• Nenhum resultado encontrado

FRENTE NO SAMBA E NO CANDOMBLÉ Maíra de Deus Brito

RESUMO

O Brasil é um país de negros e de mulheres. O artigo tem como objetivo recordar a importância do papel das mulheres negras no samba e no Candomblé, a partir das trajetórias de Ciata de Oxum e de Dora de Oyá – mulheres baianas que fizeram e fazem história no Rio de Janeiro e em Brasília, respec­ tivamente.

PALAVRAS­CHAVE:

Mulheres; samba; candomblé; Ciata de Oxum; Dora de Oyá.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo recordar a importância do papel das mulheres negras no samba e no Candomblé, a partir das trajetórias da Iakekerê Ciata de Oxum e da Ia­

lorixá Dora de Oyá3 – mulheres negras, nascidas na Bahia e com importante papel no samba

e no Candomblé do Rio de Janeiro e de Brasília, respectivamente.

O Candomblé é uma religião afro­brasileira que nasceu a partir das mãos de mulheres em solo brasileiro. Algumas das chefes de casas de Candomblé (terreiros) eram conhecidas como mulheres de partido alto, ou seja, “sacerdotisas conhecidas como pessoas de grande iniciativa, comprovada tanto no campo religioso quanto na vida civil da população baiana” (Serra, 2008, p.7).

Dentre as “mulheres de partido alto” estava Hilária Batista de Almeida (1854­1924), co­

nhecida como Tia Ciata4. Tia Ciata era uma das Tias baianas residentes da Zona Portuária do

Rio de Janeiro. As casas dessas tias eram “espaços de acolhida material, espiritual e cultural” para os negros no Rio de Janeiro na virada do século 19 para o século 20 (Diniz, 2008, p. 27). Vários autores destacam que graças às reuniões nas casas delas foi possível estabelecer “condições para o desenvolvimento de agremiações culturais e posteriormente carnavalescas como os ranchos e o samba propriamente dito, em todas as suas esferas, especialmente os aportes financeiros, políticos e religiosos” (Werneck, 2007, p.129). Apesar das tias serem vá­ rias, foi Tia Ciata quem ficou na história como “matriarca do samba”.

1 Trabalho apresentado durante o VII Congresso Internacional em Estudos Culturais: Performatividades de Género na Democracia Ameaçada.

2 Doutoranda no Programa de Pós­Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (Brasil). E­mail: jornalistabrito@gmail.com.

3 A Iakekerê é a segunda sacerdotisa de uma casa de Candomblé; a Ialorixá é a sacerdotisa­chefe (mãe de santo) desse local, essencial para práticas religiosas. Oxum é a divindade do Candomblé representada pelas águas doces, como rios e cachoeiras; Oyá é a divindade representada pelos ventos e tempestades.

4 No Brasil, é muito comum utilizar o termo Tia ou Tio para pessoas que não têm relação consanguínea, porém, têm uma relação próxima.

174

Fortalecendo a cultura do samba em Brasília, há Mãe Dora de Oyá. A Ialorixá do terreiro Ilê Axé T’Ojú Labá nasceu em 1956, na cidade de Riachão das Neves (Bahia), e há quase 15 anos ela abriu seu terreiro em Brasília.

O terreiro é onde nasceu o Afoxé Ogum Pá (grupo musical com repertório formado por músicas afro­brasileiras) e o grupo de samba Filhos de Dona Maria, que tem no repertório composições de Mãe Dora de Oyá.

A atuação de Ciata de Oxum e de Dora de Oyá nos instiga a relembrar o local de desta­ que das mulheres no samba e no Candomblé que, com o tempo, foram tiradas da linha de frente e colocadas como personagens secundárias na articulação social, cultural e religiosa nos ambientes citados.

A metodologia utilizada neste artigo reúne as técnicas de revisão bibliográfica, história oral e entrevista. A história oral aparece como metodologia essencial para recuperar “acon­ tecimentos pouco esclarecidos ou nunca evocados, experiências pessoais e impressões par­ ticulares” (Alberti, 2004, p. 22). Por fim, uma entrevista com Mãe Dora de Oyá confere ineditismo e contemporaneidade para o texto apresentado.

Desenvolvimento

O Brasil é um país de negros e de mulheres. As últimas pesquisas realizadas trazem dados que apontam que cerca de 56,2% da população brasileira é negra. As mulheres repre­ sentam 51,8% dos 210 milhões de brasileiros, de acordo com o portal voltado para educação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019).

