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Patologizando e Despatologizando as Identidades Trans*

Os diagnósticos de transexualidade têm sido imprescindíveis para que as pessoas trans* possam ter acesso ao direito à saúde em muitos países. Nos Estados Unidos, onde foram elaborados guias como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e Classificação Internacional de Doenças (CID), é necessário um laudo psiquiátrico que afirme a condição para que pacientes possam ter o tratamento subsidiado pelas empresas presta­ doras de serviços. Mesmo em países que oferecem cuidados de saúde subsidiados pelo Es­ tado o laudo médico também passou a ser necessário.

O que se observa como um padrão nesses documentos é que, apesar de suas singula­ ridades no trato da questão e seus usos em diferentes âmbitos, apresentam a multiplicidade das identidades de gênero enquanto patologias. Basear diagnósticos em um quadro pré­de­ terminado impede que as expressões de gênero possam ser distintas do padrão heteronor­ mativo, embora a própria pesquisa feminista já tenha elaborado que os comportamentos não são inerentemente masculinos ou femininos, tampouco fixos, sendo transformados atra­ vés do tempo e do espaço (Lorber, 1994).

Ademais, associar a transexualidade à uma “disforia”, um “transtorno”, uma “incon­ gruência” a relaciona à obrigatoriedade de apresentar sofrimento, angústia ou desconforto, invisibilizando outras identidades não­disfóricas que requeiram procedimentos definitivos. Mesmo no que tange ao sofrimento, há variantes sociais a influenciarem a vida das pessoas trans* em uma sociedade que é regulada por um padrão binário de gênero e que, por isso, alguns diagnósticos de disforia podem resultar em falsos positivos ou falsos negativos.

Um dos efeitos dessa normatização para pessoas trans* que buscam os cuidados de saúde é o fato de precisarem performar em frente a profissionais de saúde comportamentos e posturas que atendam às categorias clínicas pré­determinadas e que respondam a uma matriz heterossexual que naturaliza os papéis sociais de gênero (Butler, 2017), tolhendo a naturalidade e mascarando as inúmeras possibilidades de existência. Passa a haver o “cor­ reto” e o “incorreto” a ser mostrado para garantir o acesso à cidadania.

183 A perspectiva binária exclui a possibilidade de um debate para pensar nas categorias

de ‘homem’ e ‘mulher’. Ou seja, a ausência da perspectiva de gênero quando da atualização desses manuais, bem como da implementação de leis e políticas, faz com que essa popula­ ção, ao definir­se como trans* “sirva ao resto da sociedade para manter sua segurança em sua condição de gênero e desvie a atenção da dimensão política da conflitualidade das nor­ mas de gênero” (Platero, 2008, p. 126).

Novas abordagens baseadas nas demandas das pessoas trans* aproximaram o debate de uma perspectiva de rejeição da patologização da variação de gênero e de uma proposta de completa desmedicalização e reforma diagnóstica. Desde 2009, todos os anos durante o mês de outubro, o movimento Pare a Patologização Trans! (Stop Trans Pathologization!) pro­ põe temas que possam ser direcionadores de atividades promovidas por organizações, ati­ vistas e redes ao redor do mundo. Em 2016, foram mais de 120 atividades em 47 cidades do mundo e, em 2017, mais de 410 grupos e redes de ativismo indicaram seu apoio ao movi­ mento (Davy et al., 2018, p. 20).

Para ativistas, a forma mais eficaz para a inclusão efetiva das pessoas trans* na socie­ dade é a remoção completa da conexão entre a psiquiatria e o acesso aos processos de tran­ sição, adotando a perspectiva dos direitos humanos dentro da estrutura de saúde. Embora os manuais diagnósticos como o CID ou o DSM tenham demonstrando preocupação em de­ sassociar as vivências trans* de uma estigmatização que pode delas advir, mantê­las patolo­ gizadas para garantir o acesso financeiro aos processos de transição, tende a surtir o efeito oposto (Davy, 2015).

Entretanto, não há um consenso entre as pessoas trans* no que diz respeito à despato­ logização, pois temem perder o acesso aos cuidados de saúde subsidiados pelo Estado (Lionço, 2009). A contra­argumentação do movimento refere que não se perdem subsídios estatais pela identidade de gênero divergente não ser considerada doença, justamente por sua pro­ teção estar baseada no panorama dos direitos humanos, assinalando que a patologização é considerada uma violação ao ser contraposta aos marcos internacionais, como os Princípios de Yogyakarta (2007) ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948/2009).

