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Análise de Conteúdo das disputas discursivas da retórica ‘ideologia de gê­ nero’ no Brasil e em Portugal

Os discursos operam a dominação de forma sutil, mas também utilizam ameaças de ‘privações severas’ e cálculos estratégicos dos grupos envolvidos, formando o ‘jogo demo­ crático’. Jogo no qual pessoas ou grupos tentam legitimar sua visão de mundo e política atra­ vés de recursos disponíveis, enquanto outros os contestam, podendo modificá­los. Um jogo no qual a longo prazo alguns tem vantagens sobre outros, mas que não é absoluto. Nesse sentido, a análise da heteronormatividade nos permite visualizar como a relação entre a ‘do­ minação’ e o ‘poder’ estão se modificando ao longo da história, ou podem ser modificadas observando as situações episódicas e conflituosas presentes nas produções jornalísticas.

Para operacionalizar a pesquisa e cumprir seu objetivo de fazer uma observação longi­ tudinal e comparativa, definimos por analisar as produções online dos jornais com maior cir­ culação digital do Brasil e de Portugal. Os países foram selecionados por apresentarem

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proximidades, mas também porque os dados do Google Trends8 da busca pelo termo “ideo­

logia de genero” nos países nos mostram diferenças entre eles quanto às disputas discursivas em tela, relacionadas ao interesse e visibilidade do termo (Trends, 2020).

Com base neste dado, justifica­se também a escolha dos jornais com maior circulação nos países por sua expressão de alcance nacional (Mídia Dados, 2019; APCT, 2019), enten­ dendo que “as histórias tendem a se espalhar verticalmente, em uma hierarquia de notícias, com editores em nível regional frequentemente se submetendo a esses jornais de ‘elite’ e aos canais de notícias, que estabelecem a agenda midiática” (Vimieiro, 2010, p. 89).

Gráfico 1 ­ Ocorrência da busca no Google pelo termo “ideologia de genero” em Portugal e no Brasil de 2004 a 20199 Fonte: Elaboração dos autores com base nos dados do Google Trends (Trends, 2020). Acesso em 27 abr. 2020.

O primeiro passo foi fazer a busca pelas produções com o termo “ideologia de gênero”

no site dos jornais10. Os resultados iniciais passaram pelas etapas da Análise de Conteúdo

de: pré­análise, exploração do material e tratamento dos dados. Definimos por utilizá­la como procedimento para se analisar textos e gerar inferências sobre o contexto social das produções, por esta ser comumente aplicada em estudos das comunicações (Bardin, 1995). Na etapa de pré­análise excluímos os resultados do Expresso que não apresentaram o termo ou suas variações (ideologia do género), e da FSP os referentes: a matérias iguais, ao “Painel do Leitor” e do jornal Agora São Paulo (pertencente ao Grupo Folha). Mantivemos nos re­

sultados as produções informativas11 e as opinativas12 (pessoais e do jornal), tendo como

8 Google Trends é uma ferramenta que fornece dados dos termos buscados no site Google, o mais acessado no mundo, de 2004 até a data presente. A ferramenta mostra gráficos com a frequência que foram pesquisados em nível mundial ou em países específicos, permite selecionar categorias, o tipo de pesquisa efetuado e as notícias relacionadas aos termos buscados como possíveis motivos do aumento ou diminuição do volume de buscas. 9 Para melhorar a visualização dos dados no gráfico, os resultados iguais nos dois países em períodos contínuos,

principalmente os iguais a zero, foram agregados.

10 Na FSP obtivemos 384 resultados, delimitando o período de 01/01/2000 a 31/12/2019; no Expresso, sem deli­ mitação de tempo, mas recortando os resultados até 31/12/2019, obtivemos 129 resultados.

11 Classificamos as produções informativas como entrevistas e matérias, sendo esta a união de notícias e reportagens, pois como aponta Bonini (2003) em muitos casos são utilizadas como mesmo gênero jornalístico.

12 Diferenciamos as produções opinativas entre do jornal (editoriais) e pessoais (Artigos opinião, Blogs, Colunas, Podcasts, Resenha, Vídeo debate), pois a primeira refere­se a voz da instituição jornalística e as outras são ex­ pressões de opiniões pessoais de jornalistas ou pessoas convidadas.

