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Tendo sido superado o Eros cósmico como divindade pro- motora da fertilização, porém sem filhos, condenada pela cultura em razão de seu estado bruto e pobre com relação aos afetos humanos, através de Hesíodo conhecemos sua origem renovada no verso 201 da Teogonia, no qual o novo Eros é mencionado pela

primeira e última vez em sua obra! Não se pode afirmar, como

fazem alguns, que este Eros nasce de Afrodite como um filho seu em sentido próprio. Afrodite, emersa da espuma do mar de Chipre mediante a queda da “carne imortal” da genitália de Urano como consequência da mutilação infligida por seu filho Cronos, é uma divindade estrangeira. Seu atributo principal é a beleza, vendo-se sempre seguida, ou seja, acompanhada pelo Amor, isto é, por Eros. Seria mais correto dizer, então, que Eros é ligado a Afrodite por uma “philia”, que sua proximidade representa a afinidade entre amor e beleza. No diálogo Banquete, de Platão, a propósito, testemunha-se a filiação ainda indeterminada ou muito controversa de Eros, permitindo que se lhe aponte como mãe a Pobreza, que o teria gerado, segundo o ensinamento de Diotima relatado no discurso de Sócrates, durante a festa pelo nascimento de Afrodite, assim concluindo: “Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela” (203 c) (PLATÃO, 1983, p. 35).4

Desse modo, é por ser acompanhada pelo Amor, graças a sua beleza, que Afrodite recebe também o amor como atributo, como algo que sua presença traz consigo. Não obstante, despertando

desejo por sua beleza, Afrodite, conforme já foi dito, é associada à

4 É necessário observar, contudo, que Platão, no diálogo Fedro (242 d), sem maiores esclarecimentos, faz, através de Sócrates, menção a outro Eros, filho de Afrodite. A existência de duas Afrodite já é indicada no Banquete através do discurso de Pausânias, no que se baseará Plotino ao falar de dois Eros, um sendo filho da Alma celeste, outro, da Alma do mundo, as quais são identificadas com as duas Afrodite. Por se tratar de uma alusão vaga àquela que se encontra no Fedro e, apoiando-me no que diz Plotino, a saber, que Afrodite gera pela pura

contemplação, pode-se concluir que essa ocorrência não prejudica

o que digo neste parágrafo. Na verdade, o Eros cujo nascimento é contado por Diotima é um terceiro, pois não se confunde nem com o celeste nem com o mundano referidos no discurso de Erixímaco, sendo Plotino quem estabelece a hierarquia entre eles, descartando, por sua vez, o Eros que denominei “cósmico”, aludido apenas no primeiro discurso do Banquete, proferido por Fedro.

sexualidade, sendo Eros também visto como o impulso dirigido à realização desse desejo. Essa sensível diferença parece se encontrar na base da distinção entre dois Eros e duas Afrodite, havendo um par profano e outro purificado. Não há de ser sem importância, por fim, que Eros acompanhe Afrodite como um sucessor, em Hesíodo, tal como Ares é acompanhado por Eris como uma irmã, segundo Homero – o amor segue a beleza; a discórdia anda junto à guerra.

Nesse sentido é que entendo Afrodite como deusa-mãe do Amor: pois a beleza traz e leva o amor consigo, depois de si, sendo para mim equivocada a interpretação usual e até proverbial de que a cegueira do Amor – Eros chega a ser representado como vendado por Afrodite – se deva à incapacidade de o amante enxergar os defeitos do amado, muito embora, posteriormente, a intenção possa ter sido esta. A meu ver, pelo contrário, o amor

não vem antes que se veja a beleza, sendo impossível amar o feio

para que, somente então, este pareça belo; o feio e o defeituoso são excluídos em face do belo, sendo impossível o amor a quem (ou que) não vê, bem como amar “sem ver a quem”, a menos que não se trate aí de amor a alguém. Plotino, no §3 do quinto tratado da terceira Enéada, “Sobre o amor”, chega a vincular etimologicamente o nome de Eros à palavra que indica o ato de ver, “horasis”, depois de ter dito, no §2, que Eros “é o olho com o qual é dado ao desejante ver o objeto do seu desejo” (PLOTINO, 2002, p. 105). Eros é o intermediário entre o amante e o belo/ bem-amado. A beleza guia o amor como este guia nosso olhar para a beleza, de tal modo e tão essencialmente que o amor não

tem olhos para o feio, da mesma maneira que o amor também

não é algo que se produza espontaneamente em nós sem que nos encontremos já diante de algo ou alguém belo. Por sua vez, como se trata de uma mediação, é apenas pelo amor que,

para nós, há beleza, o que significa que o não reconhecimento

da beleza indica incapacidade para amar ou falta do amor. Suponho ser nesse sentido que, em sua cegueira física, pelo amor de Cristo, Paulo teria sido capaz de ver com os olhos da

alma sua glória, que já se encontrava lá desde sempre. Não se trata aqui de uma disputa dialética vulgar sobre a anterioridade do ovo ou da galinha, mas da consideração do modo grego de pensar, ao menos àquela altura de sua história, servindo como evidência o que há de comum em todos os discursos sobre o amor expostos no diálogo Banquete, como no Fedro: o amor está sempre ligado ao belo, jamais ao feio. Se se ama algo ou alguém feio sob algum aspecto, o que se ama não é isso, mas o que há de belo e, se assim se ama o todo, se o ama em virtude dessa beleza que só o amor pode fazer ver. Logo, não há tal coisa como amar em virtude do que não se vê.

