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SOBRE O ACONTECIMENTO TEATRAL E REPRESENTATIVIDADE

PALAVRAS­CHAVE:

Encenação teatral; recepção; acontecimento; representatividade transgênere.

Vocês vão pensar que deveríamos nos encontrar em uma igreja, mas deixa eu te contar: Na Igreja ali no fim da rua não me deixam entrar. — Rainha Jesus 3 Trafico esse trecho da peça teatral O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU dito pela personagem Rainha Jesus e o converto em epígrafe, pois, antes de qualquer atra­

1 Trabalho apresentado durante o VII Congresso Internacional em Estudos Culturais: Performatividades de Género na Democracia Ameaçada.

2 Mestranda em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina. E­mail: amanda_fig_01@hotmail.com 3 Trecho da peça teatral THE GOSPEL ACCORDING TO JESUS QUEEN OF HEAVEN, de Jo Clifford, traduzido pela

diretora da encenação brasileira, Natalia Mallo. A tradução não foi publicada no Brasil e trata­se de arquivo pessoal da pesquisadora, por isso não consta no referencial. Outro trecho da tradução aparecerá no tópico Re­ presentatividade Trans.

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vessamento ou interpretação que possa eu trazer em relação à obra ­ em sua versão apre­ sentada no Brasil desde 2016 ­ para o campo do conhecimento acadêmico, enquanto pes­ quisadora cisgênera preciso lembrar ou relembrar que esse espaço foi e é, assim como as igrejas cristãs, tradicionalmente e sistematicamente excludente das corporeidades dissiden­ tes, como as corpas travestigêneres. Sendo o fenômeno teatral aqui estudado documento dessa cultura e, portanto, desse saber, é preciso alertar que não basta deixar entrar somente ele nos espaços de poder, como a universidade. Necessidade há de integrar às instituições acadêmicas, junto às produções culturais das populações travesti e transgênere, as próprias sujeitas e sujeitos que as põe no mundo e através das quais se constroem novas possibilida­ des de experiência sobre performances de gênero.

Posso ter me precipitado. É provável que tal fala inicial seja parte das conclusões, mas a estrutura permite, assim como permite que revele meu intuito: ventilar o que aprendo com O EVANGELHO escrito pela dramaturga escocesa Jo Clifford. Só aprendo, no entanto, porque me pus no momento do espetáculo a observar ativamente o que se realizava em minha frente. Ao ler as cenas, permiti­me ser lida. Ao interrogar a encenação, interroguei a mim mesma – potencial apontado pelo professor e pesquisador de recepção teatral, Flávio Desgranges (2017). É nesta fronteira do encontro que se constrói minha pesquisa. Exponho aqui o movimento entre as percepções primeiras de uma espectadora teatral atenta e aberta e as análises posteriores de uma pesquisadora inquieta e que vê o fenômeno estudado cres­ cendo em tamanho e profundidade. Não por acaso. Foi este o primeiro espetáculo que vi ser protagonizado por uma mulheridade travesti.

Esta mulher, Renata Carvalho – atriz com anos de trajetória no teatro brasileiro – inter­ preta a protagonista que em monólogo pulsante de diálogo com o público leva luz nos palcos à questão: e se Jesus voltasse nos dias de hoje como uma travesti?

De 2018, ano em que assisti pela primeira vez4 O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, até

este ano de 2020, muitas quebras de paradigma em termos de leitura ética, estética e crítica sobre arte tiveram seu começo. Para entender os motivos que levaram à transformação do meu olhar partindo do vínculo estabelecido com a obra, recorri ao estudo do acontecimento segundo o compreende tanto o teatrólogo e professor argentino Jorge Dubatti, quanto o fi­ lósofo francês Alain Badiou, somando seus respectivos modos de ver. Após levantar a dis­ cussão sigo, como consequência, para a investigação sobre o lugar da representatividade travesti na produção deste acontecimento.

