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Discordo plenamente de que o amor em geral seja social, histórica e culturalmente determinado, pois não parece justi- ficável julgar o amor a partir de suas expressões. Ainda é cedo para discutir a tese contrária, a saber, se há ou não “amores instintivos”, formas “naturais” de amar e assim por diante, mas igualmente recuso a tese crescentemente propalada de que o amor seja essencialmente algo natural, isto é, biológico. Amor não é a sexualidade ou sua origem, tanto menos seu efeito sobre nós, embora possa se relacionar com o que ela suscita em nós, a não ser que estejamos falando apenas de um princípio da Natureza personificado, como Eros ou Philotés. E eis a razão da epígrafe a este capítulo inicial, deliberadamente abstraída de seu contexto: o amor é um movimento contrário à natureza,

residindo aí sua liberdade essencial, mas não no sentido em que geralmente se opõe a liberdade à natureza, como livre-arbítrio ou como cultura. Um dos pontos mais urgentes a se esclarecer nessa discussão é que o amor une o que de nenhum outro modo estaria unido. Isto quer dizer que o amor, sendo independente da natureza (como também da cultura), pode indiferentemente estar

de acordo com ela, quando tem em vista gerar filhos (sem media-

ção tecnológica), por exemplo, ou contradizê-la. O amor – nesse sentido, como Eros ou Philotés – reina acima da Natureza; eis em que consiste seu caráter originário em um primeiro momento.

Assim, a referida ingenuidade das “evidências” culturais reside no fato de que somente podem ter pretensões de prova contra o naturalismo que se pretende refutar, ou seja, contra a existência de leis naturais sobre o amor, por meio de remo- tas e excêntricas exceções. Porém, quando não se trata mais de defender “leis universais”, restam apenas fatos e nenhum conhecimento para além das informações sobre as arbitrarie- dades de uns e outros sistemas normativos. Nesse sentido, as práticas de amor, com todos os seus preconceitos e legitimações, tradicionalismos e revoluções, têm uma importância meramente intelectual; menor ainda é o valor intrínseco das exceções ao que se tomava como regra, pois têm valor meramente relativo e negativo contra aquilo que contradizem. Chega a ser sublime a verdade expressa no aparente paradoxo do dito popular segundo o qual “a exceção confirma a regra” – afinal, só pode haver exceções quando se admite a regra geral! As noções de regra e exceção são tão interdependentes que uma só tem sentido em relação à outra. Na ausência de uma regra, a que diria respeito a suposta “exceção” se não a alguma espécie de padrão reconhe- cido como tal? A propósito, esse dito popular tende a ser mal entendido: seu significado correto é que as exceções confirmam que uma regra que não dê conta delas é universalmente falsa, ou seja, trata-se de uma prova negativa da falsidade da regra pela via de sua refutação lógica. Isto quer dizer que o apelo oculto das Ciências Sociais à Lógica não serve como prova positiva de

suas teses, mesmo porque tais provas não existem em ciência alguma, à exceção daquelas que tenham objetos meramente formais e, portanto, meramente aproximativas da realidade.

É necessário aceitar, contudo, que em diferentes momen- tos da história e em diferentes lugares do planeta as coisas se deem de maneira a cada vez diferente. Nenhum filósofo jamais o negou e a querela só faz sentido se opusermos o que as coisas são de fato ao que elas supostamente deveriam ser. O discurso geralmente vazio da diversidade cultural tem como

única e exclusiva inimiga a pretensão de se erigir uma Moralidade

Universal, o que se torna um completo contrassenso a partir do momento em que nos damos conta de que aquele discurso se apoia precisamente em uma moral universal que dita a tolerân- cia, o respeito mútuo, o direito de autodeterminação e assim por diante. Assim como, aqui, em pleno início do século XXI, ouso e abuso em extrair tantas coisas de um pequeníssimo punhado de mitos que, neles mesmos, nada explicam, nada refletem, nada comparam com a “realidade humana”, cada época produziu suas próprias representações, desde o mais vulgar ao mais genial de seus espíritos. Porém, o mais importante é, em primeiro lugar, levantar a possibilidade de que tudo quanto se pensou e sentiu já tenha sido de algum modo antevisto nos mitos sobre os quais se assentou a cultura ocidental, tornando-se sempre implícitos seus oráculos naquilo a que os filósofos se dedicariam a impor a ordem da razão. Nesse sentido, satisfaz reconhecer nessas primeiras fontes uma espécie de origem comum de representações do amor tão bem conhecidas por todos nós, ainda que não tenhamos o hábito de refletir sobre elas. Uma delas, porém, escapa totalmente, mesmo porque, essencialmente moderna, romântica, é muito posterior, talvez nova demais: o amor como escolha pessoal. Que modo seria este de vivenciar o mundo que produziu este último mito.