Uma imagem recente dessa verdade pode ser encontrada na canção “As coisas tão mais lindas”, de Nando Reis: “Entre as coisas mais lindas que eu conheci/ Só reconheci suas cores belas quando eu te vi// E as coisas lindas são mais lindas/ Quando você está/ Onde você está/ Hoje você está/ Nas coisas tão mais lindas/ Porque você está/ Onde você está”.

Ora, os pais, amando seus filhos, não os consideram sempre os mais belos, como na jocosa (e trágica!) fábula da mãe-coruja, registrada por Esopo no século VI da Era pré-cristã? E não será esse o mais incondicional e natural dos amores, mesmo entre os animais, como garantem a fábula e tantos pensadores como o próprio Platão? Sendo esse o caso – que, todavia, deverá ser aprofundado em outro momento –, por que não admitir antes que é a própria beleza da maternidade/paternidade a trazer consigo esse amor, do mesmo modo que a morte de um filho, fatalidade tida como a mais atroz e antinatural, pode ser capaz de aniquilar toda a capacidade dos pais para o reconhecimento da beleza e, portanto, para voltar a amar até mesmo um ao outro? Nisto se enraíza a abominação do infanticídio, dos sacrifícios a Moloq, os tormentos de Agamêmnon e a sede de vingança de sua esposa Clitemnestra – o extermínio da prole é um crime contra a natureza, contra o próprio Eros cósmico. Os gregos até mesmo criam em divindades incumbidas de vingar crimes contra consanguíneos, os quais tantos poemas trágicos inspiraram!

Enfim, como amar ou se sentir amado quando não se encontra beleza alguma na vida, sobretudo quando se a destrói, ou como ter olhos para a beleza quando não há amor?! Isso vale – importante dizer! – tanto para o amor à superfície quanto para o amor à intimidade e, por isso, é tão comum se temer parecer feio aos olhos do amado, seja essa suposta feiura uma consequência da idade, da doença ou de um acidente, seja pela possibilidade de ter exposta alguma falha no próprio caráter. Esse tipo de temor, aliás, pode ser reconhecido mesmo entre pais e filhos, aparecendo sob a forma da possibilidade de um se envergonhar diante do outro – nisto se nutrem os princípios de honrar os pais e zelar pelos filhos. Caso contrário, se realmente fosse verdade que o verdadeiro amor é cego na medida em que não vê defeitos, não apenas tais temores seriam injustificáveis; pior do que isso, visto de outro ângulo, já que, de fato, muitos deixam de reconhecer justificativas para tais temores: a igno- rância, que é um tipo bastante resistente de cegueira, seria o único obstáculo para que o amor fosse facilmente destrutível por qualquer eventualidade e pela própria natureza, ou seja, desde que se tornasse impossível estar cego diante dos defeitos, desde que o amor fosse obrigado a se tornar compaixão. Eu diria mesmo, antecipadamente, que ignorância e amor são coisas que, em certo sentido que deverei procurar esclarecer, se excluem. Mas será o amor algo assim tão “subjetivo” já que, com certeza, não é “objetivo”? Ou será o amor uma relação, coisa que não se pode estabelecer com o que se ignora, com o que não se “vê”? Afinal, vimos até aqui que todo amor aparece como um intermediário entre partes em vista de um todo ou de um terceiro. Jung concordaria, a julgar pelo sentido lato que confere a Eros em um de seus registros: “É uma ideia tola, que os homens têm. Eles acreditam que eros seja sexo, mas está errado. Eros é relacionamento” (JUNG, 2005, p. 29). O que há, sim, são tipos de “amores”: alguns voltados para o durável, outros para o transitório; alguns movidos pela beleza corpórea, outros pela espiritual, como já distinguiu o Sócrates platônico. Aliás, é por

meio dessas distinções que se poderá, como veremos, dizer algo mais sobre a cegueira do amor e, especialmente, a que tipo de amor se refere. Enquanto isso, pensar que o amor segue a beleza não apenas dá conta de toda essa diversidade, mas também, e principalmente, aponta justamente para a cisão operada na essência do amor desde Platão, o que também deverá ser abordado extensamente neste livro.