Apesar de serem maioria numérica, essa parcela da população segue sendo minoria po­ lítica e, nos últimos anos, têm sofrido com a intensificação de governos autoritários e de po­ líticas excludentes, que não alcançam os princípios básicos dos Direitos Humanos.

Diante da avassaladora onda conservadora e reacionária no Brasil, faz­se necessário olhar para o passado e conectá­lo com o presente, evidenciando a importância em relembrar como as práticas de resistências têm sido pilares essenciais para a manutenção da vida de determinadas populações, entre elas, negros e mulheres.

Frequentemente, em entrevistas, Makota Valdina (1943­2019) dizia que “as mulheres negras sempre foram lideranças religiosas” (TVE Bahia, 2017). A educadora e líder religiosa soteropolitana também destacava como o fundamento (do Candomblé) devia ser passado por meio da oralidade, ou seja, os primeiros aprendizados não eram passados por meios de livros, mas por meio de pessoas, “livros humanos”, que ensinam pela ação e pela fala (TPSM_Conexão, 2018).

Pensando a partir dessas reflexões, observa­se a urgência de relembrar a importância das mulheres no Candomblé, religião afro­brasileira que nasceu a partir das mãos de mu­ lheres em solo brasileiro. De acordo com a historiografia, a primeira casa de Candomblé no Brasil foi o Terreiro Casa Branca (também chamado de Ilê Axé Iyá Nassô Oká), em Salvador, comandado por Iyá Nassô (Serra, 2008, p.1).

Surgido na Barroquinha (bairro do Centro de Salvador) e hoje localizado na Avenida Vasco da Gama, no Engenho Velho da Federação (bairro periférico da cidade), o terreiro tem uma característica muito importante: apenas mulheres podem ser iniciadas para encarnar

175 os Orixás – sendo reservados aos homens apenas o cargo de Ogãs e/ou portadores de títulos

honoríficos (p.7).

Outro ponto relevante é o fato de o Terreiro Casa Branca dar origem a outros dois ter­ reiros fundamentais na história da Bahia e do Candomblé: o Terreiro do Gantois e o Axé Opô Afonjá, fundados também por mulheres. A Ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré fundou o Terreiro do Gantois, e a Ialorixá Eugênia Ana dos Santos, o Axé Opô Afonjá (pp.5­6).

Relatos feitos por membros seniores do Egbé Iyá Nassô dão conta do papel exponencial que aí tiveram as chamadas “mulheres de partido alto”, sacerdotisas conhecidas como pessoas de grande iniciativa, comprovada tanto no campo religioso quanto na vida civil da população baiana negro­mestiça: damas muito empreendedoras, com presença dominante no comércio de rua e com significativa influência no seu meio, onde exerciam forte liderança (Serra, 2008, p. 7).

Essas mulheres celebravam ritos exclusivamente femininos, chamados de Gueledes. Ainda de acordo com Serra, o Guelede “se articulou sob a capa da Irmandade de Nossa Se­

nhora da Boa Morte”5 (p.8). Tal corporação católica era formada por várias filhas de santo

do Terreiro Casa Branca. A Irmandade ainda existe e é atuante em Cachoeira, cidade do Re­ côncavo Baiano, a 110km de Salvador.

Dentre as “mulheres de partido alto” está Hilária Batista de Almeida (1854­1924), mais conhecida como Tia Ciata. Nascida em Santo Amaro da Purificação, cidade vizinha a Ca­ choeira, Tia Ciata era filha de Oxum, integrante da Irmandade da Boa Morte e foi iniciada no Terreiro Casa Branca. Aos 22 anos, ela foi para o Rio de Janeiro, onde tornou­se Iakekerê do terreiro do pai­de­santo (sacerdote) João Alabá de Omulu.

Tia Ciata era uma das Tias baianas residentes da Zona Portuária do Rio de Janeiro, região batizada de “Pequena África” (Diniz, 2008, p. 26) pelo compositor e pintor Heitor dos Prazeres (1898 ­1966). As casas dessas tias eram “espaços de acolhida material, espiritual e cultural” (p. 27) para os negros no Rio de Janeiro na virada do século 19 para o século 20.

Quituteira de prestígio (p. 26) Tia Ciata foi – de acordo com sua bisneta Gracy Mary Mo­ reira – a primeira mulher a vender os quitutes na rua vestida de baiana (Hipolito, 2016). Em entrevista, Gracy, que é filha do exímio instrumentista Bucy Moreira (1909­1982), afirmou: “Por isso que esse nome foi importado, pois, antes disso, era crioula de tabuleiro, crioula de venda, e não baiana, como conhecemos hoje”.

