

É assim que testemunhamos, nas palavras de Platão, o abismo aberto entre filosofia e poder, entre saber e força, de modo que a polêmica de Platão se volta não apenas contra os sofistas e os poderosos que, pela força surda, condenaram seu mestre à morte, mas contra as consequências de seu discurso unilateral.

Isto deve ser pesado por todos aqueles que criticam Platão, segundo um sociologismo barato, por ter sido um aristocrata defensor de uma elite prejudicada pela democracia, defensor de uma eugenia etc. É pela força que o não-saber se sobrepõe ao saber [– e mesmo] Nietzsche concordaria com isto. Eliminado o livre diá-logo, o discurso que serve à expressão do poder será tão somente um simulacro do logos, como apontará Platão em O sofista (233 a et seq.); não sendo um diá-logo, trata-se de uma fala sem escuta. Tal simulacro, como o Geredete [a falação] de que tratará Heidegger, apela apenas ao interesse

do falante, quando não apenas se impõe ao ouvinte. Isto ainda

dá algo a pensar acerca do menosprezo de Platão, na obra em questão – A república –, pela democracia, onde o livre diálogo é encoberto e desnaturado pela licenciosidade da fala de uma multidão que, enquanto multidão, impõe sua força fatalmente contra si mesma. Não é apenas a “linguagem” da ditadura, mas, sobretudo, e ainda mais, da ausência de pensamento, da negligência e da indigência, o próprio extravio do sentido do falar. Assim, Platão já nos mostra que nem toda liberdade de expressão consiste em liberdade, mas antes e comumente em afirmação de forças. Filosofia não é apenas amizade ao saber, uma “teoria” descolada do real como pretendem os detratores que se ensurdecem diante dela, como se sua prática consistisse na instituição de uma esotérica “Companhia dos Amigos do Saber”, similar àquela dos “filósofos de gabinete”, mas um

fazer entre amigos, pois, do contrário, não há ouvidos que

ouçam. A amizade do saber não consiste apenas na dádiva, mas especialmente na disposição receptiva, de maneira que “do saber” indica uma propriedade do saber ele mesmo, não algo que se lhe acrescenta do exterior, como bem mostra a estru- tura da palavra composta: philo-sophia, a amizade própria ao saber, que não deixa de ser também um saber sobre o sentido da amizade, que não é mera “parceria”. O sábio é amigo; não a sabedoria algo pelo que se nutre o sentimento de amizade, um sentimento que produza isolamento do mundo, seja em uma biblioteca, seja em uma “academia”15. Apenas em um

sentido a Academia pode ser justamente estimada como um 15 Ainda sobre essa compreensão do modo de relação entre amizade e sabedoria expressa na palavra “filosofia”, vale comparar a conver- gência entre o que é dito aqui e o belo parágrafo inicial do artigo de Marcia Sá Cavalcante Schuback (2012b), “Vida privativa ou vida lacunar? Uma possível resposta de Heidegger à fenomenologia da vida de Renaud Barbaras”.

lugar de ouvintes: se [também] os mestres o são. O esoterismo da academia só pode apartar os incapazes de ouvir, pois neles nenhuma academia é possível. Finalmente, a liberdade de expressão exige a companhia da liberdade de escuta, pois escravos não escutam; obedecem. Filosofia é, pois, um saber

de homens livres, entre homens livres e para homens livres –

seu meio é, portanto, para Platão, a exemplo de Sócrates, o diálogo. Não é à toa que, antes de Aristóteles, reconhecendo na dialética a “ciência do filósofo”, Platão (1983, [253 c] p. 176) [no diálogo Sofista] já encontrava na Filosofia a “ciência dos homens livres” (MORAES, 2011, p. 100-101).

A autêntica philia, que agora vemos substituir o vulgar erotismo dos sentidos na condição de nobre erotismo do espírito, não consiste tampouco naquela afinidade eletiva que costumamos chamar de amizade, ou seja, o companheirismo entre parceiros de atividades meramente prazerosas e marcadas mais pela concórdia do que pelo respeito, mas uma receptividade que nada tem de uma disponibilidade seletiva. Nisso Platão parece restar insuperado por Aristóteles, para quem a amizade pode ser resumida na vaga sentença “querer para o próximo o que se quer para si mesmo”, ou na máxima igualmente indeterminada tornada célebre pelo Novo Testamento: “amar ao próximo como se ama a si mesmo”. A autêntica disponibilidade não seleciona, não elege, não discrimina, não busca espelhamento; ela se põe a cada vez aberta, liberando a si mesma para o outro, não do outro. Os eleitos se revelam como

tais – de que modo? Por sua própria disponibilidade. Ser amigo é

colocar a si mesmo disponível na escuta daquele capaz de ouvir, pois apenas entre estes se torna verdadeiramente possível o próprio falar, que é sempre um falar-a-alguém, não um falar-de- si. O amor filosófico não é mero sentimento, mas convite à ação, como expressa Ludueña em sua Introdução à recente tradução para O banquete: “O lógos de Sócrates exige que se ponha mãos à obra” (LUDUEÑA, 2015, p. LXXXV).