Proponho­me a atuar, enquanto pesquisadora, como uma Rapsoda, inspirada no perso­ nagem da literatura grega clássica, o Rapsodo. Ele aparece desde A República de Platão e foi retomado pelo filósofo e crítico de arte Walter Benjamin (1987) em seus ensaios sobre o teatro europeu, em especial o Alemão. Benjamin percebe que o Rapsodo, também conhecido como O Sábio, foi abandonado nos palcos classicistas por ser ele um narrador que mesclava os gê­ neros literários épico, lírico e dramático. Fundamentalmente sua fórmula rapsódica de contar histórias se valia de um recorte­cole de linguagens. Jean­Pierre Sarrazac (2017), teórico francês do teatro, reforça a ideia de que contemporaneamente a pulsão carregada pelo estilo rapsó­ dico revive com força, já que ele sintomaticamente trama ou compõe por decomposição.

4 A encenação teatral foi apresentada em outubro de 2018 durante a Terceira Semana de Arte da Universidade Fe­ deral de Santa Catarina (UFSC), na cidade de Florianópolis.

51 Interessa­me este aspecto que Sarrazac chama de pulsão, interessa­me por conter a vontade e o empenho de costurar as histórias a partir de múltiplas linhas que não percorrem o caminho partindo e/ou chegando nos mesmos pontos. Ver e contar como uma Rapsoda requer fugir da forma linear, causal e hegemônica de compreender o mundo. Portanto, teço aqui considerações na tentativa de forjar pensamentos que auxiliem no debate sobre o papel da arte teatral em tempos de ruptura democrática, em especial, no contexto brasileiro.

O que aconteceu?

Três dias. Um, dois, três dias. Foram apenas três dias que distanciaram no tempo a elei­ ção do atual presidente da República Jair Messias Bolsonaro da encenação O EVANGELHO SEGUNDO, JESUS RAINHA DO CÉU na qual estive como parte da plateia. É importante ressal­ tar a contradição ou a coincidência aos avessos. Bolsonaro, político de extrema direita, eleito com apoio da comunidade cristã do Brasil fabricou uma campanha de pautas moralistas em que usava como justificativa e apelo uma suposta necessidade de guerrear contra a “ideolo­ gia de gênero” – conceito falacioso e montado para o combate à luta progressista de origem feminista que visa o repartimento justo de direitos entre os gêneros, como demonstra os pesquisadores de sociologia e direito Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017). No mesmo mês da eleição e da encenação, outubro de 2018, como relata o Dossiê (Benevides & Nogueira, 2020) da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), Bolsonaro as­ sina, como um dos últimos atos de campanha, o documento do Voto Católico Brasil em que defende o matrimônio nos moldes da religião católica e o enfrentamento da tal ideologia.

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU teve nesse contexto sua imagem cap­ turada ­ a imagem poética de uma travesti como filha de Deus – arbitrariamente. Usada como “prova” da ideologia de gênero, como apropriação perversa da Bíblia Sagrada, foi diversas vezes boicotada e difamada de forma a condicionar a encenação e as artistas envolvidas na produção ao perigo do fanatismo religioso enquanto tentavam se manter em circuito nos festivais teatrais pelo país. Um dos episódios mais conturbados dessa trajetória ocorreu no mesmo ano de 2018 durante o Festival de Inverno de Garanhuns­PE (FIG) quando o próprio evento foi ameaçado pela diocese de Garanhuns e pela prefeitura do município de não ter os espaços públicos liberados para apresentações caso não retirasse da programação a en­ cenação com Renata carvalho. O espetáculo foi dispensado e então reinserido depois da de­ terminação do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mais protestos da comunidade cristã ocorreram e um mandado de segurança foi solicitado pela Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns sendo assinado por um desembargador da região. Como desfecho O EVAN­ GELHO teve sua realização oficial impedida pela Polícia Militar, mas por vontade e apoio dos espectadores e espectadoras do festival, Renata se apresentou em outro local quase sem in­ fraestrutura: desvelando a realidade da perseguição às existências trans fomentada pela so­ ciedade e liberada pelo Estado.

A contradição explícita dos três dias entre um país exaltado por um período eleitoral com nível de animosidade atípico e o êxito de um projeto de exclusão e violência para as mi­ norias políticas indo de encontro à vivência teatral acalentadora que radicaliza a democrati­ zação das diferentes corporeidades e subjetividades humanas nos espaços coletivos

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combinou à minha experiência de espectadora muitas camadas de significação, mas antes delas, uma comoção inexprimível.