Sobre esta forma de se conceber o amor, que certamente causa estranhamento à primeira vista a quem crê no amor

súbito, romanticamente ou não, poderemos constatar que tal- vez seja a mais familiar de todas hoje em dia. Por isso mesmo, acredito ser esta a concepção mais difícil de comentar – não que haja dificuldades em torná-la evidente como mito; difíceis de aceitar são suas consequências. Uma primeira pista é: cos- tuma-se acreditar que, se não nos apaixonamos por vontade própria e tampouco deixamos de amar por vontade própria, está em nosso pleno poder escolher buscar a felicidade ou nos mantermos em uma situação infeliz. Essa convicção, por mais obscurecida que esteja no coração do amante, como se costuma notar, é lugar-comum nos “conselhos de amigos”, além de ser um dos produtos do racionalismo grego. Trata-se de uma complexa mistura de concepções desiludidas do amor e inflamadas, como deveremos ver, pelo espírito libertariamente individualista do humanismo iluminista, cuja síntese é o chamado amor-ro- mântico. Não que, como uma exceção, esse tipo de amor seja historicamente determinado, mas que, pelo contrário, a pró- pria história e o amor em certa época representado exprimem um modo bastante peculiar e resistente de como passamos a entender a vontade. Nesse mundo dessacralizado, o amor não é mais despertado por algum gênio benévolo ou maligno, mas por algo íntimo ao amante a que ele denomina vontade, um querer que ele se julga no direito de defender a todo custo, pois aí, nessa pretensa liberdade de escolher seu próprio destino, reside o que o diferencia, o que o torna único – um indivíduo, uma pessoa. Dar provas de amor significa dar provas de si mesmo, de sua própria dignidade como pessoa livre.

O amor romântico, ao contrário de ser determinado por uma cultura, cultura que o representa e exalta na literatura, na pintura, na música, no teatro, é na verdade a rebelião do indivíduo que se autoafirma contra as convenções, contra o rebanho popular e contra a etiqueta aristocrática, buscando uma forma nova de nobreza, e isso novamente em nome da Natureza, ou, melhor dizendo, de sua “liberdade natural”. Os valores românticos buscam um lugar ao sol entre a delicadeza

superficial de uma minoria decadente e a grosseria incontor- nável das massas dedicadas a subir na vida – no romantismo se concebe o sonho de uma vida do espírito, uma vida que permita dar vazão à intimidade, aos segredos e mistérios do coração atormentado, como a idealizações e exaltações de modos de vida rural ou bucólico. Se, como também defendo, amor é liberdade, e tal relação já se vê em Platão, essa liberdade chega, todavia, a ser contraditória ao que se convencionou chamar “liberdade de amar”. Deverá, então, ser pensado em que sentido essa liberdade, na medida em que busca se opor às determinações naturais, ao que nos ditariam os instintos, ou às convenções sociais, paradoxalmente, nessa inversão de valores, termina lhes dando as mãos sob algum aspecto.

Importante dizer que essa última concepção de amor, quando excessivamente racionalizada, convertida em ques- tão político-ideológica, vem se impor sobre o amor romântico, fundamentalmente sentimental. O amor romântico, expressão última do Eros impetuoso, adoecido e em luta por sobrevivência, tende a produzir infelicidade pelo caráter excessivamente ideal da felicidade que almeja – seus amores prediletos são os “amores impossíveis”, aos quais se dedica de maneira inconformada, mas com obstinação. O amor romântico, longe de querer buscar a felicidade onde quer que esteja, migrando de um lado para o outro a seu bel-prazer, ainda quer conservar uma “liberdade natural” segundo a qual temos garantido o direito de nos abandonarmos corajosamente à brisa suave de nossos sentimentos, a despeito de todas as tormentas (e tormentos) que se seguem. O amor assim pensado é considerado tão puro que basta senti-lo para que se obtenha a redenção. O amor assim pensado só acontece na vida de afortunados e uma única vez, pois só se pode senti-lo pelo par perfeito, pela “outra metade da laranja”, que é única e, por isso, vale nossa vida, pois não encontrá-la ou perdê-la significa estar privado da única chance de ser feliz. Eis um dos sentidos da expectativa pelo “primeiro amor”, bem como da tragédia que representa sua frustração, à parte as inquietas curiosidades

que sempre vêm junto com essa espera. Aliás, a busca por essa “outra metade” é pela primeira vez referida em Platão por meio do discurso de Aristófanes no Banquete. Mais uma vez, vemos Platão ligado a “felicidades impossíveis”, a partir do que temos a equivocada noção de “amor platônico”.