Porém, uma das maiores contribuições de Tia Ciata está na música popular brasileira, sobretudo, no samba. Era na casa dela onde se reuniam os músicos da cidade. De acordo com Muniz Sodré:

A habitação – segundo depoimentos de seus velhos frequentadores – tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam­se bailes (polcas, lundus, etc.); na parte dos fundos, samba de partido­alto ou samba­raiado; no terreiro, batucada (Sodré, 1998, p. 15).

5 Confraria religiosa de mulheres negras idosas cujo surgimento data do século XIX. Naquele tempo, essas mulheres tinham acesso ao comércio e ao dinheiro e compravam a alforria de negros escravizados. Pouco se sabe sobre a Ir­ mandade da Boa Morte, porém algo chama muita atenção: as mulheres da irmandade católica também são can­ domblecistas. Vê­se aqui a hibridização do catolicismo e do candomblé. Ramos, Cleidiana. (2009). Afro Imagem: O início da festa da Boa Morte. A Tarde. Obtido de http://mundoafro.atarde.uol.com.br/tag/irmandade­da­boa­morte/.

176

O motivo para tantas divisões de gêneros musicais em um mesmo ambiente, o sa­ xofonista e compositor Pixinguinha (1897­1973) explicou, em partes, em entrevista publicada na extinta revista Manchete: “O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba só no quintal, para os empregados” (p. 79).

Retornando à importância de Tia Ciata e das outras Tias da Pequena África carioca:

Nos tempos de Donga, Heitor dos Prazeres, João da Baiana e outros, era em torno de mu­ lheres negras como Tia Davina, Perpétua, Veridiana, Calú Boneca, Maria Amélia, Rosa Olé, Sadata, Mônica, Carmem do Xibuca, Gracinda, Perciliana, Lili Jumbeba, Josefa e principal­ mente Tia Ciata, que se desenvolviam e se estabeleciam as condições para o desenvolvi­ mento de agremiações culturais e posteriormente carnavalescas como os ranchos e o samba propriamente dito, em todas as suas esferas, especialmente os aportes financeiros, políticos e religiosos. (Werneck, 2007, p. 129)

Inclusive, foi na casa de Tia Ciata onde nasceu o primeiro samba registrado (1916) na Biblioteca Nacional – episódio muito importante para a profissionalização do gênero musical. “Pelo telefone” foi registrada por Donga, contudo, de acordo com algumas versões, a música teria sido feita em um processo coletivo, em uma das várias reuniões que aconteciam na casa da matriarca (Diniz, 2008, pp. 35­36).

Polêmicas à parte, é preciso lembrar que Tia Ciata não foi uma mera expectadora das festas. Como lembra Roberto Moura:

Partideira, cantava com autoridade, respondendo os refrões nas festas que se desdobravam por dias, alguns participantes saindo para o trabalho e voltando, Ciata cuidando para que as panelas fossem sempre requentadas, para que o samba nunca morresse (Moura, 1995, p.99).

Negra, mulher, candomblecista, nordestina e migrante em um país que há poucos tempo tinha abolido a escravidão (1888) e que ainda não permitia que mulheres votassem (1932). Tia Ciata superou preconceitos raciais, de gênero e classe; exclusões e violências a partir de sua “capacidade de manejo das estruturas de poder e controle da sociedade” (Werneck, 2007, p. 112), e fez história como matriarca do samba.

Em pouco mais de 500 anos de história, o Brasil teve três capitais. A primeira foi Salvador (1549­1763), hoje, capital do estado da Bahia – onde o samba nasceu. A segunda capital do país foi o Rio de Janeiro (1763­1960), cidade que foi cenário da multiplicação desse gênero musical. A atual capital é Brasília, cidade que se tornou um local de mistura da cultura de vá­ rias regiões do país.

Curiosamente, os artistas do samba fazem parte de um dos grupos de maior destaque em Brasília. Renata Jambeiro, Rafael dos Anjos, Cris Pereira e Breno Alves são alguns nomes que saíram da capital e hoje têm projeção nacional.

Fortalecendo a cultura do samba na cidade, há Mãe Dora de Oyá. A Ialorixá do terreiro de Candomblé Ilê Axé T’Ojú Labá nasceu em 1956, em Riachão das Neves, cidade do Estado da Bahia. Quando tinha seis anos, ela perdeu a mãe e, aos 13 anos, foi morar em Brasília, após a transferência do pai, então funcionário do Departamento de Estradas de Rodagem.

