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Nos mitos comentados até aqui já se pode notar as gran- des matrizes de tudo que se pensará do amor no Ocidente,

tanto aquilo que consideramos valioso quanto aquilo que talvez devamos deixar de lado após a devida crítica. Não se trata de termos aí concepções certas ou erradas sobre o amor, mas, talvez, muito confusas, mistas, híbridas, razão pela qual alguma aspereza aqui e ali reflete, como um alerta, a violência exigida para se colocar todos esses ingredientes em uma forma comum. São, todavia, discursos profundos sobre aquilo que se encontra no imaginário e nos sentimentos populares de uma época, imaginário e sentimentos de que, como legados culturais, somos herdeiros. Como disse Plotino (2002, p. 117), “quando os mitos contam para nós tudo o que podem, eles permitem que o homem que os entendeu reúna novamente aquilo que eles separaram”. Em meus comentários, procurei, como continuarei procurando a seguir, trazer à tona algo que nos pareça mais familiar, a fim mesmo de que essas histórias não sejam lidas como meras histórias que no distante passado se contava, mas como representações daquilo que pensamos e sentimos ainda hoje, como algo que ainda tem muito a nos dizer. Não cabe a acusação de anacronismo; seria, em vez disso, uma cuidadosa ressignificação, mesmo porque não deve neste caso prevalecer um pretenso “rigor científico” sobre o nosso efetivo modo de

recepção deste legado. Afinal, ele continua presente e atual

segundo o sentido que hoje lhe conferimos. Essas mesmas histórias e tudo aquilo que evocam, a vida de uma cultura, foram desde muito cedo objeto de muitas filosofias e até de algumas ciências. Por isso mesmo, ganham o estatuto de introdução ao pensamento sobre o amor que estamos iniciando; não apenas ao pensamento, aliás, mas também ao sentimento.

Como constatamos, o Eros cósmico não sobreviveu. Em verdade, o Eros cósmico de Hesíodo apenas faz supor uma série de coisas, suposições movidas por perguntas bastante refletidas e posteriores, tais como: Por que, afinal, o Amor é anterior a todos os deuses imortais? Que tipo de relações na Natureza ele mediaria? Há uma tendência a pensá-lo como princípio de toda geração, mas o próprio Hesíodo não esclarece isso. Como força

da natureza, reconhece-se, sim, um princípio que rege a união das coisas, permitindo que elas se tornem coesas e possam se reproduzir quando assim permitir sua constituição natural. Contudo, uma relativa clareza sobre isso só ocorre a partir de Empédocles, mesmo porque o que temos de Parmênides é insuficiente e o que encontramos em Heráclito, a Harmonia, o

encaixe das partes formando um todo, não parece se referir à

mesma coisa. Na verdade, é por intermédio do mito tardio sobre Anteros que a contribuição de Heráclito parece se verificar, ainda que de modo indireto.

Justiça feita a Empédocles, que anunciei como necessária e agora pode ser guardada, somos obrigados a convir que sua

philotés é mesmo, antes de tudo, o princípio da concordância,

aquilo que os físicos modernos passariam a denominar “lei da atração”, licenciosamente assimilada pelo misticismo con- temporâneo. “Amizade”, aqui, é uma metáfora, assim como traduzir “philia” por “amor” exige cautela. Trata-se apenas da boa disposição de um para com outro, uma expressão de amor, mas que, talvez, não seja bastante para esclarecer o que é o amor, a não ser, é claro, para aqueles que admitem o amor como sendo redutível à casta benevolência, a uma virtude. O amor, visto como tal poder, move nossas vidas apenas de modo derivado, de terceira ordem. Em seu nível mais elevado, produz o kosmos; um nível abaixo, o conserva em harmonia; no terceiro nível, sim, é modelo para a vida humana, inspirando o que se costuma chamar “boa vontade”. Em cada um desses níveis reconhecemos o Amor-Caridade do Cristianismo, personificado em Jesus, o mais fértil solo em que se desenvolve a proposta de Empédocles, mas não sem mistura. Por intermédio de sua philotés, o Eros cósmico finalmente se traduzirá e retornará como ágape, o amor-amizade desinteressado, impessoal e caritativo. Aliás, tal impessoalidade caracteriza aquilo que é estritamente natural, mas também, deve-se admitir, o que é estritamente natural não possui nenhum caráter moral em si mesmo. Por artificial que seja a oposição entre o natural e o moral, consagrada pelos

pensadores modernos, trata-se de algo muito útil quando vemos os abusos do entendimento humano ao atribuir à Natureza uma ordem que não é inerente ao mundo, mas nele projetada pelo intelecto, questão que abordarei oportunamente.

