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DE GÊNERO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO ECLESIÁSTICA FEMININA Joyce Aparecida Pires

RESUMO

Este trabalho discutirá as negociações e assimilações que ocorrem nas práticas de mulheres da hierar­ quia eclesiástica na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e a contribuição do Movimento Tradicionalista Gaúcho na construção do status e identidade feminina religiosa no sul do Brasil.

PALAVRAS­CHAVE:

Protestantismo; Gauchismo; Hierarquia eclesiástica; Justiça de gênero.

O presente trabalho é parte da pesquisa de doutora em Ciências Sociais, realizada na Universidade Estadual Paulista, UNESP Brasil que tem como objetivo compreender como as mulheres evangélicas de confessionalidade luterana atuam na hierarquia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e de que forma ocorre a incidência do feminismo nas subje­ tividades dessas mulheres; a partir disso, discutir como este tema está inseridos na conjun­ tura político­religiosa brasileira.

A religião na pesquisa, é compreendida como um elemento que participa de um con­ texto histórico particular em que os processos sociais políticos e religiosos são dois movi­ mentos intrinsicamente articulados (Asad, 2010). Ao aprofundar o contexto histórico em que se constituíram e se autorizaram os símbolos religiosos do luteranismo e seu projeto de Igreja no Brasil, estou avistando caminhos pelos quais a condição da mulher é discutida e reelabo­ rada na religião e na política atual.

A teoria da performatividade também contribui para a análise do espaço político, dos enquadramentos e das representatividades, porque busca entender a formação de gênero e a subsidiar a ideia de que expressão de gênero é um direito e uma liberdade fundamental. Desta maneira, estou buscando tencionar e compreender o sujeito/agente do feminismo do luteranismo no Brasil para apreender a dinâmica social, em face do sexismo hegemônico.

Esta é uma igreja formada pelas comunidades de imigrantes protestantes, alemães e suíços que chegaram no Brasil a partir de 1824, incumbidos de colonizar o Sul do país e de­ fender o território, com a participação dos homens nos conflitos e guerras ocorridas no Sul, em particular na Revolução Farroupilha. No início, as comunidades viviam sem qualquer or­ ganização religiosa; 40 anos depois, chegaram as primeiras famílias de pastores da Alemanha.

O aparecimento dos corpos de mulheres luteranas com algum grau de autoridade reli­ giosa, podem ser avistados desde a chegada das primeiras diaconisas alemãs, em 1913 para atenderem necessidades religiosas e de saúde das mulheres das comunidades de imigrantes do Sul, particularmente, na realização dos partos. Com o passar dos anos as comunidades

1 Trabalho apresentado durante o VII Congresso Internacional em Estudos Culturais: Performatividades de Género na Democracia Ameaçada.

2 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista e apoio de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo FAPESP. E­mail: cravinajoyce@gmail.com

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conseguiram alcançar outros patamares de organização institucional e oferta de serviços re­ ligiosos e para as mulheres na Igreja, através de associativismo com as organizações de mu­ lheres na Alemanha, a construção de uma Casa Matriz de Diaconia e a Ordem de Auxílio de Senhoras Evangélicas (OASE), atualmente presente na maioria das paróquias desta Igreja.

As pastoras, interlocutoras da pesquisa, representam uma feminilidade apoiada na igual­ dade e na chamada justiça de gênero e também aparece nos seus discursos e práticas a sub­ jetivação da liberdade de gênero e positivação do feminino, emaranhados no mosaico cultural rio­grandense e nas práticas tradicionalistas do gauchismo, as quais são difundidas em outros territórios do Brasil, além dos Centros de Tradições Gaúchas, também pelos mem­ bros da Igreja.

De forma geral, o que destaca na IECLB, no âmbito das relações tradicionais de gênero, são os aspectos culturais étnicos presentes, herança da imigração alemã no Brasil e da for­ mação da identidade gaúcha a partir do sul. As comunidades luteranas negociam pertenci­ mentos identitários do gauchismo e os invocam na realização de cultos, entre outras situações, nos encontros de mulheres, festas e culinária, no âmbito das práticas religiosas. O chamado Culto Campesino, por exemplo, foi divulgado nas redes social com uma imagem composta por um homem montado no cavalo e a bandeira do Rio Grande do Sul. Este estilo de culto religioso corre em espaços escolhidos, próximos da natureza e a pastora se veste de prenda. A prenda é o par complementar do gênero masculino, representado pelo gaúcho. Sua indumentária gauchesca feminina é sempre um vestido ou saia e blusa de mangas longas.