Nessa perspectiva, se “os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos” (Princípios de Yog­ yakarta, 2007, p. 12), qualquer dificuldade de acesso pode ser considerada um descumprimento do tratado. Além disso, tanto a exigência de diagnóstico como a ocorrência de procedimentos médicos compulsórios representam uma afronta aos direitos à dignidade humana, à autode­ terminação, à integridade corporal e à proteção contra abusos médicos. A defesa do “direito ao padrão mais alto alcançável de saúde” (p. 25) pode ela mesma ser uma estratégia para a garantia do acesso aos cuidados de saúde nos países signatários dos tratados.

A despatologização não se atenta somente para a transição de um gênero ao outro, mas fundamentalmente para “a falsidade destes pólos opostos [qu]e aponta para uma realidade plural e diversa” (STP, 2012). É na tentativa de apagamento de identidades fluidas que “um modelo binário de gênero da cidadania continua a marginalizar experiências e subjetividades daquelas pessoas que não podem ou não serão definidas como “homem” ou “mulher”, e como tal, é incapaz de explicar todo o espectro da diversidade de gênero” (Hines, 2007, p. 83).

É, portanto, a perspectiva da autodeterminação a referência para o desenvolvimento de políticas e ações relacionadas à população trans*, pois é através das escolhas feitas exclusi­

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vamente pelas demandantes e garantidas pelo Estado que será garantido o acesso à cidadania íntima (Plummer, 2003). Esta é, nesse prisma, representada pelos direitos de escolhas em re­ lação a seus corpos, emoções e relacionamentos, “aqueles que se relacionam com nossos mais íntimos desejos, prazeres e maneiras de ser no mundo” (Weeks, 1998, p. 121).

Além disso, todas as outras identidades que não se circunscrevem em femininas ou masculinas tendem a manter o debate em torno de sua inclusão nos enquadramentos legais e médicos. De acordo com Hines (2007), essas identidades oferecerão um desafio aos obje­ tivos políticos de assimilação, “sinalizando políticas radicais de transformação de gênero nas quais a ‘diferença’ esteja posicionada em um lugar de importância e celebração por si só” (p. 97). Ilustrando essa concepção, pode ser apontado como resultado da abordagem de au­ todeterminação que vai além de noções dualistas de corpo e mente e da associação entre papéis e identidades de gênero, o avanço nas legislações representado pelo não requeri­ mento de diagnósticos para o reconhecimento legal e o acesso aos cuidados de saúde.

Legislações: no que avançaram Brasil e Portugal em torno da causa trans*?

Contrariamente à Portugal, o Brasil não possui uma Lei de Identidade de Gênero, apenas

o Projeto de Lei 5.002/2013, popularmente conhecido por Lei João W. Nery4. De autoria da

Deputada Erika Kokay (PT/SP) e do ex­Deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), o PL foi arquivado em janeiro de 2019, logo após a posse do presidente Jair Bolsonaro. Há muito que a maioria do Congresso Nacional Brasileiro, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, é com­ posta por siglas partidárias de viés conservador diametralmente opostas a toda e qualquer pauta progressista e de defesa de direitos sociais de populações em maior vulnerabilidade. Mas não foi sempre assim. Nos anos 2000, com a participação da sociedade civil, o Go­ verno Federal instituiu o Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Dis­ criminação contra GLTB [sic] e de Promoção da Cidadania Homossexual (Ministério da Saúde­Brasil, 2004), elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. No mesmo ano, o Ministério da Saúde estabeleceu o Comitê Técnico de Saúde da População GLTB com o intuito de formular uma política nacional de saúde da população LGBT. Durante o processo de formulação foi realizada a 13ª Conferência Nacional de Saúde (2007), que incluiu a orientação sexual e a identidade de gênero na análise da determinação social da saúde (Ministério da Saúde­Brasil, 2013).

Ainda em 2007 foi instituído, em consonância com os objetivos do Programa Brasil Sem Homofobia, o Plano Nacional de Enfrentamento de Aids e das DST entre Gays, HSH e Travestis (CONASS & CONASEMS, 2007), que apontava estratégias específicas para a diminuição da transmissão e tratamento adequado para essa população.

Em 2008 foi implementado o Processo Transexualizador do SUS, que garante o atendi­ mento na rede pública de saúde aos procedimentos demandados por pessoas trans* que assim o desejem (Ministério da Saúde­Brasil, 2008). Já o ano de 2009 foi marcado pela possibilidade de impressão do nome social no Cartão do Sistema Único de Saúde juntamente com o nome civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência (Ministério da Saúde­Brasil, 2009).

