A degenerização da parentalidade promovida pelas famílias homoparentais reformulou a noção de família e, em especial, os papéis de gênero masculinos, permitindo a criação de modelos alternativos (Brinamen & Mitchell, 2008), inclusive no que diz respeito às mais va riadas maneiras de obter essa descendência. Essa reconfiguração promovida por pessoas que, historicamente, ocuparam lugares marginais e não estiveram representadas pelas nor mas, resultou em novas oportunidades e modelos também para pessoas não marginalizadas (Benson et al., 2005).
A possibilidade de desempenhar papéis e tarefas mais adequadas para cada pessoa no relacionamento – e não determinados culturalmente para cada gênero – tende a ser respon sável pela maior satisfação na relação (Gianino, 2008). O vínculo passa a acontecer através da ligação emocional e do cuidado mútuo entre as pessoas, transcendendo a biologia e mi nimizando também a importância das diferenças de cor, raça, religião, orientação sexual e identidade de gênero.
Esse envolvimento emocional que talha a parentalidade é relevante porque ilustra como os pais podem tornarse fontes emocionais significativas na vida familiar (Brinamen & Mit chell, 2008), a despeito do papel social que deveriam desempenhar em um arranjo hetero normativo tradicional. Além disso, o vínculo fortalecido desde o início se mantém em caso de uma futura separação do casal (Promundo et al., 2015).
Há muitas dimensões a serem levadas em conta a respeito das configurações familiares plurais, em especial sobre as que possuem pessoas trans* em sua composição. Lucas Platero Mendéz e Esther Arjonilla (2017) apontam a necessidade de trazer luz para suas experiências positivas nas escolhas de vida, relacionamentos, construção de laços familiares e relações de cuidado.
Em relação às suas práticas, as composições familiares que contam com pessoas trans* apresentam melhor divisão de tarefas de cuidado, os papéis de gênero são menos segmentados e a educação é mais respeitosa em relação às diferenças, permitindo maior liberdade na vi vência da própria sexualidade (p. 45). Por outro lado, é frequente o sentimento de falta de apoio e incentivo para vivenciarem a etapa reprodutiva em contexto diferente da heteronorma. No caso específico dos homens trans* que gestaram após terem passado pelo processo de transição de gênero, há o agravante de que a gravidez é vista culturalmente como um processo intrinsecamente feminino, ligado não apenas à biologia, mas também à uma ex pressão de gênero feminina. O que ocorre é que os homens trans* podem ser considerados “confusos”, ou ainda, deslegitimados enquanto homens, como se engravidar e “ser homem” fosse incompatível (p. 75).
O processo de ter descendência e exercer o cuidado, entretanto, pode ampliar o sentido das vivências dos homens trans*, tendo em conta que o atendimento de demandas de uma
187 criança retira da urgência as questões específicas pelas quais passam ao longo da assunção de
sua identidade. A experiência da parentalidade pode, inclusive, ser um fator protetivo contra suicídios e atuar na melhora da saúde mental na população trans* adulta (Moody & Smith, 2013; Wierckx et al., 2012), assim como a socialização promovida por grupos de pais em situa ção semelhante (Schacher, Auerbach & Silverstein, 2005; Platero Mendéz & Arjonilla, 2017). Atuando na transformação da estrutura binária da sociedade, a ética do cuidado advinda das relações de afeto de homens trans* que exercem funções parentais tem o potencial de ir enfraquecendo a lógica hetero e cisnormativa do sistema patriarcal em diversas frentes. As parentalidades dissidentes provam que, nas relações íntimas de cuidado e apoio mútuo, não é somente através das famílias nucleares, tampouco do cuidado exclusivo da mãe – e das mulheres em geral – que se dá a continuação da espécie humana (Gilligan, 2013).
O entendimento do cuidado enquanto uma tarefa das mulheres, entretanto, somente se torna naturalizado a partir do momento que é interiorizado enquanto estrutura de domi nação. A aceitação desse modelo provoca a desqualificação das características atribuídas às mulheres e o cuidado, por conseguinte, tornase desvalorizado (Gilligan, 2013).
Contrariamente, em um contexto democrático, a ética do cuidado é uma ética humana (p. 50). O cuidado é uma capacidade que pode ser desenvolvida por todos os seres humanos, baseada na relação com o próximo em um modelo de valorização da interdependência (Tronto, 1993; Kühnen, 2014). Todas as pessoas precisam ser cuidadas em alguma medida e todas podem cuidar, dentro de suas possibilidades.
Conclusão
Nesse artigo, assumo a perspectiva da ética do cuidado trans* enquanto uma ferra menta de subversão do modelo de agenciamento patriarcal, ao afiançar que o cuidado é res ponsabilidade de todas as pessoas e, por isso, deve ser desgenerizado (Gelabert, 2015). Um terreno fértil onde tal ética pode florescer é o das relações íntimas, em especial nos arranjos familiares como os que aqui foram apresentados.
Para que esse panorama possa desenvolverse, é importante ter em conta a transfor mação da abordagem em relação à população trans* e sua capacidade reprodutiva, disse minando informações que se transformem em subsídios para profissionais das mais diversas áreas que entrarão em contato com essa família, seja através das crianças e adolescentes ou mesmo nos processos de cuidado da saúde de pessoas adultas.
Além disso, é fundamental poder minimizar as implicações para a saúde desde uma pers pectiva de autodeterminação das pessoas trans* que, povoando as diversas intersecções das quais fazem parte ou estão na fronteira, possam evitar sua desumanização ou qualquer justifi cativa de eliminação ou manutenção de uma vida precária e menos vivível (Butler, 2011, p. 13).
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