177

Desde criança Mãe Dora via e conversava com o Caboclo Ventania6. Ela também sabia

que seria mãe de santo, mas fugiu o quanto pode do destino religioso. Há quase 15 anos ela, enfim, abriu seu terreiro em Santa Maria, um bairro periférico de Brasília (Brito, 2017).

Lá, a ordem é música. Aos sábados de manhã, no projeto ABC Musical, os filhos de santo da casa dão aula de música para crianças e adolescentes do Jardim ABC, bairro da Cidade Ocidental (no Estado de Goiás), cidade vizinha à Santa Maria e marcada por serviços precários de urbanização, saúde e segurança.

O terreiro também é a casa do Afoxé Ogum Pá (que coloca o Candomblé e a cultura de matriz africana nas ruas de Brasília com músicas populares e autorais tradicionais do ritmo Ijexá) e do grupo de samba Filhos de Dona Maria (que também mescla em suas composições chula, afoxé e jongo).

Idealizadora dos dois projetos acima, Mãe Dora de Oyá é cantora e compositora. São dela “Curimbeiro”, “Salve Dona Maria” e “Clareia Minha Mãe” – a última, parceria com Viní­ cius de Oliveira –, músicas de sucesso dos Filhos de Dona Maria (grupo criado em homena­ gem a Dona Maria Padilha).

Sobre o processo criativo, Mãe Dora explica:

Eu faço algumas músicas… A letra e a música vêm na minha cabeça. Não é intencional. Quem senta para fazer isso é Paulo César Pinheiro e Paulinho da Viola. “Curimbeiro” eu fiz para o Amílcar [Paré] que tinha sido confirmado Ogã nas águas de Oxalá. A música saiu em três minutos. Tenho essa facilidade desde criança. (Brito, 2017)

Na entrevista, Mãe Dora também explica que cada casa de Candomblé tem um axé e que no caso do Ilê Axé T’Ojú Labá esse axé é o cultural: “Nada que eu faço na minha casa é porque saiu da minha cabeça. Senão, eu seria uma gênia. As coisas aqui pipocam. Eu só di­ reciono e guio o pessoal. E as coisas sempre estão direcionadas para a cultura”.

Por questões familiares Mãe Dora de Oyá saiu da Bahia ainda criança rumo a nova ca­ pital para recomeçar a vida – assim como outros tantos e tantas brasileiras de várias regiões do país. Quis os Orixás que ela abrisse aqui seu terreiro de Candomblé e fortalecesse a cena do samba de Brasília.

Em entrevista, limitada por causa da pandemia da covid­19, Mãe Dora de Oyá explica o papel das mulheres no samba. “A mulher tem papel fundamental no samba. É ela que harmo­ niza a roda de samba. O que dá sentido ao samba é a roda, já que a circularidade da roda mo­ vimenta a energia”, detalha Mãe Dora. Em resumo, o samba não seria nada sem as mulheres:

Sem a mulher no samba só seriam vários homens tocando instrumentos. A graça do samba é o poder feminino, o remexer dos quadris, a alegria, o poder de agregar pessoas em torno dos músicos. Também tem o fato de que a voz feminina faz o contraponto com a voz mas­ culina. Já observou uma roda de samba sem mulher? É engessada. (Mãe Dora de Oyá, 2020)

Para a Ialorixá não é possível pensar Candomblé sem samba e vice­versa. Ela lembra que foi em um terreiro de Candomblé que surgiu a primeira manifestação do samba: “Samba

6 Caboclos são espíritos que também podem aparecer como Pretos­Velhos, Caboclos, Erês, Marinheiros, Boiadeiros ou Pombas­gira (como é o caso de Dona Maria Padilha, citada adiante).

178

vem do quimbundo semba7, termo trazido pelos negros escravizados. As raízes do samba

estão fincadas no xirê8 do Candomblé. E digo mais, o samba é a festa profana do Candomblé”.

Tia Ciata é da maior importância para a formação da identidade cultura brasileira. Ela despertou em um povo a lembrança do que estava adormecido pela escravidão. Ela trouxe à tona a autoestima, a voz, a dança, a vestimenta e o amor por nossos ancestrais. Para mim,

Tia Ciata, é a grande ancestral do samba. A grande Agbá9 . (Mãe Dora de Oyá, 2020)

Resistência parece ser uma palavra que sempre acompanhou o samba e Candomblé. Roberto Moura em Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro recorda como tais mani­ festações eram tratadas pelo Estado. “Havia na época muita atenção da polícia às reuniões dos negros: tanto o samba como o Candomblé seriam objetos de contínua perseguição, vistos como coisas perigosas, como marcas primitivas que deveriam ser necessariamente extintas [...]”, escreveu Moura (1995, p. 99).

