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18 O amor cristão aos objetos exteriores, ou o amor do aniquilamento

É a partir daí que o amor agostiniano se torna impessoal, graças ao que descobre aquele que corretamente ama a si mesmo. Embora se alegre, desde então, com toda criatura, não havendo nenhuma impureza no contato com elas, que são obra de Deus,

amando-as, ama, em verdade, a Deus, uma vez que, amando-as, ama sua interioridade, sua intimidade espiritual. Amando a Deus através das criaturas, ama-se as criaturas apenas por intermédio de Deus; revertendo o adultério, reverte-se a morte. Se é a Deus que se ama no amor, o amor gerado da unidade interior daquele que se autoconhece e assim não se desvia de si mesmo nem luta consigo mesmo é o amor da transcendência em que o indivíduo, ou seja, a alma particular, ou razão inferior, a pessoa que se é, abnega de si mesma. Como ensinará Bernardo de Claraval, místico francês do século XII pertencente à Ordem Cisterciense, “o homem ama-se a si mesmo única e exclusivamente por causa de Deus” (BOEHNER; GILSON, 2008, p. 292). A pessoa que somos exteriormente é então anulada também como objeto do amor, na medida em que, segundo as palavras de Bernardo no sermão 71 dos Cantica canticorum, obra dedicada ao livro bíblico dos Cânticos, embora Deus e homem não sejam a mesma coisa, “são um só espírito, desde que se encontrem unidos pelos laços do amor”, unidade esta – conforme citado por Boehner e Gilson (2008, p. 293) – que “decorre menos de uma associação das essências do que da harmonia das vontades”. O ideal de fusão com o amado, seja ele quem for, implica necessariamente o autoaniquilamento do querer pessoal, a forma cristã tradicional pela qual se concebeu a possibilidade de negação da vontade.

Se admitimos que nos distinguimos enquanto indivíduos segundo nosso querer pessoal, ou vontade, o próprio amante é aí despersonalizado no querer universal, também despersona- lizando o amado na medida em que transfere seu amor a um Deus pessoal que, em seu amor, ocupa o lugar de cada pessoa, incluindo o próprio si-mesmo. Diz ainda Bernardo mais adiante, citado por Gilson (2006, p. 530): “Chegando o que é perfeito, o que é somente parcial desaparece, e haverá entre Deus e a alma um amor casto [totalmente desinteressado] e consumado, um conhecimento pleno, uma visão manifesta, uma conjunção sólida, uma sociedade indivisível, uma semelhança perfeita”. Como mostra Gilson (2006, p. 535-536), a visão mística que

vincula perfeição a aniquilamento se estende ao racionalismo de Tomás de Aquino: “a noção de imagem, cujo papel domina até a própria filosofia da natureza e que orienta o desejo de todo ser criado, deve proporcionar no tomismo, bem como na mística cisterciense, a convergência da perfeição própria do homem e da sua submissão completa à vontade divina”. Gilson explica: “ser aniquilado em Deus é perder sua vontade própria, isto é, a vontade separadora que torna o homem ao mesmo tempo diferente de Deus e de si mesmo; é portanto tornar-se, ao mesmo tempo que uma imagem perfeita de Deus, uma plenitude humana” (GILSON, 2006, p. 533). Afinal, a plenitude humana, correspondente à forma em que o homem fora criado, como imagem e semelhança do Criador, é como o retorno à condição anterior ao pecado original. Desse modo, em substituição ao matrimônio visível dos corpos, tem lugar o matrimônio invisível do espírito (a união mística). Gilson prossegue, dizendo que a mística cisterciense,

repousa inteiramente num esforço consciente para completar a semelhança natural da alma a Deus por uma conformidade cada vez mais plenamente realizada da vontade humana com a vontade divina. Amar a Deus é fazer de sorte que Deus se ame em nós como se ama nele. É esse o verdadeiro sentido do casamento místico [...]. O abraço mútuo de Deus e da alma é a união das vontades de ambos [...]. Amor mais forte que o respeito [...], já que é amor ao Amor mesmo [...] pela própria substância do amor, fim além do qual já não há outro fim (GILSON, 2006, p. 533).

Que, na caridade, não se ama ninguém, fica claro nas palavras de Guilherme de Saint-Thierry, sucessor de Bernardo de Claraval, em seu tratado Sobre a contemplação de Deus, conforme citação de Gilson (2006, p. 534): “o amor daquele que ama a Deus, se a graça for grande, pode ir até o ponto em que ele não ama mais nem a ti, nem a si por si mesmo, mas a ti e a si mesmo só por ti. Com isso, ele é reformado à tua imagem [...]”.