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base as teorias do jornalismo que partilham do paradigma das notícias como construções sociais que contribuem com a construção da própria realidade (Traquina, 2005), pois os “pro­ dutores de conteúdo midiático estão imersos nesse pano de fundo cultural que os transpas­ sam e que eles também ajudam a construir” (Vimieiro, 2010, p. 66). Como resultado final e corpus deste trabalho temos 49 produções do Expresso e 328 da FSP.

Para as etapas de exploração do material e tratamento dos dados, construímos um Livro de Códigos, com base em pesquisa anterior (Souza, 2017), formando os elementos para ana­ lisar as disputas discursivas do termo “ideologia de gênero”, permitindo “a articulação ne­ cessária para identificarmos entendimentos gerais, construídos com base na cultura, de forma ampla, e que se materializam discursivamente” (Vimieiro, 2010, p. 57). Pela limitação de espaço apresentamos aqui algumas categorias, mas para maior transparência e possíveis replicações do estudo disponibilizamos as tabelas completas dos resultados (https://bit.ly/318JLrh).

O primeiro destaque das disputas discursivas envolvendo a retórica da “ideologia de gênero” está na diferença quantitativa de resultados entre os dois países. O jornal brasileiro apresenta muito mais resultados com o termo (328), do que o jornal português (49). Alguns podem argumentar que isto deve­se a diferença populacional entre os países, mas nossa análise dos resultados aponta para outras evidências. Como a presença na Folha de oito edi­ toriais, todos argumentando sobre a falácia do termo, o que demonstra que as polêmicas ti­ veram grande visibilidade no Brasil, tendo o jornal manifestado sua opinião sobre elas, já que este tipo de produção é uma das formas do periódico agendar temas e prioridades (Mon­ t’Alverne, 2016).

Tabela 1 – Tipo e ano das produções do Expresso e da FSP com o termo “ideologia de genero” entre os anos de 2000 e 2019

Fonte: Elaboração dos autores com base nos resultados de busca pelas produções com o termo “ideologia de genero” no site do Expresso (https://bit.ly/2E2Cd0s) e da FSP (https://bit.ly/3iPjAfd).

141 Quando mudamos o foco para as porcentagens, percebemos semelhanças entre os paí­

ses que não diferem significativamente nas produções informativas e opinativas pessoais. Tendo o jornal português uma representatividade um pouco maior de matérias e entrevistas

que o brasileiro. Este mesmo padrão é percebido nas ‘Rubricas’13 – seções em que as produ­

ções foram veiculadas – quanto a ‘política’ e ‘seção de opinião’, estando as diferenças nas rubricas ‘mundo’ e ‘outras rubricas’. Estas duas categorias são relevantes pois o tipo e espaço onde a produção foi veiculada falam também dos sentidos e abordagens definidos para a questão tratada (Vimieiro, 2010). Via de regra, as produções consideradas como principais pelos jornais são dedicadas à política nacional ou internacional, sendo as seções especiais como opinião, esporte ou cultura colocadas com menor destaque (GMMP, 2020).

Referente à rubrica ‘política’, maior resultado nos jornais, apontamos que no período analisado os países passaram por processos eleitorais. O destaque nos resultados do Brasil são as eleições de 2016 (para prefeitos e vereadores) e 2018 (para presidente, governadores, senadores, deputados estaduais e federais) em que o termo “ideologia de gênero” foi utili­ zado como ‘bandeira de campanha’ de Bolsonaro e de outras candidaturas de partidos de direita. Já em Portugal o termo aparece em sete matérias sobre as eleições europeias de 2019, todas relacionadas à postagem no Facebook do Patriarcado de Lisboa sobre a classifi­ cação dos partidos que «defendem a vida», em que um dos critérios é ser contra a “ideologia de gênero”. Uma matéria é sobre a postagem e as outras seis sobre as respostas de repre­ sentantes dos partidos citados (PCP, CDS, ‘Nós cidadãos’, Basta, PSD e PS).

Gráfico 2 – Autoria e Rubrica das produções do Expresso e da FSP que apresentam o termo “ideologia de ge­ nero” entre os anos de 2000 e 2019

Fonte: Elaboração dos autores com base nos resultados de busca pelas produções com o termo “ideologia de genero” no site do Expresso (https://bit.ly/2E2Cd0s) e da FSP (https://bit.ly/3iPjAfd).