No Rio de Janeiro era preciso ir até polícia explicar que aconteceria um samba na casa de alguém; e, na Bahia, os terreiros de Candomblé tinham que pedir autorização na Delegacia Estadual de Crimes contra os Costumes, Jogos e Diversões Públicas para praticar sua liturgia. Tais autorizações foram necessárias até janeiro de 1976 (Mascarenhas, 2016).

Apesar de alguns avanços, negras, negros e integrantes de religiões de matriz africana viram, nos últimos anos, o desmonte da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o esvaziamento da Fundação Palmares – dois órgãos do Governo Federal importantes, para a produção de políticas em prol do povo de terreiro.

O passar dos anos também transformou a estrutura do samba. O avanço capitalista no gênero musical colocou os homens como protagonistas dessa histórica marcada, em sua es­ sência, pela presença feminina. Um século depois, ainda pouco se sabe sobre as tias baianas da Pequena África e os detalhes sobre o papel de cada uma (Velloso, 1990, p.207) na conso­ lidação desse samba urbano. Além disso, também é evidente o pouco destaque da obra de artistas como Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Alcione e Leci Brandão, entre outras sambistas, em comparação aos artistas homens.

Considerações finais

A possibilidade de exercer atividades remuneradas como a venda de quitutes (acarajés, doces, etc.) criou uma categoria chamada “mulheres de partido alto”, formada por negras livres que com a renda obtida no comércio, compravam alforrias e proporcionam funerais dignos, entre outras ações sociais voltadas para a população negra.

A posição de destaque e a influência dessas mulheres ultrapassaram a esfera social, chegando a outros ambientes, como o cultural. Tia Ciata era uma negra, mulher de partido alto, integrante da Irmandade da Boa Morte e Iakekerê de uma importante casa de Candom­ blé no Rio de Janeiro. Esses fatores, somados ao carisma e ao poder agregador da baiana ra­ dicada no Rio, transformaram­na em figura essencial na história do samba.

7 Que significa umbigada.

8 Dança em formato circular que invoca Orixás.

179

Outras tias (Bebiana, Mônica, Carmen, Perciliana, Amélia10) contemporâneas à Tia Ciata

também tiveram papel relevante nas relações socioculturais do Rio de Janeiro no início do sé­ culo 20. Contudo, foi Tia Ciata quem ficou marcada como matriarca do samba, responsável por unir Donga, João da Baiana, Sinhô e Pixinguinha, entre outros mestres da música brasileira. Constatar que há 100 anos uma mulher negra, nordestina, candomblecista, foi capaz de realizar feitos tão significativos para a narrativa da música brasileira dá ânimo para ima­ ginar um futuro marcado pela diversidade religiosa, racial, de gênero e classe.

A morte de Tia Ciata, em 1924, foi o fim de um ciclo, mas não o fim de uma trajetória. O samba se multiplicou pelo Rio de Janeiro e por todo Brasil, sendo observado que nos locais de maior relevância, eram zelados por mulheres com o fundamento do Candomblé.

Distante 1.200 quilômetros do Rio de Janeiro e com um século de diferença, Mãe Dora de Oyá faz da sua casa, o Ilê Axé T’ojú Labá, um local para reverenciar o samba e o candomblé. O terreiro, localizado nos arredores de Brasília, é local de cerimônias religiosas, mas também berço de manifestações culturais da cidade. Há reza e há samba – que não deixa de ser uma forma de oração.

Integrante da Irmandade da Boa Morte, do grupo Mulheres de Axé do Brasil11 , cantora

e compositora, Mãe Dora de Oyá é liderança negra e feminina em diversas esferas – assim como foi Tia Ciata. É possível ver Mãe Dora de Oyá como a continuação da potência firmada por Ciata de Oxum.

A trajetória de ambas comprova que não há Candomblé sem samba e samba sem Can­ domblé.

A despeito de todo discurso de ódio que tenta ser normalizado no país, mulheres negras

e de axé12, deixam como legado não apenas a sua fé e suas celebrações culturais. Mulheres

como Ciata de Oxum e Dora de Oyá têm ensinado práticas de resistência que enaltecem nossa ancestralidade e assinalam o valor da memória para um povo. Pois como diz o dito popular: “Quem se esquece de onde veio, não sabe para onde vai”.