Tal concepção de amor, como ágape, é o grande modelo do amor como transcendência, um amor cuja plena pureza está totalmente fora de nosso alcance, tamanhas são as limita- ções para sua realização na vida humana. Incontáveis foram os filósofos – se não quase todos até o século XVIII – a encontrar em Deus o modelo e fonte original de todo e qualquer amor humano, se não o único ser capaz de amar verdadeiramente. Amor, aqui, é excesso, impossível a uma espécie humana carente por natureza. Casado com a Verdade eterna, o Amor não é (mais) coisa deste mundo sob o olhar dos filósofos. O mesmo vale para a felicidade que esse Amor deveria trazer como rebento mediante sua união com a Alma – o prazer autêntico. A referida mistura, já que é evidente que esses importantes pormenores não vêm de Empédocles, é fruto da primazia do platonismo no pensamento cristão. Platão, por meio da relativa imperfeição que atribui a Eros no Banquete, ao mesmo tempo o aproxima do homem e, por conseguinte, afasta, na mesma proporção, seu objeto. Graças a esta mistura, pela qual se obtém o que hoje entendemos como transcendência do amor e sua consequente autossuficiência, deriva-se toda espécie de idealismo acerca do amor como promessa de perpétua e inabalável felicidade, conquistável, segundo o Cristianismo, apenas pela fé acompanhada de ações.

Esse desdobramento atinge uma expressão exemplar no século XV com Nicolau de Cusa, que escreve no livro terceiro, capítulo XII de A douta ignorância: “ninguém logra chegar à fé máxima, acima da qual não pode haver poder maior, nem tampouco pode chegar ao amor máximo [...] pois o máximo em um gênero, assim como é o limite supremo dele, é, por igual, o início de um gênero mais elevado” (NICOLAU DE CUSA, 2002, p. 220) . Isto significa que o amor máximo, o amor ideal – devemos

admitir – é algo para além do humano na medida em que já é algo divino. E assim prossegue:

Da mesma maneira, o amor máximo, em sentido absoluto, não pode existir num amante que não seja também ao mesmo tempo o amado. Por isso nem a fé nem o amor máximo, em sentido absoluto, competiu a outro que a Jesus Cristo [...]. Nem pode alguém amar tanto a Cristo que ele não possa ser amado ainda mais, já que Cristo é o amor e a caridade e por isso digno de ser amado infinitamente (NICOLAU DE CUSA, 2002, p. 220).

Reconhece-se no fundo das palavras de Nicolau a influ- ência do famoso argumento (sabidamente inválido) de Santo Anselmo sobre a existência de Deus, empregado de tal modo que, sob a luz da ideia transcendente de perfeição, nosso amor se vê reduzido perante um objeto inatingível em sua plena natureza quando este passa a ser o próprio Amor. Amando o Amor, o amante ama algo que lhe é superior; sendo esse algo perfeitíssimo, acima do qual nada mais há, e sabendo-se que não se ama o que é inferior, o Amor só pode ser apropriadamente amado por si mesmo – conclusão: o Amor se torna intangível pelo homem e exilado do mundo; se Deus ama o mundo, ama em verdade a si mesmo em sua obra, como o artista ama suas produções. O problema fundamental de tal concepção é evidente: sempre é possível pensar algo maior, e então a mística cristã postula algo acima do qual nada se pode pensar, mas isso mesmo é o impensável a que se dá o nome de “infinito”, de “absoluto”, de “transcendente”, “eterno”, “perfeito”. A lucidez de Nicolau, porém, ao menos lhe fez perceber que o mesmo vale para o mínimo, e não apenas para o máximo. Fora isso, o raciocínio empregado aplica a Deus e ao Amor a mesma lógica da hierarquia de gêneros e espécies utilizada por uma filosofia da linguagem para tratar das categorias, da predicação – isto é, utiliza-se a estrutura formal da linguagem para tratar do que não pode ser dito nem pensado pela linguagem (!). A metalinguagem da mística sobre o amor nos fecha as portas para o amor. Esta é

apenas uma das consequências, porém central, que veremos no próximo capítulo decorrerem do platonismo.