Toda fé, para que faça justiça a este nome, é um risco, para não dizer uma “aposta”. No entanto, o risco aqui não é pequeno,

mas infinitamente alto na proporção da infinitude do objeto a que se oferece o sacrifício, caso seja lícito falar em proporções quando estamos nos referindo ao incomensurável. É “alto”, “infinitamente alto”, não apenas pelo numeroso quantificável que se sacrifica – todas as pessoas. É “alto, infinitamente alto” não apenas também porque a existência de Deus e seu amor seja uma hipótese temerária ou absurda aos olhos de um ateu. Não são “razões” agnósticas ou ateias que nos servem para valorar a dimensão do sacrifício, que só pode ser adequada- mente pensado à luz da fé que o motiva, mas algo bastante simples e existencialmente concreto para cada ser humano: só temos e podemos ter vivência da vida como pessoas. Que fique claro, então, desde já, que minha controvérsia não é movida por um sentimento antirreligioso ou de incredulidade, mas por uma convicção existencial que, se estiver correta, deve ser identificável na própria raiz da religiosidade. A aposta da fé é “alta, infinitamente alta”, pois pressupõe – em geral, sem se dar conta, o que é mais grave! – que Deus não nos teria criado como pessoas, mas como imagem – sim, no singular, lembrando que Adão e Eva também seriam “um só espírito”, imagem singular de seu Criador em que se reflete o amor divino.

Minha posição filosófica é também contrária à redução de nossa essência à “pessoalidade”, o que provavelmente trans- parecerá ao leitor no decorrer deste livro, mas, daí a negar a legitimidade e originariedade de nossa experiência mais ime- diata (real) com a vida, que é a de estar-situado-em-um-mundo, em meio a outras “coisas e pessoas”, especialmente quando se trata de amor, que é sempre uma espécie de relação cuja natureza procuramos compreender, vai uma longa distância. Tal distância é comparável àquela que certamente separa a doutrina cristã da negação da vontade daquela a ser estabelecida no século XIX por Schopenhauer, um ateu que, se inicia sua obra central, O

mundo como vontade e representação, com a contundente sentença

“O mundo é minha representação”, uma espécie de imagem mental produzida no sujeito, diz também ser esta toda a realidade.

A real concretude da vida e de nossa experiência de mundo não é ali atirada pela janela, nem pode sê-lo. Aliás, é com abuso da linguagem que Deus é considerado uma “pessoa”, uma vez que, sendo-o, certamente não o é à nossa maneira, seja na condição imposta pelo pecado, seja na condição original – em um caso como no outro Deus não pertence à “realidade humana” e seu mundo. Como observa outro místico notório, Eckhart, em seu sermão 52, Deus é indivíduo apenas do ponto de vista da criatura.

É conveniente recordar uma ironia de Nietzsche no §67 de

Além do bem e do mal: “O amor a um único ser é uma barbaridade:

pois é praticamente às expensas de todos os outros. Também o amor a Deus” (NIETZSCHE, 1996, p. 68)23. O caráter irônico desta

máxima fica claro quando nos remetemos a Aurora, livro escrito por ele anos antes, cujo §488, intitulado “Contra o esbanjamento do amor”, afirma que o amor exclusivo só é apreciado ou mesmo apreciável por quem tenha “amarga necessidade” de amor, não por aquele que tenha o “coração cheio” (NIETZSCHE, 2004, p. 247; 2012, p. 32). De que lado estaria Deus? Ou ainda: que mesquinhez não se lhe atribui ao dedicarmos-lhe amor exclusivo e como se

fosse uma pessoa de fato? Certamente o fiel responderá que Deus

não precisa de nosso amor, e estará perfeitamente correto em fazê-lo! Será antes por nossa inferioridade que não devemos amar nossos semelhantes ou seres ainda mais inferiores em seu lugar, ou tanto quanto a ele, ou menos ainda mais do que a ele... Mas a questão é se nossa “retificação” vale o autodesprezo e o desprezo de toda criatura em nome daquele a quem não deve importar (ou ser necessário) nosso amor, se de fato o sentimento de ser amado é algo que apenas o inferior deve oferecer. Por outro lado, se amar é também, e sobretudo, proteger, não caberá ao fraco, aquele de coração esvaziado, ao aflito, pleno de neces- sidades, ser este o amado? Este é um dilema que as doutrinas cristãs da caridade procuram sempre resolver, mas, como já disse antes, o desejo de exclusividade – aqui, uma exigência

ontológica – é uma perversão do desejo de reciprocidade e, nesse caso, atribuí-lo a Deus parece-me antes algo de blasfemo e impiedoso. Isto nos dá uma pista acerca de algo perturba- dor: no subterrâneo existencial de doutrinas como estas, que inclusive negam que o egoísmo nos seja natural, jaz e serve de fundamento a verdade que tanto descontentara já Platão: o amor humano é egoísta. Sim, veremos em que sentido as dou- trinas cristãs da caridade estão radicadas e buscam satisfazer um contradito desejo egoísta. Não penso que o amor humano somente possa ser pensado à luz do egoísmo – se assim fosse, sequer teria iniciado este livro –, mas é assim que comumente se dá, é assim que o Cristianismo o compreende, razão pela qual nos oferece inestimáveis contribuições, e é assim, neste aspecto, que Nietzsche concorda com Platão ao dizer, no §2 de