4 João W. Nery foi um homem trans*, importante ativista e escritor que faleceu em outubro de 2018. Autor de “Viagem Solitária: memória de um transexual 30 anos depois”, era reconhecido com o primeiro homem trans* a realizar modificações corporais cirúrgicas, quando a prática constituía crime no Brasil.

185 Data de 2018, entretanto, a decisão história e uma das medidas mais importantes para

a população trans* no Brasil. Entre março e agosto, o STF e o CNJ lançaram as normativas para a autorização da mudança de nome e gênero no registro civil de pessoas nascidas em território brasileiro, beneficiando especificamente pessoas transexuais e, posteriormente, ampliando o leque para transgêneras [sic] (STF, 2018). Embora devam ser apresentadas al­ gumas certidões para a retificação, é facultada a apresentação de laudo médico ou parecer psicológico que ateste a condição de pessoa trans*, bem como laudo que comprove a reali­ zação de cirurgia de redesignação de sexo (CNJ, 2018).

Já em Portugal, até 1995 havia no artigo nº 55 do Código Deontológico português uma proibição de intervenções médicas para a reatribuição de sexo, passando a partir dessa data a contar com a possibilidade de intervenção cirúrgica e da realização do processo de transição no Serviço Nacional de Saúde (Hines & Santos, 2018). Além dos procedimentos cirúrgicos, passam a ser realizados atendimentos com equipe multidisciplinar para questões hormonais e psicológicas (ILGA, 2008; Ordem dos Médicos, 1995).

Em relação à legislação portuguesa, desde 2003 a orientação sexual consta no Código do Trabalho e, a partir de 2015, também a identidade de gênero, em especial ao que se refere ao direito à igualdade de acesso, ao combate à discriminação e ao assédio (Lei nº 28 de 2015 em PGDL, 2015). Já a inscrição da primeira categoria ao Código Penal, seria feita em 2007 em uma revisão posterior à grande comoção nacional pelo assassinato de Gisberta Salce Jú­

nior5, passando então a orientação sexual a uma motivação particular para a discriminação

(Art. 240º) e nos crimes contra a vida ou crimes de ódio (Art. 132º). Já a identidade de gênero veio a ser introduzida em 2013 (Código Penal, 2013).

No que tange a Constituição da República Portuguesa, o termo orientação sexual foi acrescentado ao 13º artigo “Princípio da Igualdade” em 2004, embora ainda não tenha qual­ quer menção à identidade de gênero (Constituição da República Portuguesa, 2005). Em re­ lação às normativas educacionais, desde 2012 está em vigor o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que estabelece a identidade de gênero como categoria suspeita de discriminação e, por isso, passível de proteção (PGDL, 2012). Em 2017, o governo português garantiu o cum­ primento dessa medida para instituições de educação, saúde e justiça.

Seguindo esse panorama, data de 2011 a medida considerada das mais importantes para a população trans*: a promulgação da Lei de Identidade de Gênero (Lei nº 7 em PGDL, 2011). Até então, não havia qualquer legislação específica para a troca de nome e sexo na documen­ tação, embora tampouco houvesse proibição. Em relação à escolha de nomes, o país tem uma peculiaridade: há uma lista de possibilidades no Índice Onomástico, e os nomes escolhidos não podem levantar dúvidas sobre o gênero da pessoa, sendo poucas as opções de nomes ambí­ guos. (Santos & Santos, 2017). A Lei apresenta como compulsória a apresentação do “diagnós­ tico de perturbação de identidade de género”, embora não exija a esterilização ou outros tratamentos como requisito legal para o reconhecimento. Além disso, garante que uniões e ca­ samentos estabelecidos anteriormente à retificação não sejam dissolvidos, tendo em vista a aprovação da Lei 9/2010, que permite o casamento homoafetivo no país (PGDL, 2010).

5 O corpo de Gisberta foi encontrado no fundo de um poço de 15 metros situado num prédio inacabado da Avenida Fernão Magalhães, no Porto. Mulher trans, sem­abrigo, soropositiva e imigrante, morreu depois de, durante 3 dias, um grupo de 14 jovens entre os 12 e os 16 anos infligirem de forma contínua agressões e violações, tendo sido arremessada em um poço, onde terminou por morrer afogada (ILGA, 2016b).

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Embora tenha sido considerada uma das mais avançadas e coincidentes com os Princí­ pios de Yogyarkarta (2007) na ocasião, ativistas sugerem melhoramentos relacionados a di­ minuição dos entraves burocráticos e da idade para a autodeterminação de gênero a partir dos 16 anos, bem como a extensão do benefício para pessoas de outros países que vivam em Portugal, a proibição das invervenções médicas em pessoas nascidas intersexo, entre ou­ tros (Hines & Santos, 2018, p. 45­46).