• Nenhum resultado encontrado

DE UMA DEMOCRACIA AMEAÇADA: NOÇÕES E VIVÊNCIAS DE

FAMÍLIAS LGB

1

Mónica Carneiro2

RESUMO

A família evoluiu ao longo da história, começando por ser um conceito de categorização e organização social, passando pela conceção tradicional durante a modernidade, e estando hoje a caminho de uma visão pós­moderna, onde inclui múltiplas formas de organização, composição e funcionamento (Ibarra, 2017; Stacey, 1990). A construção da noção de família está, também, intimamente ligada aos produtos das instituições políticas e dos estados democráticos com representação e lugares de poder. A crise democrática está hoje fortemente ligada a correntes políticas conservadoras e neoliberais, e por con­ sequência, a narrativas de família como instituição conservadora. O principal objetivo deste estudo é explorar as conceções e vivências de pessoas que vivem em famílias LGB enquanto membros dessas famílias, tendo em consideração as influências políticas e socioculturais. Para tal, o foco para a recolha de dados baseou­se nas famílias LGB, nas suas noções de família, e nas vivências e desafios sociais ex­ perienciados. Foram realizadas 8 entrevistas individuais semiestruturadas a pessoas que se consideram membros deste tipo de família. O procedimento para análise do corpus foi a Análise Temática de Braun e Clarke (2006), tendo­se identificado os seguintes temas: (1) (in)conformidade; e (2) entre a opressão e a afirmação. As narrativas recolhidas permitem destacar a visibilidade que a população LGB está a dar a novas formas de família, reconceitualizando­a de forma mais diversa e inclusiva. Reflete­se ainda sobre a influência dos sistemas de poder na aceitação social destas famílias, em específico num con­ texto social democrático não representativo da comunidade e com ameaças ideológicas ao seu reco­ nhecimento, o que leva a variadas situações de opressão da sua livre expressão de identidade como pessoas e/ou famílias LGB.

PALAVRAS-CHAVE:

Famílias LGB; diversidade familiar; pós­modernidade; democracia ameaçada

Introdução

Desde 2002 que, segundo a Organização Mundial da Saúde:

“o conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento, parceria sexual ou adoção. Família é o grupo cujas relações sejam baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino comum”.

No entanto, as noções e vivências das pessoas no dia­a­dia parecem estar ainda, em parte, “presas” a uma família tradicional, oprimindo desvios deste padrão e mantendo a or­ ganização social longe da afirmação da multiplicidade e da verdadeira inclusão.

1 Trabalho apresentado durante o VII Congresso Internacional em Estudos Culturais: Performatividades de Género na Democracia Ameaçada.

2 Mestre Psicologia Clínica e da Saúde pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto. E­mail: monica.spcarneiro@gmail.com

192

Ao longo do tempo, as circunstâncias sociais, culturais e económicas levaram à institui­ ção do modelo de família tradicional de pai, mãe e filhos/as. No entanto, nas últimas décadas a constante mobilidade geográfica necessária à obtenção de emprego ou progressão na car­ reira, a mobilização, auto­organização e empoderamento de minorias, e subsequentes mu­ danças legislativas, puseram em causa o modelo tradicional e a emergência de novas formas de ser família (Ibarra, 2017). Esta possibilidade de diferentes formas de organização familiar e de expressão levou a um novo conceito – o de família pós­moderna, afirmando que as in­ terações sociais das relações referidas como família já não têm apenas um formato de exis­ tência (Stacey, 1990).

A noção de família também se relaciona e é, em si, produto de circunstâncias políticas. A democracia pode ser conceptualizada como um processo histórico a longo prazo (Gerring, Bond, Barndt & Moreno, 2005). Teoricamente, em democracia, os setores menos privilegia­ dos da sociedade teriam mais capacidade de se organizar e defender os seus interesses (Beer, 2009), no entanto os desenvolvimentos de permanente contestação de poder (Geissel, 2015) e construtos políticos, sociais e culturais influenciam esta representação, especialmente quando surgem ameaças. Atualmente, a crise democrática está intimamente ligada a cor­ rentes políticas conservadoras e neoliberais, e por consequência narrativas de família como instituição conservadora. Neste sentido, as auto­determinações e liberdades sexuais intima­ mente correlacionadas com os princípios da democracia, são também ameaçadas e conce­ bidas como destrutivas do status quo (Blühdorn, 2020).