Segundo Dubatti (2016), antes de ser comunicável, o teatro é uma arte do aconteci­ mento e este só existe por conter a efemeridade do encontro aurático no tempo/espaço ha­ bitados por corpos presentes. Por esse motivo, é impossível que aqui eu tente descrever o

que se passou ali, naquela hora, naquele lugar, onde nos encontrávamos5. Estar diante da

corpa viva e pulsante de Renata, ouvir as palavras preciosas que ela compartilhava a fim de enaltecer e celebrar as transgeneridades e revelando a luz que são e projetam nos lugares que adentram fez em mim reascender a esperança no potencial das artes para a construção de uma democracia de fato justa no Brasil. Essa esperança estava contida na capacidade da­ quele espetáculo teatral de me colocar em contato com o comum ao me fazer sentir parte de algo, parte de uma consciência humana generosa que está além das opressões sociais e culturais.

Para Badiou (2013) o acontecimento também está ligado ao convívio, mas contém ainda a vocação, a partir desse convívio das corpas e corpos, de fazer surgir uma nova possibilidade que antes não era avistada e que rompe por si mesma com a condição anterior de sujeição do pensamento ao poder dominante. E ele é político quando se abre para outras perspectivas políticas que fogem ao controle imposto. Esta expansão do imaginário que me levou a findar certa paralisia advinda do medo do governo bolsonarista foi concebida no compartilhamento da poética trans no tablado de uma universidade pública brasileira, ou seja, a representati­ vidade fez surgir diante dos meus olhos um acontecimento político. E foi inesquecível.

Representatividade trans

Ela era bela, essa pessoa nascida homem, em vestes de mulher e com um jasmim no cabelo, guiando­nos até aqui.

Ela era uma de nós. E foi assim que tudo começou. Um grupo de iguais, um encontro de amigas com o mesmo desejo de mudar o mundo. — Rainha Jesus

A Rainha Jesus vem mostrando seu desejo de mudar o mundo desde sua estreia no Reino Unido ainda em 2009 em uma igreja em Glasgow, onde foi interpretada pela própria Jo Clifford. O conteúdo da peça encenada utiliza da linguagem metafórica para renovar as passagens mais famosas do texto bíblico no intuito de incluir a comunidade transgênere assim como a preta, a homossexual, a bissexual, as prostitutas e outras minorias historica­ mente marginalizadas, no reino de amor proposto na tradição judaico cristã pelo filho de

5 Paráfrase da fala inicial da peça, dita pela Rainha Jesus: Esta é a hora, Este é o lugar, É aqui onde nos encontramos, tradução de Natalia Mallo.

53 Deus. Mudar o gênero desse filho numa operação simbólica típica do campo das artes foi o suficiente para provar que da Europa à América do Sul a sugestão de um olhar humanizado para essas pessoas não é feita sem protestos. De Glasgow à Garanhuns a Rainha do Céu tende a ser perseguida pela real ideologia cisgênera, patriarcal e colonizadora que se nega a aceitar e incorporar na sociedade as diferenças sem que uma maneira de experimentar/ex­ pressar a raça, a sexualidade, a geografia, a religião ou o gênero tenha que se impor sobre as outras.

Na medida em que a obra teatral com representatividade travesti quebra as expectativas cisgêneras e coloca nos palcos Renata Carvalho no papel tão incansavelmente repetido de Jesus pela cultura que detém a norma, ela convoca o público a exercitar uma nova percepção do fenômeno do teatro. Perguntas antes inexistentes começam a se evidenciar, como: por que nunca havia visto uma mulher trans nos palcos? Por que me surpreende uma mulher trans representar Jesus se o teatro é uma arte que prevê o jogo simbólico? Por que Jesus precisa ser sempre um homem cis branco de barba? Por que o conteúdo da peça é recrimi­ nado pela sociedade cristã antes mesmo de assistirem à encenação? A imagem de Jesus per­ tence a alguém, alguma instituição ou Estado? Por que é intolerável para os grupos católicos e evangélicos, em especial do Brasil, a inclusão de pessoas trans nos espaços de arte?

Para Jota Mombaça (2016), bicha preta não­binária e artista visual brasileira, é preciso nomear a norma, o que significa dizer que para entendermos como funcionam as estruturas que fazem a manutenção do poder por onde é distribuída a violência injustamente, precisa­ mos primeiro dar nome aos agentes que seguram os pilares dessa arquitetura.

Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu pri­ vilégio. A não­marcação é o que garante às posições privilegiadas (normativas) seu princípio de não questionamento, isto é: seu conforto ontológico, sua habilidade de perceber a si como norma e ao mundo como espelho. Em oposição a isso, “o outro” – diagrama de ima­ gens de alteridade que conformam as margens dos projetos identitários dos “sujeitos nor­ mais” – é hiper marcado, incessantemente traduzido pelas analíticas do poder e da racialidade, simultaneamente invisível como sujeito e exposto enquanto objeto. Nomear a norma é devolver essa interpelação e obrigar o normal a confrontar­se consigo próprio, expor os regimes que o sustentam, bagunçar a lógica de seu privilégio, intensificar suas crises e desmontar sua ontologia dominante e controladora. (Mombaça, 2016, p. 11)

Quando vejo a Renata Carvalho no teatro consigo estranhar a norma. Consigo estranhar o fato de nunca ter percebido a ausência de trans e travestis como protagonistas ou mesmo coadjuvantes no tablado. Como mulher cis eu estava habituada à performatividade cisgênera predominante, acostumada a não enxergar a precária disposição das transgeneridades nos espaços de arte. Nesta falta de visão perpassa uma violência fundamental que torna o opres­ sor e/ou privilegiado isento do compromisso de trabalhar para o reordenamento social, para o combate às desigualdades. A pesquisadora e performer travesti Dodi Leal (2018) demonstra que o estranhamento que a cisgeneridade exibe ao se deparar com uma corpa não­cisgênera, ou seja, uma corpa transgênere, remete ao recurso épico do teatro, teorizado no século XX por Bertold Brecht. O dramaturgo e diretor alemão considerava esse recurso capaz de levar a classe trabalhadora à compreensão do maquinário dominador burguês; já no cotidiano,

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dentro e fora dos palcos, o estranhamento sobre as desobediências de gênero, como no épico, revelam o maquinário do CIStema igualmente dominador.

Inevitavelmente me pergunto se fosse a atriz a interpretar a Rainha do Céu uma mulher cis (trans fake) ao invés de uma travesti sairia eu do teatro com a sensação de incômodo, de interrogação a respeito do meu até então modus operandi estético e sociocultural? Teria eu compreendido o tamanho da lacuna e da perda vivenciadas diariamente pela falta destas corpas construtoras de uma outra subjetividade no ambiente e debate públicos? É inegável que seria uma outra realidade, insuficiente para despertar em mim os alertas e a esperança. Sobre este aspecto lembro­me de Walter Benjamin (1987) em seu aviso sobre o papel do historiador, sobre ser ele responsável por retirar das vozes do passado a esperança sabendo que até os mortos estão inseguros nas mãos do inimigo. Peço licença para dizer que se esta é a incumbência do historiador, a de uma travesti deve ser a de permanecer VIVA, sendo sua voz VIVA capaz de esperançar o presente.

Para ser justa e abrir caminhos que deem a essas vozes vivas e organizadas a devida oportunidade de se expressarem, transcrevo aqui parte do Manifesto Representatividade Trans, Já! escrito pelo MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) em 2018 e divulgado

nas suas redes sociais6. A vez é delas e é aqui que me despeço.

Diga Sim ao Talento Trans!

Nós artistas Trans (Travestis, mulheres e homens Trans e pessoas Trans não­binárias), orga­ nizados, vimos através deste manifesto buscar pela representatividade e por oportunidades de emprego por meio da redistribuição da produção artística na TV, no teatro e no cinema. O Brasil é o país que mais mata Travestis e Transexuais no mundo. Nossa segunda causa de morte é o suicídio. A vida média de uma pessoa Trans é de apenas 35 anos. Somos, quase todes, expulses de casa muito cedo, às vezes com apenas 12 ou 14 anos de idade. Mais de 90% da nossa população está na prostituição, pois o mercado de trabalho não nos aceita. Somos privades de família, educação, trabalho, moradia, saúde e afeto.

[...]

Em uma sociedade pautada por corpos e suas corporeidades, o corpo trans é abjeto, ex­ cluído e marginalizado.

Lutamos pela humanização dos nossos corpos, das nossas identidades, e pela naturalização das nossas presenças nos mais diversos espaços da sociedade.