Mas o gauchismo não é uma subcultura evangélica, os evangélicos do seguimento do protestantismo de imigração é que utilizam elementos do gauchismo e da cultura Alemã com o objetivo de atender de forma afetiva as comunidades que possuem um mínimo fator étnico alemão. Desta forma, o gauchismo concentrou símbolos e elementos de um passado ideali­ zado pelos imigrantes e sua proposta de nação (evoluir sem perder a tradição) que distingue as práticas dos luteranos das outras pertenças religiosas cultivadas no país.

Na figura da prenda, a prática dessas tradições realoca a representação do feminino como uma forma de alegoria que também ocorre em outras situações, também comum na Oktoberfest em Blumenau, Santa Catarina e nas festas de peão e rodeios. No luteranismo, a prenda aparece como uma oferta cultural da tradição étnico­religiosa no Brasil. Uma pastora luterana que é prenda, afirma e positiva uma representação do feminino que acomoda as relações tradicionais de gênero.

Segundo Verena Stolcke (1991), em sociedades de classe, certas desigualdades social­ mente relevantes, como a cor e a religião neste caso, são marcadores sociais legitimados por uma explicação que os representa como tendo raízes nas diferenças classificadas como na­ turais. Nesse sentido, podemos lembrar da concepção e construção da mulher, produzida por meio de discursos teológicos tradicionais em torno do útero com a função de reproduzir a espécie e, portanto, a raça (Furlin, 2016). Estamos falando do controle da capacidade pro­ criativa das mulheres para perpetuar os privilégios de classe e nacionais com os raciais, sendo essa naturalização ideológica, como afirma Henrietta Moore (1997).

Mudanças no status da mulher foram possíveis com a incidência do feminismo nas sub­ jetividades de mulheres envolvidas no ministério ordenado na elaboração e difusão de um ideário feminista nesta esfera. É um processo que tem o campo de saber teológico, o lócus das disputas. Além disso a IECLB tem uma história de relações e associações com suas igrejas

169 irmãs, de forma muito presente, como é o caso da Igreja da Suécia, o que dá folego para as

disputas identitárias que ocorrem no Brasil, a partir desta Igreja.

As ações das mulheres organizadas nas comunidades religiosas, foi em algum aspecto, motivo da criação de outros grupos de mulheres, como o caso do Fórum de Discussão da Mulher Luterana (FDML), onde se discutem questões mais ligadas ao feminismo da igualdade e a justiça de gênero.

O que chama a atenção é a localização das mulheres teólogas nesta instituição religiosa, as quais construíram uma trajetória de conquista de autoridade na Igreja e no próprio curso de Teologia e que alimentam o ativismo feminino em outros âmbitos da sociedade. As teó­ logas valeram­se da afirmação e positivação do feminino no campo dos direitos, pela busca da igualdade em relação aos homens. Desde a década de 1980, as luteranas teólogas passa­ ram por processos de disputas e conquistas para a atuação da mulher na diaconia aos mi­ nistérios e ordenação, quando alcançam representação na hierarquia eclesiástica, chegando assim, em 2018 a eleição da primeira presidente mulher ao cargo mais importante da Igreja. Primeira mulher a ocupar a cátedra de Teologia Feminista na EST em 1992, Wanda Dei­ felt (2013), concebe que é na crítica de desconstrução dos pressupostos naturalizantes da cultura, androcêntricos no contexto da produção do conhecimento e do estímulo ao empo­ deramento de forma independente que está o cerne da ética feminista do cuidado, por meio dos conhecimentos práticos históricos e teóricos, existe a busca por justiça de gênero na so­ ciedade e suas organizações e pela equidade de gênero chega­se ao cuidado, inclusive com a natureza.