13 A ‘Rubrica’ foi classificada como: ‘Política’: relacionadas à política com referência à eleições, parlamentares, seus es­ paços e ações dentro do país, e manifestações em reações a propostas e debates políticos; ‘Mundo’: referentes a eventos e debates internacionais de outros países que não o do jornal, no mundo, ou de instituições com repre­ sentação global; ‘Seção Opinião’: referentes as produções classificadas como ‘Opinativa Jornal’ e ‘Opinativa Jornal’; e ‘Outras rubricas’: relacionadas à cultura, artes, música, publicidade, seminários, celebridades, mídia, etc.

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Na rubrica ‘mundo’, o interessante é que a maioria dos resultados dos jornais correspon­ dem ao governo Bolsonaro e seu séquito. No Expresso (7) duas são matérias sobre as eleições na Espanha (uma sobre a participação decisiva das mulheres no resultado e sobre o jornal El País ter sido banido da campanha do Vox) e cinco matérias sobre o governo de Bolsonaro e Damares Alves – ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, destaque para os tí­ tulos “Bolsonaro promete acabar com a ‘porcaria marxista’ nas escolas” e “Azul para os me­ ninos e cor­de­rosa para as meninas: o Brasil entrou numa nova era, diz ministra de Bolsonaro”. Na FSP (24), metade fala sobre o governo Bolsonaro (relacionado à diplomacia brasileira, seu discurso na ONU e sua aproximação com o governo Trump e sua linha política). Das outras matérias destacamos que quatro se referem à documentos e ações da Igreja Católica e quatro falam sobre eleições em outros países (Colômbia, Bolívia, Uruguai e Argentina) sendo um dos títulos “‘Bolsonara’ argentina defende frente anti­aborto nas eleições deste ano”.

Em ‘outras rubricas’ o Expresso tem apenas uma postagem em blog sobre o lançamento de um disco pós movimento #MeToo, que fala sobre espaço privado e feminismo. Na Folha há mais resultados (26), com maior diversidade e abordando desde questões relacionadas à televisão e teatro na seção F5 (8), passando por uma briga judicial (“Briga judicial entre pro­ fessora e aluna ilustra racha político no país”) e chegando aos Seminários Folha sobre Explo­ ração Sexual Infantil (2).

Quanto a ‘autoria’ das produções, ressaltamos que a maioria das portuguesas são feitas por mulheres (26), sejam estas jornalistas (21) ou convidadas (5), enquanto as brasileiras são escritas por homens (175), jornalistas (123) ou convidados (52). As produções ‘sem autoria’ têm porcentagens próximas, com a diferença de que as do Expresso (6) correspondem a duas escritas pelo jornal, três de autoria da agência de notícias Lusa e apenas uma sem autoria. Enquanto na Folha (46) são majoritariamente sem autoria (41) e apenas cinco são identifi­ cadas como de outras agências de notícias (Agência Brasil, BBC Brasil, Ansa e ‘da redação, com agências internacionais’).

Em relação ao uso do termo “ideologia de gênero” nas produções, os resultados do Ex­ presso (sociológico – 2, conservador – 46, ambos – 1) e o da Folha (sociológico – 4, conser­ vador – 319, ambos – 5) mostram que em quase totalidade os dois países utilizam o termo no seu viés conservador. Esta categoria é importante, pois “os termos utilizados para fazer referência à questão indicam valores compartilhados culturalmente” (Vimieiro, 2010, p. 82). Estes resultados aliados à análise qualitativa das produções possibilitam construir um panorama do debate sobre as temáticas de GDS no Brasil e em Portugal. A primeira evidência relevante é a diferença temporal do uso do termo nos países com viés conservador relativo ao debate de políticas de Estado. No Brasil ele surge em 2004 e é amplamente usado desde 2015 nos debates dos Planos de Educação do país (Souza, Souza & Drummond, 2018). Em Portugal surge em 2013, mas apenas em 2019 ganha destaque com a ação de 85 deputados do PSD e CDS contra a lei aprovada que definia a obrigação do Estado em promover medidas na educação relativas ao “exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”. Como diz o jornalista Aurélio Costa (Expresso, 2019) “ideologia de gênero, já tardava a entrada na política portuguesa desta expressão”, mas para Louçã (2019) o termo não se fixou na política de Portugal, porque a direita do país teve o ‘mal da precipitação’ e não seguiu o modelo de Bolsonaro, em que

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é preciso que o medo amadureça, é preciso meses, anos de medo, é preciso muito ódio para que o ódio se torne uma voz. E isto foi tudo feito à pressa, não foi? Esgrimir a ‘defesa da família’ para tentar um voto religioso, sugerindo o missal e o confessionário para proteger a família (...) é simplesmente tosco. E inventar o perigo de uma ‘ideologia de género’ para criminalizar o feminismo ou o combate à homofobia (...) não é só tosco, é mesmo pateta. (Louçã, 2019, online)