Cabe abrirmos um importante parêntese para a apre- ciação de Heidegger sobre a essência do pensamento à luz do significado essencial de “Filosofia”. Conforme lemos em diversos momentos de sua obra, pensamento propriamente dito

é pensamento do Ser na medida em que, pertencendo ao Ser – o genitivo “do” indica sua proveniência e pertinência –, escuta o Ser. Trata-se do chamado silencioso que já encontramos em

Ser e tempo. Nisso consiste, para Heidegger, o estar em sintonia

com o mundo, habitar na casa do Ser e ser seu “pastor”, seu simples cuidador. O pensamento, assim, é o modo pelo qual nos relacionamos com o que é em uma atitude contrária a toda pre- tensão de posse e dominação exploratória. Trata-se de assumir algo em sua essência (in ihrem Wesen annehmen), no sentido de acolhê-lo e aceitá-lo, tomá-lo sob proteção, zelar pela essência. Zelar “por uma ‘coisa’ ou por uma ‘pessoa’, em sua essência”, diz Heidegger (HEIDEGGER, 2008a, p. 329), “significa amá-la, querê-la”, “sie lieben: sie mögen”. Mas esse querer (Mögen) não pertence ao domínio de uma vontade que “só pode produzir isto ou aquilo, mas pode fazer com que alguma coisa ‘se essencie’ em sua pro-veniência”, deixando que ela seja, consistindo na “verdadeira essência do ser capaz [Vermögens]”. Esse poder (Vermögen) próprio ao querer, que é uma capacidade, não uma força dominadora, é aquilo em “virtude” de quê “alguma coisa pode propriamente ser”, “é o ‘possível’ [Mögliche] em sentido próprio”. O pensamento autêntico, amoroso por sua própria essência, é ouvinte e, como tal, acolhedoramente liberador de possibilidades de ser, não se confundindo a um uso ins- trumental e instrumentalizador da racionalidade pelo qual se pretende apenas determinar e condicionar os modos de ser restringindo e fechando suas possibilidades – é à ciência e à técnica que cabe realizar possibilidades; ao amor, permiti-las16.

Diz Heidegger mais adiante (HEIDEGGER, 2008a, p. 330), “a assim chamada ‘existência privada’ ainda não é, em todo caso, o ser essencial, livre, do ser humano” pelo simples fato de se ver ocupada “livremente” com seus próprios interesses; pelo

16 Ver também o fino comentário de Marcia Schuback em seu “Heideggerian love”, bem como suas alternativas de tradução lidando com a riqueza semântica do verbo “mögen” (SCHUBACK, 2012a, p. 146-147).

contrário, uma tal existência apenas “se aferra à negação do âmbito público”, mantendo-se, todavia, como “apêndice depen- dente” que se “alimenta de seu mero retirar-se do público”. Trata-se, em verdade, de uma fuga da própria responsabilidade e do amor o que impossibilita essencialmente o pensar – isto é, uma fuga do estar abertamente disposto, atento e pronto a

responder ao apelo uma vez ouvido. “Mas como surgem aqueles

que ouvem?” – perguntava-se Heidegger (2010, §14, p. 60), em um manuscrito do final dos anos 1930 – “Somente aqueles que podem eles mesmos dizer podem ouvir, sem que se tornem ao mesmo tempo servos por isso”. Uma vez que nessa experiência amorosa do saber enquanto ouvinte com algo a dizer, e por isso

livre, há sempre uma contraparte, aquela “responsabilidade” é

sempre uma co-respondência. Ainda sobre isso, em torno a um fragmento de Heráclito, diz Heidegger em uma conferência de 1955: “O elemento específico de philein [amar] do amor [...] é a

harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres,

nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro”; “corresponder é, necessariamente e sempre e não apenas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis-posto” (HEIDEGGER, 2000, p. 32/37).

As articulações entre amizade política, responsabilidade e liberdade, pensamento, juízo e ação de fala, seriam notavelmente aprofundadas por Arendt em seu livro A condição humana, bem como em outros escritos. Todavia, a problemática da oposição entre o público e o privado já antecipa elementos de uma crítica