O caso Wagner, citando Goethe e Benjamin Constant:

Eles [os artistas] acreditam ser desinteressados do amor, por querer o benefício de outro ser, às vezes contra o benefício próprio. Mas em troca desejam possuir o outro ser... Nisso nem mesmo Deus é exceção. Ele está longe de pensar: “que te interessa, se te amo?” – ele se torna terrível quando seu amor não é correspondido. L’amour – uma frase verdadeira entre os homens e entre os deuses – est de tous les sentiments le plus

égoïste, et par conséquent, lorsqu’il est blessé, le moins généreux

[O amor é, de todos os sentimentos, o mais egoísta, e, por conseguinte, o menos generoso quando é ferido] (Benjamin Constant)” (NIETZSCHE, 2012, p. 44-45).

Diagnóstico similar persiste em Freud (2012, p. 91) ao dizer, no sétimo capítulo de O mal-estar na civilização, a respeito do amor ao próximo: “A chamada ética natural nada tem a oferecer aqui, salvo a satisfação narcísica de o indivíduo poder se considerar melhor do que os outros”.

Defendo o ponto de vista segundo o qual Schopenhauer vai mais longe em sua doutrina da compaixão. Fiel à etimologia da palavra, que em alemão, mais explicitamente do que nas línguas latinas, soa como “sofrer-com” (Mit-leid), “condoer- se”, “comiserar-se”, Schopenhauer funda sua doutrina na

experiência do sofrimento, do padecimento compartilhado. Aqui, o aniquilamento de toda pessoa, sua dissolução geral na dor universal de viver em meio à necessidade e à inutilidade do esforço pela própria conservação, que apenas adia a morte sem jamais poder suprimi-la do destino comum, não traz consigo o consolo da adesão a um outro querer, à vontade de um deus. Ao contrário de servir de apoio à máxima esperança, a compaixão schopenhaueriana consiste na desilusão de toda esperança instilada em cada um de nós por um querer egoísta que não admite limites para seu ímpeto devorador. Embora procure provar que o egoísmo é o mais fundamental dos instintos, tal como o sexual entre os seres vivos, amor sexual e egoísmo são separados por Schopenhauer quase tanto quanto se pode separar o mundo como vontade e o mundo como representação: a ilusão do amor, segundo Schopenhauer, consiste justamente no fato de o amante acreditar estar agindo em nome de uma felicidade pessoal. Tudo isso, no entanto, poderá ser abordado mais detidamente no quarto capítulo, sendo mais importante no presente momento atentar para a ideia de que a superação da pessoalidade e do egoísmo que ela implica pela negação da vontade não precisa nem deve significar a adesão a uma vontade e a um amor divinos em detrimento de tudo que é humano, ainda que a supressão do egoísmo incorra na supressão do amor sexual pela via da supressão do desejo em geral. A diferença fundamental entre Schopenhauer e os cristãos, no que concerne à moral do autoaniquilamento, dito brevemente, remete à própria ambiguidade da expressão “não querer”, que Schopenhauer seguramente aprendeu junto à filosofia oriental e ensinou a Nietzsche.

Segundo os budistas, querer (ansiar) não mais querer é ainda um querer e, portanto, uma perturbação do espírito. Como diz o erudito em um diálogo escrito por Heidegger:

Não-querer significa, em primeiro lugar, um querer, um querer dominado por um não, mesmo no sentido de um não que incide sobre o próprio querer e o recusa. Não-querer

significa, portanto, recusar voluntariamente o querer. A expressão não-querer significa, também, em segundo lugar, o que é pura e simplesmente estranho a todo o tipo de vontade (HEIDEGGER, [s.d.], p. 32).

Assim, enquanto o autoaniquilamento da vontade é tomado como princípio e como meta para realização de algo, ainda se está no domínio de uma vontade que, como tal, é sempre egoísta e interessada. Não é por outra razão que a doutrina do livre-arbítrio é essencial à fé na salvação – a vontade pessoal é sacrificada, mas não toda vontade. A vinculação entre amor e vontade (negada ou afirmada) é o sinal dos novos tempos... Mas como o amor humano pode encontrar sua tranquilidade ou sua serenidade enquanto for um ímpeto da vontade para algo, seja profano ou divino? Nesse ínterim, tanto o amor erótico quanto o caritativo parecem sofrer de uma limitação análoga, limitação jamais suportada pela vontade e, portanto, fonte de males. O amor, enquanto adesão a um objeto, divino ou mun- dano, converte-se em peso e, enquanto peso, exige repouso, ser deitado por terra por toda a eternidade, e ainda devemos aceitar o dogma de que tamanha ousadia esteja em conformidade à vontade de um deus.