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Considerações sobre a estética visual e simbólica da performance audiovi­ sual Encruzada

A discussão sobre os processos de subjetivação, a transformação e descontinuidade na formação das identidades, serviu para contextualizar e preparar o terreno para o que vamos adentrar especificamente a seguir, a reunião dos principais aspectos simbólicos presentes nas imagens e concepções utilizadas na construção da proposta audiovisual. Com a intenção de exemplificar como nos apropriamos das imagens desse universo da encruzilhada, da figura de Exú e pomba­gira por exemplo, para demonstrar essa tentativa de desarticular artística e academicamente, as noções de colonialidade do corpo e das produções de saber desse corpo.

No princípio do vídeo aparece sublimado o que denominamos corpo­feto, este corpo dança o seu nascimento ritualizado na cabaça de Exú (Orixá primeiro). No decorrer das cenas o corpo perpassa diversas etapas de transformação até o desenvolvimento de seu estado

corpo­velho, vestido de branco, simbolizando assim a qualidade Oxalufãnica de Oxalá (o úl­

timo Orixá). Nas cenas que ocorrem entre Exú e Oxalufã tenta­se representar as qualidades

de alguns dos Orixás primordiais na criação do universo (Ayê12), alinhadas aos processos de

construção do ciclo de supravivência do ser humano, que cultua essa potência através do transe no ritual e, neste caso, através da performance simbólica na vida cotidiana, ou seja, a partir do estabelecimento dessa conexão do ser humano com sua essência ancestral torna­ se possível ativar o poder de supravivência. Em síntese, o roteiro apresenta a história de vida desse corpo, que são os nossos próprios, frutos dos processos de subjetivação característicos das encruzilhadas do Terceiro Mundo, e que, em certa medida, está presente nas configura­ ções do mundo em seu crescente processo de modernização e globalização.

O aspecto geral da trama está alinhado à concepção de um corpo­cosmos, represen­ tando a conexão primordial do humano ao orixá. Segundo o mito da criação, contado pelos

povos de língua Yorubá13, todas as coisas existentes no Universo estão contidas simbolica­

11Seres humanos que são iniciados e recebem as entidades

12Na língua Yorubá, a palavra Ayê é utilizada para referir­se a Terra, ao mundo físico, mundo dos homens. (Prandi, 2001, p.564).

13Os mitos a que nos referimos aqui advém de fontes diversas, tanto da África iorubana, quanto desta diáspora em Cuba, no Brasil e outros territórios. Uma coletânea desses mitos está registrada no livro “Mitologia dos Orixás”. Prandi (2001).

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mente no interior de Igbadú (a cabaça da existência), materialização do elo entre o mundo espiritual (Orun), representado pela parte superior da cabaça, e o mundo físico (Ayê) repre­ sentado pela parte inferior da cabaça. Igbadú também pode ser entendida como o elo da polaridade energética masculina (Oxalá) e feminina (Odudua), energias ligadas diretamente aos elementos Sol e Lua, que estão em constante fluxo, como também à imagem de uma serpente que morde o próprio rabo, em movimento cíclico e contínuo entre as dualidades. (Oxalá, 2005, p.10­11)

Ser encantado é ter o poder de acionar a supravivência, ou seja, de viver no mundo ma­ terial em conexão com o mundo espiritual, habitando a integralidade de sua própria potência, um lugar intocável e sagrado, o espaço do corpo, que pode ser compreendido a partir da imagem do grande Baobá (árvore da vida com as raízes viradas para o céu e para a terra), símbolo da conexão que liga o Orun ao Ayê, respectivamente o céu e a Terra. As subdivisões dos ciclos desse corpo­cosmos estão ligadas aos símbolos dos orixás (qualidades de naturezas presentes no universo) e entidades (as qualidades dos orixás já experienciadas por estes seres humanos em algum tempo longínquo na Terra). Cada uma delas foi composta a partir de uma citação que foi utilizada como guia conceitual e teórico durante o processo de edição das imagens e aparece como narrativa das cenas no material audiovisual que será apresen­ tado durante o congresso.

Considerações finais

O bom seguidor das religiões dos orixás deve fazer todo o possível para que seus desejos se realizem, pois é através da realização humana que os deuses ficam mais fortes, e podem assim mais nos ajudar (...) Por tudo isto se diz que as religiões afro­brasileiras são religiões de liberação da personalidade, pois não faz parte nem de seu ideário nem de suas práticas rituais o acobertamento e aniquilamento das paixões humanas de toda natureza, por mais recônditas que sejam elas (Prandi, 1996, p. 16­17).

Este artigo apresenta um vocabulário conceitual e simbólico do universo cultural afro­ diaspórico, com assentamento na encruzilhada de perspectivas advindas do terreiro brasi­ leiro. Por serem bastante específicas, a partilha deste material dentro do contexto cultural de uma universidade portuguesa tornou­se uma tarefa bastante densa e complexa, por vezes até contraditória. Contudo, acreditamos que este cenário comum de migrações e fluxos do mundo contemporâneo globalizado, reflexo das relações de colonialidade e poder, precisa ser considerado e discutido a partir de pontos de vistas transversais e transdisciplinares. Dessa forma, parece­nos importante que essa produção de saber possa gerar reflexões sobre as condições materiais de supravivência desse corpus social e cultural, que também com­ preende um lugar de grande fluxo, onde as “identidades se cruzam e se deslocam mutua­ mente” (Hall, 2006, p.20).

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DE GÊNERO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO ECLESIÁSTICA FEMININA