Filósofos como Platão e Aristóteles de fato elevaram sabe- doria e felicidade de tal modo que, declaradamente, se tornaram bens dos deuses, tão difíceis que são de se atingir na deficitária vida humana. Desde Platão, o amor é dividido em dois: o do corpo e o da alma. Desde o Cristianismo, esse amor-amizade é também dividido entre a ágape piedosa e a philia comum. Assim também surgem tanto as concepções de amor como abnegação de si e em função de outro, na medida em que se condena desejos mundanos, quanto de amor como comunhão, na medida em que, à luz do amor como “força unitiva”, o amor é pensado como promotor de uma união definitiva e incondicional ao que há de mais elevado em vista de elevar-se a si mesmo. Não é sem razão, portanto, que Nietzsche, no §168 de Além do bem e

do mal, avança a acusação: “O cristianismo deu a Eros veneno

para beber – ele não morreu, é verdade, mas degenerou em Vício” (NIETZSCHE, 1996, p. 82). De fato, tal envenenamento já se mostra no segundo século da Era Cristã, quando, na prosa de Apuleio, Eros, ou Cupido, se torna um verdadeiro monstro. Considerando que a maldição lançada pela deusa da Beleza contra Psyché se realiza, fato confirmado pelo oráculo de Apolo transcrito mais adiante, vemos que é ao deus do Amor que cabe a seguinte descrição, para a autêntica tragédia de sua mãe: “que ela caia em desesperado amor pela mais miserável criatura viva, a mais pobre, a mais trapaceira, e mais vil, que em todo o mundo nenhuma outra de semelhante baixeza possa ser encontrada” (APULEIO, 1922, p. 190-191)12.

De todo modo, é na rica representação do Eros impetuoso, o amor-loucura, que Platão se inspira e é nele que é feita a partição. O próprio amor-caridade do Cristianismo se alimenta dessa louca extravagância que é o excesso da divina graça criadora da vida,

12 A narrativa encontra-se no Livro IV, §31. V. tb. §33: Apolo refere-se a ele como “víbora feroz e cruel”.

e assim se uniram eros, philia e ágape em uma única “experiência autêntica”. Tendo acabado de esboçar as linhas gerais de seu “lado nobre” e transcendente – que inclui a casta comunhão e nesta castidade encontramos a abnegação, o domínio sobre as paixões mediante uma loucura divinamente inspirada, do que se obtém o bastar a si mesmo –, podemos passar ao “lado vulgar” do amor como princípio universal da Natureza.

Como ímpeto apaixonado por coisas do mundo, sempre transitórias, entregue aos caprichos do momento, nesse Eros se radica todo princípio de prazer e, portanto, Freud à parte, tudo aquilo que se sedimentou no pensamento ocidental como “cegueira” da alma diante do que “realmente tem valor”. Na louca e insaciável busca por satisfação, que jamais haverá de se obter de modo durável nesta vida, neste mundo, sendo por isso condenável e tida por inútil, esse “amor” decepciona por jamais cumprir o que promete: uma felicidade perene. O mal-estar

na civilização é uma obra na qual Freud trata disso de modo

privilegiado, com especial destaque no quarto capítulo, de onde podemos extrair o seguinte:

Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satis- fação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade, deve tê-lo feito continuar a busca da satisfação vital no terreno das relações sexuais, colocando o erotismo genital no centro da vida. Prosseguimos dizendo que assim ele se torna depen- dente, de maneira preocupante, de uma parte do mundo exterior, ou seja, do objeto amoroso escolhido, e fica exposto ao sofrimento máximo, quando é por este desprezado ou o perde graças à morte ou à infidelidade. Por causa disso, os sábios de todas as épocas desaconselharam enfaticamente esse caminho; não obstante, ele jamais deixou de atrair um grande número de seres humanos.