Durante décadas fomos publicamente censuradas pelo Estado por operações como “Tarân­ tula” e “Comando de caça aos gays”, que perseguiam, prendiam, torturavam, espancavam e assassinavam as travestis, que não podiam nem ao menos andar pelas ruas; presas, eram obrigadas a se mutilarem para serem libertas. Era proibido mencionar a palavra Travesti em qualquer meio de comunicação.

[...]

Por que não chamam artistas Trans para interpretar um personagem Trans?

Por que não convidam artistas Trans também para escrever/produzir/trabalhar/ colaborar/participar dessa história/estória, produção, grupos e coletivos artísticos/ Sets/ca­ marins/estúdios?

Primeiro, porque o corpo trans é sistematicamente estigmatizado, hiper­sexualizado, cari­ caturado, fetichizado, zootificado, desumanizado e risível. Precisamos conversar como somos retratades pela grande mídia, pelos coletivos e pelos grupos artísticos; no cinema,

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nos canais do Youtube, que, na sua grande maioria, nos trata de forma preconceituosa/trans­ fóbica/errônea/caricatural/sexualizada/fetichizada, que muitas vezes só reforça mais este­ reótipos contribuindo ainda mais para a exclusão dos nossos corpos Trans.

Segundo, não acreditam no nosso potencial e nas nossas técnicas como artistas. Mesmo que a maioria dos personagens Trans sejam cheios de aptidões e talento, nós artistas Trans nunca temos talento suficiente para interpretá­los, não somos “Trans suficientes”. Sim, vá­ rios artistas Trans já perderam papéis de personagens Trans para um ator/atriz cis. Por acre­ ditarem que não somos capazes de humanizar aquela história/estória/personagem, restando apenas pequenas participações e personagens.

Terceiro, interpretar um personagem Trans muitas vezes alavanca a carreira do ator/atriz cis acarretando indicações e prêmios.

Quarto, muitos artistas acreditam que apenas falar/mencionar/tratar do tema fortalece a nossa população Trans, mas visibilidade não nos tira da marginalidade. Precisamos de re­ distribuição financeira, precisamos de emprego; do contrário, continuam sendo tirados, muitas vezes, nossos lugares/espaços de fala nos processos artísticos, assim contribuindo para nossa marginalização.

Quinto, muitos artistas/coletivos/grupos/mídias não estavam atentos a esse tema, até des­ conheciam essas realidades, pois não se falava sobre. Os artistas cisgêneros de 2018 preci­ sam repensar seu fazer artístico.

REPRESENTATIVIDADE é o ato de estarmos PRESENTES. Não existe meia representatividade.

Ou se tem ou não se tem.

Precisamos ser vistas e vistos, reconhecides através de referências concretas, da presença dos nossos corpos, que carregam nossas histórias.

Para a maioria da população Trans jovem ou “não­assumida” é nos filmes e na televisão a primeira, senão a única vez, que se vêem representades.

Será que as pessoas cisgêneras e brancas sabem o que é crescer e passar toda uma vida sem entender quem você é ou o que está acontecendo com você por falta de modelos ou referências que dêem sentido para suas vidas e experiências?

E a liberdade artística? E sobre o ator não ter sexo?

Nós artistas Trans gostaríamos de conhecer de perto essa tal liberdade artística...

No dia em que não for mais preciso separar ou diferenciar artistas cis de artistas Trans, no dia em que formos ao teatro, ao cinema ou mesmo ligarmos a televisão e virmos artistas Trans interpretando personagens cis naturalmente, nesse dia poderemos conversar sobre liberdade artística e dizer que o ator não tem sexo.

No momento, estamos tentando ter o direito de entrar, estar, pertencer e permanecer na arte e no mercado de arte, sendo reconhecides pelos trabalhos que criamos e recebendo financeiramente por eles, pois não adianta reconhecimento sem redistribuição financeira. Será que a exclusão não fere a liberdade artística também?

Nós, artistas Trans, entendemos a liberdade artística como expressão sem interdições, sem barreiras e sem fronteiras. Também entendemos a arte como instrumento libertador, ques­ tionador, símbolo de luta e de resistência.

E para que serve o artista, senão para refletir, questionar e falar do seu tempo?