Enfim, o amor romântico inspira tragédias, de Shakespeare (avant la lettre) a Wagner, passando por Goethe. Mas, se lemos o mito contado por Platão pela boca de Aristófanes (e nele acredi- tamos), essa busca pela outra metade deve ser também instintiva e, portanto, pré-determinada. Aliás, o amor romântico traz consigo, mais do que qualquer outro, o modelo do amor como força unitiva, conformadora, harmonizante, capaz de resgatar o paraíso perdido, ressentindo-se, porém, da impossibilidade de realização. O amor pós-romântico, por sua vez, quer nascer de um livre-arbítrio, acomodar o parceiro a projetos de vida, é combativo e imanente, “realista” e “razoável”. Por sua própria perfeição, o amor romântico nasce no mundo, mas como forma de transcendê-lo por seu próprio mérito, o que não deixa de ser uma feliz e bela resposta ao amor-caridade que não visa a ninguém em particular, um sublime elogio da capacidade humana de amar em vez de uma mitologia ingênua sobre a possibilidade de termos paz na terra. Menosprezar o roman- tismo significa perder de vista um novo valor que se afirma. Podemos recorrer ao que escreve Simmel em seu “Indivíduo e sociedade nas visões de vida dos séculos XVIII e XIX (um exemplo de sociologia filosófica)”, conforme citado por Franco (1989, p. 18): “Ninguém mais do que os românticos experimen- tou o ritmo interior da incomparabilidade, da reivindicação específica, da aguda diferenciação do elemento único, que o novo individualismo também vê no elemento social, entre os componentes da sociedade”; “o indivíduo busca seu self, como se ele não o tivesse ainda encontrado, mas, ao mesmo tempo, com a certeza de que este self é seu único ponto fixo [...] mas não que o indivíduo não mais seja capaz de encontrá-lo em qualquer coisa externa a ele mesmo”.

Entretanto, o romantismo não saiu vitorioso sobre seu contemporâneo: o preexistente racionalismo iluminista. Ser romântico se torna belo e aprazível nas artes; na “vida real”, é coisa naïve, quase vergonhosa em certos círculos e muito inconve- niente para a maior parte de nossas ocupações sociais. Como via de fuga, na certeza da desilusão amorosa, torna-se mais “fácil” e “administrável” o amor racionalizado, cujo vazio faz com que algum preenchimento seja mais e mais buscado em alguma fé religiosa. Na proporção em que o amor se torna algo em que não mais se crê como pertencente a este mundo, muitos voltam suas esperanças para o outro mundo. A perda da fé no amor entre os homens, em meio aos quais a gente se contenta com pequenas amostras, para não dizer migalhas dormidas – segundo a ins- pirada metáfora de Cazuza em “Maior abandonado” –, conduz, graças à importância essencial que continua desassumidamente tendo o amor, a um ressurgimento do sentimento religioso em plena Era tecnológica, cheia de ocupações, rapidez e, portanto, falta de tempo (para o outro e para si). Ao contrário do que muitos pensam, não há a menor contradição nisto! Apenas se busca encontrar nos céus o que não se acha na terra e já parece inútil procurar. Não que isso reduza, menospreze o sentimento religioso, mas sim, que sua noticiada efervescência não deixa de ser sintoma de algo mais profundo, existencialmente signi- ficativo, e que não deixa de ser obra do próprio homem no uso mais hipertrofiado de sua racionalidade. Diagnóstico análogo se aplica ao modismo da autoajuda: cada vez mais se procura quem ensine autoajuda, justamente quem não consegue encontrar sequer quem o ajude – quem mais seria além de um verdadeiro

amigo. Há, pois, um excesso de eros, uma carência de philia; tanto

ímpeto quanto pouca receptividade, como naquela canção “Não me conte seus problemas”, algo que só poderia aparecer em vozes que cantam os ímpetos do momento.

Por distintos que sejam, aparentemente opostos, amor romântico e pós-romântico são irmãos – intelectualizadas encar- nações de Eros e Anteros, respectivamente. Após a ascensão, a

queda. E quanto à questão de seu surgimento historicamente determinado, em pleno Iluminismo, preliminarmente se arris- caria atribuir um mesmo sentido existencial (e não apenas psicológico) que inadvertidamente emergia à consciência daquela época: a solidão. Não apenas o amor ganha relevo no período; também o tédio13. Não que de fato isso fosse algo novo, mas

que estava em mero estado latente até que viesse à luz graças a séculos de interiorização que levaram o homem ocidental a, finalmente, ver-se coagido a confrontar a si mesmo e ter des- cortinado diante dos olhos de sua alma o abismo inesgotável de sua intimidade até então despercebida e negligenciada. Assim, mais correto seria dizer que o amor produz cultura e natureza,

contradizendo-as, não o contrário... Aliás, dicotomias à parte, a

cultura pertence à nossa natureza e, quanto ao amor, segundo me parece, encontra-se, pelo menos, um degrau mais acima.