Ao identificar os temas em pauta na sociedade e no parlamento de cada país no período analisado que podem ter suscitado as produções dos jornais é essencial frisar que as reações políticas mais enfáticas estão relacionadas ao debate das temáticas em políticas educacio­ nais. Isto demonstra que mesmo que esteja ocorrendo uma maior permeabilidade para po­ líticas específicas para as mulheres e pessoas LGBT, quando as temáticas são associadas às políticas educacionais, grupos religiosos e conservadores as veem como ameaças ao status

quo, criando reações mais efetivas. A diferença está que em Portugal as reações são relativas

à implementação da lei já aprovada, mas no Brasil se referem à exclusão dos termos e temá­ ticas dos Planos de Educação e da Base Nacional Comum Curricular. Reações que impedem o debate e proposições para solucionar problemas educacionais como a homofobia, sexismo e outras formas de violência, discriminação e preconceito como a pedagogia da sexualidade (Louro, 2000) e a pedagogia do armário (Junqueira, 2013) que afetam a qualidade da educa­ ção para todas as pessoas, causando taxas de distorção série­idade, abandono e repetência (MEC, 2009). Situação agravada para as pessoas trans, que já passam por exclusão ou trans­ tornos na esfera familiar e comunitária, e nas escolas enfrentam obstáculos para se matri­ cular, ter sua identidade respeitada (nome social), usar as estruturas escolares (como os banheiros) e preservar sua integridade física (Peres, 2009).

As produções também tornam inequívoco que o valor compartilhado culturalmente pelos países sobre o termo é o estabelecido pelo discurso anti­gênero. Mesmo quando utilizado por pessoas que descredibilizam este viés conservador, ele é reproduzido como o sintetizador do debate. Esta é uma das características de destaque da utilização do termo, na grande maio­ ria das produções não existe uma explicação, exemplificação ou argumentação sobre o termo. Como apontam outros estudos (Garraio & Toldy, 2020; Corredor, 2019; Souza, 2014), o termo é a expressão linguística de um monstro a ser combatido assim como outros a que está asso­ ciado (marxismo cultural, comunismo, socialismo, globalismo, feminismo, etc).

a ideologia de gênero se tornou um grande espantalho que enfeixa com sua envergadura frágil na estrutura, mas potente simbolicamente, sentidos que passaram a identificar por derivação a esquerda política com corrupção moral e favorecimento a segmentos popula­ cionais que não mereceriam habitar a nação. (...) Adjetivações que se desdobram em teias aparentemente desconexas, mas que compõem, de fato, uma trama social costurada pelas linhas do temor da violação de valores tidos como intocáveis (heterossexualidade, sexuali­ dade das crianças, família em modelo canônico, papéis de gênero, questões raciais) (...) Nesse cenário, ser a favor de se discutir esses temas e/ou ampliar o campo dos direitos para segmentos historicamente subalternizados em nossa sociedade, é colocá­los em risco. (Vieira Junior & Pelúcio, 2020, p. 99)

O perfil das pessoas que utilizam a retórica da “ideologia de gênero” também é definido nos dois jornais como conservadores e cristãos, confirmando a relação dos discursos sobre

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o sexo com as definições e textos da igreja católica, na delimitação de ‘padrões sexuais’ acei­ táveis (Foucault, 1988). Em específico, parlamentares que mobilizam o viés político discursivo contrário às temáticas não é uma exclusividade do Brasil e de Portugal. “Os ataques à ‘ideo­ logia de género’ têm vindo a marcar os debates políticos em várias zonas do globo das últimas duas décadas, tendo contribuído decisivamente para determinados resultados eleitorais” (Garraio & Toldy, 2020, p. 130), marcando uma “ascensão de uma extrema direita autoritária, nacionalista e ultraconservadora” (Pellegrino & Miklos, 2019). Outros exemplos de parla­ mentares são Trump nos EUA, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Erdoğan na Turquia, Viktor Orbán na Hungria, Matteo Salvini na Itália, entre outros. Como aponta Ferreira (2019): “Que gover­ nos elejam inimigos da pátria e criem narrativas de conspirações não é nenhuma novidade. O que há de novo é a entrada da retórica cristã na engrenagem”.