Uma pequena minoria pode, devido à sua constituição, achar a felicidade pela via do amor, mas isso requer vastas alte- rações psíquicas da função amorosa. Tais pessoas se fazem independentes da concordância do objeto, ao deslocar o peso maior de ser amado para amar; elas protegem-se da perda

do objeto, ao voltar seu amor igualmente para todos os indi- víduos, e não para objetos isolados; e evitam as oscilações e decepções do amor genital afastando-se da meta sexual deste, transformando o instinto em um impulso inibido na meta (FREUD, 2012, p. 46-47).

É o amor que produz as mais contagiantes alegrias e os mais destrutivos sofrimentos. O conformismo diante disso faz com que nos sintamos felizes a cada vez que encontramos prazer junto de algo ou alguém, e também que encontremos prazer junto de algo ou alguém a cada vez que nos sintamos felizes. Ou seja, tanto podemos pensar amar alguém ou alguma coisa que nos dá prazer como podemos sentir prazer no que quer que seja apenas porque inexplicavelmente o amamos. Não é necessário dizer que isso é senso comum... Tanto em um caso quanto no outro o amor é medido pelo prazer, e então, cessado o gozo, descobrimos que não era verdadeiramente amor ou passamos a pensar que não amamos mais, como se o amor não permitisse tristezas – crer nisso é, em um sentido, pura ilusão, sendo necessário esclarecer oportunamente também em que sentido não é. O fato é que a certeza do fracasso não me parece o bastante para que se exile o desejo – cabe, em vez disso, compreendê-lo.

Justamente por se tratar de um ímpeto para conquista de um prazer que jamais se esgotará, exige-se reciprocidade, pois, ao prazer que se tem nascido em si mesmo e se realiza em amar, se deseja então acrescentar o prazer de ser amado, o anseio de receber prazer do exterior. Tal anseio de retorno e reconhecimento pode ser encontrado até mesmo no amor cristão, cuja perspectiva de salvação pelo amor aparece sob o eloquente título de justiça. Dar mais do que se recebe, ou se julga receber, faz com que “as contas não fechem direito”, que o prazer se sinta diminuído ou roubado, que, afinal, não haja justo reconhecimento, como se amor tivesse a ver com contabili- dade. Nesse caso, apropriando-nos do que diz Freud, podemos compreender que a ameaça de não ser correspondido leve ao deslocamento do amor para um objeto tal que, indestrutível e

imperecível, à custa de um sentimento concreto de ser amado, forneça uma “certeza” meramente intelectual de ser amado. Uma primeira luz que este diagnóstico lança sobre nosso modo usual de lidar com o amor é a de que lhe é fundamental uma exigência natural de obtenção de prazer e satisfação de desejos, ou seja, de ser amado – “a maior das pretensões”, diz Nietzsche (2006, p. 244) em Humano, demasiado humano, §523. Isto implica também que, em geral, se busca no amado, antes de tudo, um

amante, que, enquanto fonte de satisfação, supostamente possa

realizar nossas mais profundas expectativas, elemento também verificado por Nietzsche (2001, p. 186) no provocativo §272 de sua Gaia ciência: “O que você ama nos outros? – Minhas esperanças”.

A exigência de exclusividade não é apenas fruto do ego- ísmo. Trata-se de uma busca por garantias de que se recebe todo o amor que o outro tem para dar enquanto damos tudo o que possuímos – uma deformidade no desejo de reciprocidade. Cabe fazer analogia com o ocorrido a Ananias e sua esposa no livro bíblico “Atos dos Apóstolos”: ao ser recebido na comunidade cristã, onde todos os bens deveriam ser comuns, Ananias não entrega tudo o que tem, de maneira que é fulminado por Deus diante de Pedro – afinal, recusar-se a entregar tudo o que possui supõe que não havia uma firme convicção de permanência na comunidade, mas, pelo contrário, cogitava-se a possibilidade de vir a abandoná-la, para o que seria necessário reservar consigo algo de seus recursos. Por isso é que não basta ao exclusivista, no caso extremo, a certeza da “fidelidade” do amado no momento presente; é também necessário que ninguém mais obtenha o bem que é “seu” de seu amado, trate-se de colegas, amigos ou familiares – às vezes, isso inclui os próprios filhos! É então exigido que o amado empenhe sua vida por completo na associação amorosa. Sequer as diversões do amado são toleradas em um nível ainda mais extremo, pois exclusivamente o amante deve ser não apenas o receptor dos prazeres, mas também o único a provocá-los no outro. O outro deve fruir exclusivamente do que o amante lhe dá, sendo toda dádiva tida por irrecusável como a pouca