Em congressos oportunizados pelo núcleo de estudos Gênero e Religião na EST, acadê­ micas e religiosas também vinculadas à Igreja Luterana na América, discutem a perspectiva luterana feminista na contribuição à discussão do sexismo como pauta ecumênica, violência contra a mulher, vulnerabilidades entre outras questões.

O entendimento da ideia de justiça de gênero pelas evangélicas luteranas, segue por meio da guinada que Lutero realizou no Movimento da Reforma, a autonomia/ liberdade do cristão em não precisar de uma interferência ou mediação de homens ou instituições para obter a graça de Deus. O sujeito pode, a partir de um movimento interior, reflexivo, avaliador suas ações. O protestantismo desenha uma personalidade ao agente cristão e sua crença está apoiada nos fatos históricos da Reforma religiosa, a partir de Lutero que corrobora para que os fiéis experimentem uma igreja no tempo. Uma observação registrada em caderno de campo exemplifica esta noção de Igreja no tempo. Em situações diferentes, entre conversas informais, duas pastoras expressaram: “nossa Igreja é uma igreja que está sempre em re­ forma” ou “precisamos ser mulheres empoderadas da Reforma”, valendo­se do sentido re­ belde e político que foi o contexto das reformas na Igreja.

Além da importância do movimento pietista, alinhado à IECLB, a epistemologia feminista garante a luta pela chamada vida em abundância, pensada no ideário e cultura feminista, como um desejo de Deus. Assim interpreta Mary Streufert (2017), diretora de Justiça para Mulheres na Igreja Evangélica Luterana na América, ela afirma que a estrutura patriarcal da Igreja, ídolos masculinos e o sexismo são impedimentos de vida abundante. Nesta esteira, algumas reformas institucionais e governamentais entram na discussão, como a ecologia e economia sustentável. Por tanto, a categoria social mulheres é processualmente também in­ terpretada por estes novos parâmetros de igualdade política entre os seus e os outros.

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Existe uma intersecção das preocupações feministas de enquadramento teórico e de movimento organizado com as ações das luteranas a partir do uso da noção de justiça de gênero, discutida pela teórica e feminista, Nancy Fraser (2007), como proposta de reforma. Sendo o objetivo, em relação ao cristianismo, levar esta perspectiva de gênero, sexo e se­ xualidade para dentro do ecumenismo, promovendo reformas éticas e religiosas. “[...] um compromisso global a criar um cuidado da saúde reprodutiva que apoiaria vida abundante para todos e todas [...]”, afirma Mary Streufert (2017, p. 28).

Foi observado durante o VI Congresso Gênero e Religião, realizado na EST em 2019, o diálogo acadêmico e inter­religioso, com cultos promovidos pela IECLB durante os dias do evento. A importância da formação intelectual das mulheres é um fator que as evangélicas de confessionalidade luterana no Brasil construíram no processo histórico de uma igreja ét­ nica, por meio dos seus laços associativos com a Alemanha, comunitários de cuidado e edu­ cação em escala territorial via formação intelectual/profissional/confessional por meio de um movimento de progressão democrática de construção de lideranças femininas. Neste processo as mulheres, moveram­se com auxílio e organizadas, em maior número, pela OASE, no FDML de forma significativa, no que tange às discussões sobre violência contra à mulher, sororidade e outras questões presentes na cultura feminista.

Neste sentido, a particularidade dos processos pelos quais as mulheres luteranas par­ ticiparam historicamente na organização da fé, como Igreja luterana no Brasil, deram o tom de autoridade e legitimidade durante as disputas travadas no campo teológico de saber, até chegar ao aparecimento do feminino na hierarquia eclesiástica. O contexto era o de alinha­ mento para políticas liberais democráticas e secularização da sociedade no Brasil. O resultado é, mais autonomia para as mulheres nas igrejas e necessidade da criação de uma Cátedra de Teologia Feminista para o desenvolvimento da formação religiosa e profissional contínua das mulheres luteranas e sua inserção nas comunidades religiosas e nos trabalhos diaconais. A produção da teologia feminista luterana possui uma tendência marcada pelo femi­ nismo da igualdade, difundindo uma visão mais holística da religião e ecofeminista, a partir de algumas teólogas. Uma das preocupações das teólogas femininas é como fomentar uma espiritualidade lúcida e uma prática feminista engajada. Nesta tentativa, o feminino também é positivado pela diferença, inclusive direcionando o trabalho feminino na Igreja e o interesse para o desenvolvimento humano e de suas comunidades. Não que isso seja um ponto final de projeto feminista acabado das luteranas, mas as práticas regionais e culturais que são di­ fundidas nos grupos da Igreja, retomam uma corporeidade feminina, estabilizando o dua­ lismo de gênero no discurso institucional. Consequentemente, as relações tradicionais de gênero, regionalmente fundadas em noções e pretensões morais para a nação brasileira e que vem do Sul.

