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Empédocles, natural de Agrigento – cidade ainda exis- tente com o mesmo nome, situada na Sicília –, viveu ao longo do quinto século da Era pré-cristã, sendo contemporâneo de Leucipo – o primeiro atomista, como se supõe –, de Eurípides e do jovem Sócrates. É, sem dúvida, um período importante para o assunto que estamos começando a tratar. Essa importância se deve não apenas à diversidade de representações do Amor e seus correlatos que se multiplicam a partir daí, mas especialmente às transformações que podemos constatar diante disso.

Em sua poesia – em geral, era esta a forma por meio da qual os “pré-socráticos” transmitiam suas ideias por escrito –, o

Amor (Philotés), pela primeira vez na Filosofia ocidental, exerce um papel central. Personificado, como também são os quatro elementos (fogo, ar, água e terra), consiste, segundo Empédocles, em uma força primordial da natureza cujo atributo é aproximar e unir de modo ordenado, em corpos, as inúmeras formas que se constituem, a princípio, como no atomismo, de modo casual e transitório. Como força opositora ao Amor, já que toda força na natureza tem uma contraparte, Empédocles identificou a Discórdia (Nikos). Eis os protagonistas de sua cosmogonia. Vale observar que Philotés, ou Filotas, e Nikos são nomes femininos e, a propósito, em Empédocles, Philotés é intercambiável ou equivalente de Afrodite, a célebre deusa grega da beleza (e, como se costuma dizer, do amor) – reservemos a relação amor-beleza para o próximo capítulo. Vale observar, também, que isso parece indicar uma relação implícita entre Philotés e sexualidade, como ocorrerá com o futuro Eros, pois o nome de Afrodite já era vinculado ao desejo sexual, como se conserva em nossa palavra “afrodisíaco”. Logo veremos, no entanto, que a questão não é tão simples como pode parecer sob o olhar moderno.

Embora os quatro elementos fossem personificados rece- bendo nomes de divindades supremas, não são eles a criar o mundo, mas a constituí-lo à maneira como hoje entendemos um composto químico ou à maneira como diversos mitos descrevem o primeiro homem como tendo seu corpo feito de uma mistura de seco e úmido, terra e água (isto é, barro ou lama), insuflada pelo espírito (ar) que o coloca em movimento como faz o vento – daí a palavra latina “anima” para designar a alma – e tornada inteligente graças à adição do fogo, símbolo do esclarecimento e do espírito. Aliás, os gregos denominavam “empsychoi” os seres vivos, ou seja, como “dotados de alma” aqueles que, falando aristotelicamente1, tinham em si mesmos o princípio de seu

movimento; já “pneuma” também adquire a acepção de “espírito”.

1 Deve-se, contudo, fazer justiça a Platão, que já antecipa a tese con- sagrada por Aristóteles, por exemplo, no diálogo Fedro, 245 c-e (Cf. PLATÃO, 1960. p. 218).

Platão, por sua vez, seguindo Heráclito ou fontes ainda mais remotas, consagra na Filosofia a analogia entre fogo e saber – afinal, o fogo, com sua luz, ilumina e esclarece nossos caminhos quando o Sol, fogo celestial, está ausente. O precedente de Platão pode ser, portanto, reconhecido no mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e o concede aos homens para que estes possam conhecê-los. Isto também evoca o mais antigo, arcaico dualismo entre luz e sombra, branco e negro, como respectivos representantes do Bem e do Mal, algo cujas terríveis consequências para a fantasia humana conhecemos bem. Além disso, era muito significativa a relação entre conhecimento e visão, faculdade que depende da luz para se realizar.

A metáfora do esclarecimento (ou das luzes) como saber jamais seria abandonada e, mais adiante, retornaremos à vin- culação platônica entre o Sol – que remete ao deus Apolo –, a sabedoria e a beleza. Quanto à composição do corpo, pode-se dispensar maiores comentários, bastando o que acabamos de ver para termos “clara” a relação entre os quatro elementos na constituição das formas de vida segundo o pensamento antigo, ficando “claro”, também, por que os “pré-socráticos” são muitas vezes qualificados como “físicos”, designação que poderia ser deficientemente traduzida por “naturalistas”.

Trata-se, em verdade, de uma doutrina muito anterior a Empédocles e, talvez, a mais antiga das especulações afins daquilo que hoje chamamos Química. Eu ainda arriscaria que Pitágoras também foi influenciado pela doutrina dos quatro ele- mentos um século antes ao propor a unidade essencial da tétrade (ponto, linha, superfície, volume – elementos matemáticos de todos os corpos) e seu desdobramento na dezena (1+2+3+4=10) – em suma, aí se reduzia a totalidade do mundo e sua computa- bilidade, seja como Unidade, seja como Multiplicidade. Ademais, por diversas razões, é mais por intermédio do pitagorismo que a doutrina dos elementos se insere na cosmogonia platônica exposta no diálogo Timeu. Entre Pitágoras e Empédocles, que muito o admirava a julgar pelo fragmento 129 legado por Porfírio

(século III), também tivemos Heráclito e Parmênides – este último um itálico, como também no sul da Península Itálica Pitágoras, vindo de Samos, vivera e erguera sua escola/seita. Parmênides já se referira à deusa Afrodite como princípio de união. Heráclito, por sua vez, colocara no centro de sua doutrina os papéis de

Pólemos e Harmonia, regendo, respectivamente, o conflito e a

junção, a contínua desagregação e agregação das coisas no mundo. É interessante observar que a deusa Harmonia será apresentada como filha de Afrodite e Ares, o deus da guerra...

Em vista desse histórico, por um lado, se vê reduzida a originalidade de Empédocles, mas, por outro, seu espírito conciliador, talvez mesmo sincrético, produziu uma ousada síntese, em tal medida que não deixa de ser intrigante o tipo de paralelos que podemos estabelecer com ela. Por exemplo, retomando a constituição de toda a Natureza por quatro ele- mentos unidos pelo Amor, podemos lembrar o DNA, que, em toda a natureza viva conhecida, se constitui de apenas quatro bases, sempre as mesmas, organizadas em pares ligados por uma ponte de hidrogênio, graças à qual se sustentam. Deixando à parte qualquer rigor científico, bem como qualquer euforia mística de quinta categoria, ainda assim podemos nos deleitar com esse feliz espelhamento entre Bioquímica ultracontempo- rânea e Alegoria arcaica. Por fim, e talvez o mais interessante: conferindo uma particular unidade à essência de cada uma das doutrinas filosóficas que o precederam, Empédocles parece se encaminhar para um modo de pensar ainda mais remoto, harmoniosamente incluindo-o em sua síntese até que possa afirmar, com mais veemência do que qualquer outro já fizera: O mundo que conhecemos, ordenado, e por isso chamado kosmos, é obra do Amor. Assim, poder-se-ia dizer que a própria poesia filosófica de Empédocles procura sê-lo também, avançando na filosofia mediante um retorno à tradição – significa dizer: parece que o pensamento de Empédocles é ele mesmo inspirado por aquela força cósmica unitiva e, portanto, um autêntico espelho da Natureza.