comida a quem tem uma despensa vazia. Assim, a deformidade expressa pelo exclusivismo tende a sacrificar o amado em sua individualidade pela via da abnegação de si sob o pretexto de uma autossuficiência da união a dois que é falsa na proporção da exigência e da cobrança. Ora, o próprio desejo desenfreado, voraz e inesgotável que motiva esta loucura a contradiz! Prova disso é que não seja incomum o desfecho violento de casos como esse. Curioso ainda é que haja uma infinidade de interpretações religiosas que transponham semelhantes exigências de recipro- cidade (do amado) e exclusividade (do amante) para a própria divindade “vaidosa”, empenhando-se de modo incansável na formulação de justificativas para a “vaidade divina” em detrimento da nossa, demasiado humana e tachada de “mesquinha” – veja-se o primeiro mandamento das tábuas mosaicas.

A forma mais “pacífica” do Eros impetuoso se mostra nas relações cuja mediação é naturalizada. Ou seja, quando o ímpeto aparece sob a forma de impulso natural reconhecido – em uma palavra, como instinto. Exemplos simples são o amor à vida, o amor aos pais, o amor aos filhos (eventualmente transferido ou estendido para plantas e animais ou mesmo para algum

hobby). Para cada um desses “amores”, adicionalmente, se faz

correspondência a um instinto biologicamente determinado. Já Platão o reconhece no texto do Banquete. Acontece, porém, que “amores instintivos” não são o bastante e, por mais sólidos e duradouros que sejam ou pareçam ser, podem ser profunda- mente abalados por amores não instintivos, em especial o que deveria ser o mais poderoso: o amor à vida. Talvez porque não haja valor algum naquilo que manda a natureza independente de nossa vontade. Diz Freud com exatidão: “Um amor que não escolhe parece-nos perder uma parte do seu valor, ao cometer injustiça com o objeto” (FREUD, 2012, p. 47).

Ademais, a Psicanálise nos oferece inumeráveis exemplos de conflitos e neuroses decorrentes do fato de que, ao invés de naturais ou instintivos, tais “amores” nos oprimem e nada têm

de pacíficos, mas concorrem com desejos de morte de nossos pais, de nossos filhos, de nós mesmos. Mas não nos detenhamos tanto nisso agora. Importa antes dizer que mesmo nessa forma aparentemente “pacífica” encontramos o desejo de reciproci- dade e a exigência de exclusividade, sinalizando que tais amores não se sentem tão seguros de si – disso o ciúme e mesmo as disputas corriqueiras entre os pais e entre irmãos são exemplos suficientes e conhecidos por todos. Seu caráter relativamente “pacífico” tem a ver com uma certa tolerância ao caráter limitado da “reciprocidade” nessas relações naturalizadas. Tal relativi- zação pode ser compreendida segundo princípios morais que afirmam, por exemplo, a sacralidade da vida que não pode ser destruída por quem não é capaz de criá-la, a respeitabilidade dos pais a quem se deve nossa nutrição e educação de modo a não nos caber fazer-lhes maiores cobranças, a obrigatoriedade do cuidado pelos filhos que devemos apoiar mesmo quando não reconhecem ou não podem compreender o bem que lhes fazemos. Em síntese, é justamente na condição de artifícios

morais que eles oprimem e deformam a natureza propriamente

dita, que impulsiona a busca por satisfação.

Assim – perdoem-me os cientistas sociais –, o ciúme não é um fator meramente cultural. Não envolve tanto a ideia de posse elaborada pelo Ocidente quanto o puro e simples desejo