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5 Hesíodo e o amor cósmico como princípio de geração

Tendo em mente o que acaba de ser dito, retornemos a Empédocles e sua relação com o mito. Empédocles, sem dúvida, usa de sua liberdade de pensamento para construir sua pró- pria mitologia a partir dos blocos legados pela tradição que remonta aos poemas homéricos ou mesmo a período anterior. Como também acaba de ser indicado, a leitura de alguma obra de Mitologia em particular não pode, de jeito algum, bastar à compreensão de sua complexidade, ao conhecimento objetivo da “História de deuses e heróis”. Do mesmo modo, recorrer a isso ao se ler filósofos antigos pode gerar mais confusão do que

esclarecimento. Eis o caso. Por essa razão, a consulta a textos em grego, longe de ser um recurso meramente erudito e vazio, torna-se necessária. Lembrando que as potências primordiais no pensamento de Empédocles são Philotés e Nikos, encontramos em Hesíodo sua inspiração mais imediata no que diz respeito ao fato de essas divindades precederem todo o panteão grego, tendo assim supremacia até sobre os mais poderosos dos deuses. Por sua vez, o equilíbrio entre essas duas forças e a positividade absoluta do Amor-Amizade, bem como seu caráter consequen- temente protagonista, jamais encontraram expressão filosófica maior antes de Empédocles, residindo aí nosso interesse por ele, conforme já foi defendido e confirmado por Aristóteles.

De acordo com Hesíodo (1908), sempre na Teogonia, o cós- mico Eros surge do Caos, como também Noite e Érebo. De fato, parece que o verso 120 deve ser lido como ligado imediatamente ao verso 116, sendo os intermediários uma simples indicação do caráter também originário de Gaia e Tártaro. Assim se jus- tificaria a omissão dos versos 117-119 por Platão e Aristóteles, independentemente do que ponderam Kirk, Raven e Schofield em seu interesse acadêmico. Noite gera de si mesma uma série de deuses, entre os quais encontramos as deusas Philotés e Eris, ou Disputa (versos 224-225). Se Philotés é o princípio da Amizade, da proximidade e da concórdia, Eris não chega a ser seu contraditório, mas o princípio de toda forma de disputa, mesmo daquela verbal a que se daria o nome de “erística”, ou seja, o confronto dos argumentos ou opiniões em um debate. Da deusa Eris, contudo, adviria outra série de divindades – estas, sim, bastante funestas – entre as quais reconhecemos ninguém menos do que Nikos (versos 226-229), a legítima oposição de sua tia Philotés, sobrinha de Eros, que é a força propulsora da vida. Talvez em razão de sua prole, ou, pelo contrário, por isso atribuída tal prole a ela por Hesíodo, Eris já aparecera em Homero (2003, Vol. I, p. 172-173. Canto IV, versos 440-441) como acompanhante de Ares “matador de homens”, o deus da guerra e das mortes violentas. É, porém, pela intervenção de Eros, o cósmico, como

passo a chamar, que Noite e Érebo, como os demais imortais e mortais, geram mediante o intercurso macho-fêmea.

Esse Eros se mostra para nós, portanto, como uma divin- dade muito mais rudimentar e primitiva, não apenas por seu caráter originário, mas especialmente por aquilo que repre- senta: o princípio da reprodutibilidade mediante a união dos opostos. Ele mesmo não tem um “opositor” em Hesíodo por ser ele o mediador dos contrários. Eros, aqui, não produz mundo, mas é por sua intermediação que a vida vem a ser reproduzida, tanto que a ele não se atribui filho algum, o que haveria de parecer muito estranho, mas apenas à primeira vista! Quem sabe não seria justamente por isso que chegou a ter como símbolo, em tempos muito remotos, uma grande pedra? (Cf. STEUDING, 1953, p. 109, §111. ). Não se trata ainda do amor-paixão, nem do amor-amizade, mas da alegoria do ímpeto sexual que rege e perpetua toda a natureza viva. Outra conclusão que se tira é que não é pertinente ao Eros cósmico qualquer intercurso sexual que não seja aquele concebido como “natural”, ou seja, o que tem a reprodução como consequência, de maneira que sequer o amor-sexual em sentido próprio e amplo é aí contemplado, tanto menos o amor-paixão, que indubitavelmente aceitam o homossexualismo, a pedofilia, a necrofilia, a zoofilia etc. Aliás, nessa enumeração já se vê o abuso da palavra “philia” em nossa cultura, mesmo em palavras como “filho” e “filiação”, as quais não significam nada mais, nesses casos, do que proximidade,

afinidade... Pode-se notar também que, se o prazer sexual não

está ligado propriamente ao Eros cósmico, significa colocar o carro na frente dos bois concluir, como se faz, que relações sexuais que não visem à reprodução – por isso chamadas “antina- turais” – devam ser moralmente condenáveis. A condenação do “antinatural”, como do “irracional”, dependerá de elaborações teóricas muito alheias a tudo isso.

Clarificadas as fontes de Empédocles, reconhece-se, de todo modo, que sua Philotés não é o Eros cósmico, mas, diríamos, um tipo de força de alcance bem mais amplo. O costume de se

traduzir por Amor ou Amizade decorre das variadas acepções adquiridas pela palavra “philia”, termo pelo qual Aristóteles se refere à “philotés” de Empédocles em todas as ocasiões. O fato é que o Eros cósmico estava com os dias contados, junto a todas as divindades primevas, fenômeno cultural que se deu nas mais diversas regiões do planeta, um tanto graças já à poesia homérica no que diz respeito à cultura grega em particular. Na mitologia grega, como em qualquer outra, os deuses ori- ginários são substituídos por divindades mais humanizadas, o totemismo dá lugar ao antropomorfismo, Eros deixa de ser “uma pedra”, pela qual talvez se pretendesse aludir também à sua indestrutibilidade enquanto potência primordial. Dentro em pouco, Eros, já como amor-sexual, não estará ligado apenas ao intercurso entre machos e fêmeas, mas representará o princípio de desejo e prazer. Como vemos, considerada a originalidade de Empédocles, o Amor-Amizade é uma entidade muito mais racional, abstrata e abrangente em relação ao Eros cósmico, e ao mesmo tempo muito mais poderosa do que a hesiódica deusa Philotés. Na Era cristã, ele mesmo se converterá no poder criador e salvífico da ágape. Marcando a transição, um segundo Eros já surge na própria Teogonia de Hesíodo. Não sendo esse Eros tão importante para a compreensão da doutrina de Empédocles, exceto pela já referida relação com Afrodite, é, todavia, jus- tamente em torno dele que o imaginário ocidental se deterá mais durável, profunda e fortemente. Não é à toa, portanto, que Empédocles seja comumente esquecido quando se trata do “amor na Filosofia”.