A diversidade familiar engloba uma ampla gama de características ou dimensões em que as famílias variam, podendo estas ser classe social, etnia, raça, expressão de género ou orientação sexual, sendo esta última o foco do presente estudo (van Eeden­Moorefield & Demo, 2007). Assim, relativamente às famílias da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais (LGBT) e às suas noções da família, um estudo recente de Hull e Ortyl (2018) destaca a importância da “família escolhida”, que engloba pessoas além dos laços de sangue (amigos/as, vizinhos/as e ex­companheiros/as, por exemplo), salientando também que os seus significados são tão conservadores quanto revolucionários, e que valorizam mais carac­ terísticas funcionais do que características estruturais para definir a família. Além das per­ cepções mais pessoais, a nível social a homonormatividade é tida em consideração, podendo ser considerada a influência e reprodução coletiva dos valores familiares e relacionais hete­ ronormativos para e na população LGBT (Richardson, 2004).

Em Portugal, desde a adesão à União Europeia (UE), foi iniciado um caminho de sensi­ bilização e afirmação para os direitos da população LGBT, surgindo desde 2010 alterações relevantes para a expressão legal de famílias LGBT e da homoparentalidade, como por exem­ plo a lei da co­adoção e do casamento por pessoas do mesmo sexo. No entanto, é importante ter em consideração que avanços legais não traduzem uma sociedade inclusiva, nem um sis­ tema cultural não opressivo, levando a que a população LGBT ainda se sinta discriminada, inclusive pelas instituições estatais (Oliveira & Nogueira, 2010). De facto, a investigação tem encontrado um nível de stress em famílias homoparentais superior ao normal (Vecho & Schneider, 2005), o que indica que a população LGBT e as suas famílias encontram desafios suplementares no seu dia­a­dia. É por isso relevante a produção de conhecimento científico de forma a promover resposta sociais informadas para as necessidades específicas desta po­ pulação (Gato & Fontaine, 2016).

193

Estudo Empírico

Assim, os objetivos do presente estudo são: perceber quais as noções de família junto de indivíduos LGB que se consideram numa organização de família LGB, e se esta categoria representa uma formação importante para a sua identidade (Objetivo 1); perceber de forma mais compreensiva como é a sua vivência na sociedade como família LGB, refletindo sobre principais desafios, benefícios e/ou impactos que marcam esta sua pertença social (Objetivo 2); analisar os indicadores de mudança nas dimensões sociais, culturais e políticas da nossa sociedade (Objetivo 3); perceber se o conceito de família se pode transformar tornando­se mais inclusivo e diverso (Objetivo 4).

Um total de oito cidadãos e cidadãs portugueses/as, maiores de 18 anos, que caracte­ rizaram o seu agrupamento social como sendo uma família LGB foram entrevistados para efeitos do presente estudo. O principal objetivo deste estudo foi explorar as vivências das pessoas, tendo em consideração a sua subjetividade inerente sendo assim estudo explora­ tório, pelo que uma abordagem qualitativa foi considerada a mais adequada. Na metodologia qualitativa afirma­se a complexidade do mundo sociocultural e destaca­se a importância da experiência simbólica, sendo dessa forma uma ferramenta chave para a compreensão de grupos sociais, como é o caso das famílias LGB.

No que toca à técnica de recolha de informação. a entrevista foi escolhida por ser a forma mais rica de recolher informações que permitem explorar os objetivos do presente estudo. Os/as participantes foram abordados por conveniência, usando o método da “bola de neve” para angariação de mais voluntários/as, e procurando­se paridade de género e mul­ tiplicidade de formatos e variações de famílias LGB. A análise temática de Braun e Clarke (2006) foi o procedimento de análise de dados escolhido para esta investigação por permitir identificar, analisar e comunicar dados por padrões (temas), descrevendo e organizando os dados de forma rica. Além disso, a autora posiciona­se perante uma análise temática do tipo Big Q, reflexiva/orgânica, isto é, relacionada com um quadro de análise qualitativo e que prioriza a fluidez de processo na interpretação dos resultados, o que é congruente com as opções teóricas do estudo a nível de filosofia e formato de investigação. Estas características são fundamentais para a coerência entre o método e as bases teóricas deste trabalho muito associado ao construtivismo social e procurando conhecer e explorar múltiplos significados e discursos.