• Nenhum resultado encontrado

Análise e Interpretação de Narrativas

A análise temática das narrativas resultantes das entrevistas semiestruturadas resultou em dois temas principais ­ (In)Conformidade e Entre a Opressão e a Afirmação. O primeiro, (In)Conformidade, explora as noções e membros englobados no conceito de família. Na aná­ lise do subtema inconformidade, é possível concluir que para as pessoas de famílias LGB, a noção de família é aberta e surge como um lugar de diversidade humana e de celebração de união de pessoas que partilham algo em conjunto, além de laços de sangue ou compromissos legais. Mesmo na conformidade, as noções de família dos/as participantes continuam a ter como foco aspetos mais funcionais das relações humanas, continuando a questionar o es­ truturalismo subjacente à família tradicional. Dentro das (in)conformidades, a população

194

LGB está a dar visibilidade a novas formas de concetualizar a família, alargando­a a um con­ ceito mais diverso e inclusivo. Uma das entrevistadas expressa um exemplo de uma diversa e inconforme noção de família, uma vez que se foca na anti­estruturalidade:

Não há uma família, começo logo por aí…(…)… e há múltiplos tipos de família que podem ser desde um e os seus cães e os seus gatos e os seus passarinhos, a um mais um e os seus cães e os seus gatos e os seus passarinhos ou então e se calhar um rebento , que é seu de sangue ou adotado, sei lá, como poderá haver uma família que até nem têm ligação ne­ nhuma apenas são amigos que vivem juntos, e isso pode ser uma família, digo eu. Definição, eu acho que não há definição de família, assim como não há definição para o amor. É um conceito aberto, eu acho que sim.

Neste segundo exemplo, uma partilha que apresenta uma noção de família mais con­ forme uma vez que enaltece aspetos mais funcionais e universais associados à família, no entanto, ainda assim diverso e aberto:

Família são pessoas que se cuidam, que se amam ou que gostam, e que fazem parte do dia­a­ dia umas das outras, no fundo são uma parte constante da vida de alguém e que basicamente se cuidam e estão lá umas para as outras independentemente de tudo o resto. Isto é família.

Entre a opressão e a afirmação surge como segundo tema aquando da análise das vi­ vências coletivas e pessoais dos/as entrevistados/as, tendo em consideração as mensagens sociais impostas. Este tema permite compreender de forma mais alargada as expressões e formas da opressão e da afirmação nas vidas das pessoas LGB, destacando­se que a sua vi­ vência acarreta principalmente desafios e barreiras à sua identificação como família. Tal facto aparece também relacionado com os valores e regras subjugativas heterossexistas que pre­ valecem, sendo também a população consciente deste efeito. Neste âmbito, a inexistência de proteção legal surgia como um dos principais fatores de fragilidade social, no entanto é também abordada a importância da promoção de acessibilidade à diversidade como pro­ motora da verdadeira mudança social. Além disso, a designação como família e a sua consi­ deração como “normal” refletem a importância deste conceito como organização social para esta população. Em suma, para os/as participantes é clara a influência dos sistemas de poder na sua aceitação social, exprimindo estes/as variadas situações de opressão da sua livre ex­ pressão de identidade como pessoa e/ou família LGB. De seguida, exemplifica­se uma expe­ riência opressão e homofobia por parte de uma participante, seguida de uma narrativa afirmativa do espaço da família LGB:

Havia muitos desafios, por causa da homofobia. Ainda por cima, esta família iniciou­se antes de ser aprovado o casamento e a adoção, que são recentes, muito recentes. Depois passou por um período de pós aprovação da lei do casamento. Mas eu diria que mais desafios, van­ tagens não vejo muitas.

A minha família [LGB] é, como muitas famílias felizmente, um grupo de pessoas que o amor juntou, que a responsabilidade manteve unidas, e que a alegria, a loucura se quisermos, faz partilhar sorrisos.

195

Reflexões Finais

Os temas resultantes são ambos estádios opostos de um contínuo de análise social dos fenómenos, sendo interessante pensá­los como um espectro. Tanto para o primeiro tema, entre a inconformidade e a conformidade, como para o segundo, entre a opressão e a afir­ mação, as experiências das pessoas e das suas famílias podem ser interpretadas tendo em consideração essas duas noções. No entanto, é importante pensar que estas experiências não são todas da mesma intensidade e forma, pelo que se podem distribuir como um con­ tínuo. Destaca­se a importância do considerar das experiências das pessoas como fluídas entre os conceitos, e não como “categorizadas” em polos distantes.