A heteronormatividade com a branquitude também é um lugar privilegiado no Brasil, suas extensões culturais podem ser localizadas na história e nas práticas culturais do grupo específico das mulheres pastoras pesquisadas. Suas origens, são parâmetros de pertenci­ mento identitário, historicamente realçado nos processos da formação do protestantismo como Igreja no Brasil, desde o sul.

Frente a sociedade, é uma igreja inclusiva, “aqui você tem lugar”, “somos uma igreja que cuida”, como diz a presidente, mas os gêneros reconhecidos para o exercício eclesiástico permanecem garantindo o aparecimento de corpos femininos e masculinos, sem aprovar o

171 casamento gay. Apesar de existirem pronunciamentos oficiais da instituição que se posiciona

no acolhimento do sofrimento das pessoas que são descriminadas, não é aceito pela IECLB que pessoas não normativas ocupem cargos hierárquicos ou ministeriais. Enquanto na Igreja da Suécia e outras igrejas irmãs no mundo, é permitido.

A compreensão do protestantismo histórico de imigrantes alemães e sua contribuição para mudanças no quadro de referência cristão contemporâneo está colocada e se apresenta de forma dinâmica. O processo social do aparecimento da mulher na hierarquia eclesiástica confirma que as mulheres estão buscando justiça de gênero na Igreja por meios evangeliza­ dores.

Teólogas, teólogos e estudantes na EST, a partir da Teologia feminista e os estudos de gênero, insistem no tensionamento das regras para a legitimação da representatividade das mulheres em diferentes espaços, dos femininos e seus corpos. Também procuram avançar as reformas dos problemas que ficaram, como a violência contra a mulher e até a descrimi­ nalização do aborto. Isso demonstra que o trabalho intelectual das mulheres religiosas é he­ terogêneo e apresenta tendências plurais e possibilidades de práticas feministas mais versáteis entre os fiéis e suas tradições. Mulheres pastoras luteranas e líderes religiosas de­ sejam liberdade no horizonte cristão.

Creio ser possível sustentar a hipótese de que uma nova configuração religiosa se de­ senha neste terceiro milênio a partir do protagonismo plural das mulheres. Este protago­ nismo ou ativismo no âmbito do espaço público e religioso me parece sutil, disfarçado, inteligente e dinâmico. Não é abertamente contestatório, mas apresenta rupturas claras, in­ submissão, mobilidade, infidelidade e criação de novas modalidades de vida espiritual e dos parâmetros morais. Ou seja, as mulheres estão criando com responsabilidade nos espaços institucionais, caminhos alternativos aos das religiões hegemônicas, suas estruturas e dis­ cursos. Cabe agora, como pesquisadora explorar mais esses caminhos alternativos das mu­ lheres, seus projetos de Igreja evangélica no Brasil e suas experiencias.

Referências Bibliográficas

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Caminhos, Goiânia, 11, (2), 109­122.

Fraser, N. (2007). Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à repre­ sentação. Estudos feministas. 15, (2), 291­308.

Furlin, N. (2016). A produção do feminino: representações de gênero no discurso da teologia católica tradicional. Estudos de Sociologia, Recife, 22, (2), 145­196.

Moore, H. (1997). Understanding sex and gender. In: INGOLD, T. Companion Encyclopedia of Anthro­

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Streufert M. J. (2017). Justiça de Gênero Feminista Luterana. Coisas do Gênero. 3, (2), 25­29. Stolcke, V. (1991). Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade? Estudos Afro­Asiáticos. Rio

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FRENTE NO SAMBA E NO CANDOMBLÉ