A dicotomia da (in)conformidade e da opressão/afirmação, pode também ser interpre­ tada como um exemplo da situação das famílias LGB em Portugal, uma vez que estas também estão entre a aceitação e a vulnerabilidade, determinada pelo crescimento das condições legais e pela simultânea resistência de mudança social. Perante esta análise, é importante refletir sobre a urgência da resposta à opressão e à vulnerabilidade, para que o caminho seja de afirmação e aceitação, nunca esquecendo que entre a conformidade e a inconformidade, o mais importante é a sua plena, múltipla e segura expressão.

Os resultados apontam também que, cada vez mais, a família se resume na sua compo­ nente afetiva, necessária para equilíbrio emocional, suporte e estabilidade. A família parece não ser mais a instituição necessária ao posicionamento social que determina quem somos, onde tem de ser normativa para resultar em integração, mas o grupo em que nos apoiamos afetivamente. O caminho parece ser o de uma família cada vez menos institucional, e cada vez mais afetiva, no entanto, continuam a existir barreiras à sua expressão aberta e ostensiva na diversidade, reforçando­se assim o foco de ação futura. Silva e Smart (1999), reforçam a ideia de que, ao contrário das interpretações que insistem que os laços familiares estão cada vez mais enfraquecidos, as famílias continuam como uma entidade relacional crucial, e de­ sempenham um papel fundamental na vida íntima e nas ligações entre as pessoas.

É também importante refletir cuidadosamente sobre a influência política e social na ex­ pressão da família, tal como salientado pelos/as participantes. Neste âmbito, Silva e Smart (1999), defendem que embora as escolhas pessoais pareçam cada vez mais autónomas e fluidas, elas estão, de fato, intimamente ligadas às condições sociais que continuam a pro­ duzir tensões e anomalias. Há uma falta de congruência entre políticas baseadas em como as famílias devem ser e como elas realmente operam, no entanto isso não significa que o ca­ minho seja a abolição do apoio institucional à vida familiar. Ao invés, é o apoio por parte de estruturas políticas, das variadas formas de experiências familiares que pode melhorar as suas escolhas autónomas de “ser família”. Para tal, “é necessário levar a sério a fluidez e a mudança nos arranjos familiares, em vez de ver a própria mudança como algo perigoso e in­ desejável” (Silva & Smart, 1999, p. 2).

Pode­se também refletir sobre a influência do papel destas famílias LGB na mudança do paradigma familiar em Portugal e no ocidente, além dos restantes movimentos generali­ zados que organizam a vida pessoal adulta à volta de modelos muito diversos, e que distan­ ciam do casamento e da constituição de um núcleo familiar tradicional, como apontam os dados previamente apresentados neste trabalho referentes ao casamento, divórcio, famílias monoparentais e nascimentos fora do casamento. Talvez a mudança do paradigma se deva a relações de causalidade de ambos os sentidos, ou seja, que este movimento generalizado,

196

e hetero, na população para a diversidade familiar leva também a uma maior aceitação das famílias LGB. Esta ideia é suportada por Weeks, Donovan e Heaphy (1999) que sugerem que existem novos modelos LGB, semelhantes a padrões de rápida mudança das vidas heteros­ sexuais, o que não diminui a importância destas novas narrativas hetero. Pelo contrário, as novas narrativas reforçam as mudanças nas noções de família de uma forma ampla.

O presente trabalho não estaria completo sem uma referência às questões da (des)igual­ dade a que o caminho das famílias LGB está inerentemente ligado. Concordantemente, a re­ lação da família com as sociedades esteve sempre muito relacionada com reivindicações constitucionais a favor da igualdade, explica Mayeri (2017). Ao longo do tempo, o fracasso dos tribunais em reconhecer reivindicações baseadas em experiências interseccionais, levou a consequências abrangentes e duradouras para a lei da igualdade. Assim, segundo a autora, a proteção constitucional do status familiar tradicional, ignora visões mais amplas da liber­ dade individual e do pluralismo familiar, não tendo em conta diferenças raciais, económicas ou mesmo de igualdade de género. As sociedades têm um papel nas reivindicações consti­ tucionais a favor da liberdade sexual, e é importante que o Estado tenha um papel ativo no apoio à parentalidade, co­parentalidade, e cuidado da família alargada, independentemente da estrutura familiar ou do estado civil. Assim, de variadas formas as instituições políticas influenciam a construção das categorias sociais de família na sociedade, o que se encontra hoje mais do que nunca em causa pelo estado de democracia ameaçada em que nos encon­ tramos, estando assim, também, a liberdade sexual e familiar ameaçadas.

A reflexão sobre as principais conclusões retiradas para a aplicação prática foi, desde o início, um dos mais importantes objetivos deste estudo. Em primeiro lugar, contribui para que as noções de família sejam cada vez mais entendidas como múltiplas e abertas, valorizando­ se a sua funcionalidade como rede de apoio e desconsiderando­se a sua estrutura rígida. Além disso, permite também um melhor entendimento dos desafios das famílias LGB em sociedade, compreendendo experiências de discriminação internalizada, subtis socialmente ou diretas e explícitas que contribuem para um contexto opressor. A exclusão da família LGB no contexto histórico e na economia política global da atualidade retrata ainda que o seu papel nas rela­ ções sociais é heterogéneo e controverso, não sendo solução substituir o conceito (Spivak, 2010), mas sim promover a verdadeira inclusão e visibilidade nos contextos. As narrativas dos/as participantes salientam a importância desta acessibilidade nos serviços como escolas e hospitais, que podem significar verdadeiros ambientes de fragilidade para as pessoas. Re­ lativamente ao contexto Português, é reconhecido o caminho positivo ao longo dos últimos anos, salientando­se que ainda há mais etapas para se tornar um lugar verdadeiramente in­ clusivo, pois as mudanças legais nem sempre se retratam na mudança social.

O presente estudo, ao recolher as narrativas da população LGB das suas vivências fami­ liares, pessoais e sociais, dá a palavra a esta população e desta forma, espera contribuir para o ajustamento das respostas sociais às suas reais necessidades. De que a autora tenha co­ nhecimento, é o primeiro trabalho a investigar as vivências destas famílias em Portugal, cons­ tituindo uma oportunidade para melhor compreender as situações emergentes, em muito resultantes das recentes mudanças legais no país.

Termino com uma reflexão de Morgan (1999, p. 16):

A família pode ser muitas vezes vista como uma cor primária, interessante em si mesma, mas de uma forma limitada. No entanto, o verdadeiro significado de família apenas é alcan­ çado com a combinação com outras cores, resultando em múltiplas variações.

197

Referências Bibliográficas

Beer, C. (2009). Democracy and Gender Equality. Studies in Comparative International Development. 44. 212­227. 10.1007/s12116­009­9043­2.

Blühdorn, I. (2020). The legitimation crisis of democracy: emancipatory politics, the environmental state and the glass ceiling to socio­ecological transformation, Environmental Politics, 29(1), 38­57, DOI: 10.1080/09644016.2019.1681867

Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3, 77­101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa

Gato, J., & Fontaine, A. (2016): Predicting attitudes toward lesbian and gay parent families among Por­ tuguese students from helping professions, International Journal of Sexual Health, 29 (2), 187­201. Doi: 10.1080/19317611.2016.1268232

Geissel, B. (2015). Can Democracy Be Saved? Participation, Deliberation and Social Movements. Acta Politica. 50. 10.1057/ap.2015.5.

Gerring, J., Bond, P., Barndt, W., & Moreno, C. (2005). Democracy and economic growth: a historical perspective. World Polit, 57(3), 323–364.

Hull, K., & Ortyl, T. (2018). Conventional and cutting­edge: Definitions of family in LGBT communities. Sexuality Research and Social Policy: Journal of NSRC, 16(1), 1­13. Doi: 10.1007/s13178­018­ 0324­2.

Ibarra, R. (2017). 21st century family (8th ed., pp. 1­67). Retirado de

https://www.mindshareworld.com/sites/default/files/Culture%20Vulture_Issue%20%238_2 1st%20Century%20Family.pdf

Mayeri, S. (2017). Intersectionality and the constitution of family status. Constitutional Commentary, 32, 377­412.

Morgan, D. (1999). Risk and family practices: Accounting for change and fluidity in family life. In E. Silva & C. Smart (Eds.), The New Family? (pp. 16) London: Sage

Oliveira, M., & Nogueira, C. (2010). Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. OMS ­ Organização Mundial de Saúde (2002). Relatório mundial sobre violência e saúde. Retirado de

https://www.opas.org.br/wp­content/uploads/2015/09/relatorio­mundial­violencia­ saude.pdf

Richardson, D. (2004). Locating sexualities: From here to normality. Sexualities, 7, 391–411. Silva, E., & Smart, C. (Eds.) (1999). The New Family? London: Sage

Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG. Stacey, J. (1990). Brave new families. New York: Basic Books

van Eeden­Moorefield, B., & Few­Demo, D.H. (2007). Family diversity. In G. Ritzer (Ed.), Blackwell ency­ clopaedia of sociology. London: Blackwell Publishing

Vecho, O., & Schneider, B. (2005). Homoparentalité et développement de l’enfant: Bilan de trente ans de publications [Same­sex parenting and child development: Assessment based on thirty years of publications]. La Psychiatrie de l’Enfant, 481, 271–328. doi: 10.3917/psye.481.0271 Weeks, J., Donovan, C., & Heaphy, B. (1999). Everyday experiments: Narratives of non­heterosexual re­

199

SOBRE ANGELA MERKEL EM TEMPOS DE CRISE