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8.4. As Danças Sagradas

8.4.3. Análise da dança

O sentido das danças, assim como o do ritual em geral, não pôde ser completamente entendido, pois existem vários significados estratificados, os quais são percebidos apenas pelos iniciados e pessoas ligadas à esfera de afetividade e da memória do grupo.

Como nos explica Turner (1967), os símbolos em geral e os das danças, em particular, podem "condensar" vários significados dos grupos sociais contemporaneamente, sejam eles corpóreos analógicos, sejam arbitrários. Por isso, as danças sagradas expressam e manifestam vários sentidos numa única dança. Nessas, corpo e espírito, conteúdo e forma ligam-se numa síntese única e transcendental. A própria forma torna-se o conteúdo e o mito vivo. Essas danças, portanto, não podem ser chamadas de simbólicas, pois no transe assistimos à manifestação em si do sagrado; é a transcendência que está dançando, uma vez que as pessoas do candomblé acreditam ser o orixá manifestado que dança. O corpo transforma-se mimeticamente no objeto ou no animal que materializa a energia daquela divindade que está sendo homenageada. Oiá-Iansã, sendo o orixá do vento e da tempestade, manifesta o elemento ar que, em movimento, gera o fogo, dentro do qual existem partículas de água; mas também é o próprio búfalo, é a própria borboleta, é também a própria espada, é uma corrente de transformações ao infinito. Assim, Oxum é uma onda do rio, é uma feiticeira potente, é uma doce mãe, é a sedução de ser mulher, é um peixe que nada, é uma sereia que atrai. Iemanjá é a mãe, é também uma sereia, é aquela que orienta todos os seus filhos e torna-se uma espada para protegê-los.

Cada dança de orixá pode ser encarada como uma parte da história da divindade que abrange uma grande época histórica. E, como diz Augras (1983: 153), por exemplo:

"(…) pode-se observar muitos detalhes que sugerem a fusão, na figura de Oiá-Iansã, de várias divindades, de origens diversas (...). A Oiá relacionada com Oxóssi (...) foi provavelmente uma deusa agrária, ligada aos cultos da fecundidade e do boi".

Oiá viveu em várias épocas. O fato de ser uma mulher-búfalo deixa bem claro a sua ligação com os caçadores e os nômades que seguiam o movimento dos animais. Como mostra a sua ligação com Oxóssi, o rei da mata, e com Ogum, da mesma estirpe de Odé, ambos caçadores. Já quanto a sua ligação com Xangô, ela tem origem na descoberta do fogo, que a deusa transmite aos homens. Ainda a respeito de sua ligação com Ogum, essa se dá por causa do seu trabalho: junto com ele, na oficina, para forjar o ferro. E, finalmente, quanto a Omulu, ela recebe dele o poder sobre os eguns, que, em algumas lendas, seriam os próprios filhos de Oiá-Iansã. Todos esses aspectos, e outros mais, são expressados nas suas danças, as quais possuem os seguintes aspectos gerais:

1) um movimento circular no começo, a fim de delimitar o espaço "mágico" no qual ela concentra as energias da natureza: o ar, a água e o fogo. Essa rotação é feita também com o movimentos dos braços, que giram com o corpo todo e simbolizam o ar que, quando em movimento, torna-se vento e, sempre mais rapidamente, o furacão e a tempestade (água);

2) um movimento com linhas quebradas e, continuamente, mudando de direção, que simboliza a energia do ar. Como explicou uma filha-de-santo, "o ar está em todo lugar, em cima, embaixo, de lado." Por seguir o movimento do ar, Oiá encontra sempre novas direções, possui e ocupa o espaço agressivamente;

3) um impulso interno nervoso, com movimentos súbitos e rápidos, que descreve a eletricidade e a impaciência dessa deusa;

4) um movimento fluido e leve, que expressa o ar leve e a doçura do orixá, levando os espíritos dos mortos ao orum.

O primeiro movimento pode ser entendido a partir da discussão anterior sobre a roda sagrada. Ele aponta a construção de um espaço mágico, onde se concentram e se fazem concentrar as forças da natureza. Também o contínuo redemoinho que Iansã faz sobre si mesma, simboliza o elemento "ar em movimento", que dá origem ao fogo. Ela ocupa muito espaço, tanto horizontal quanto verticalmente. Às vezes, abre os braços, inclina a cabeça para trás e roda sobre si mesma, desenhando uma espiral com o próprio corpo e locomovendo-se no espaço. Deixa claro, através da sua postura firme, que precisa de muito espaço e que é dona dele. Iansã age com um movimento que, do interior, se abre para o exterior, ela está mais ligada à ação do que à intimidade.

Quanto ao terceiro aspecto, Oiá movimenta-se em diagonal, anda pelo barracão sem uma meta precisa: qualquer coisa nova a seduz e provoca uma repentina mudança de direção. Uma filha-de-santo explicou essa mudança contínua, apontando para a ligação de Iansã com o elemento ar em contínuo movimento: "o ar está em qualquer lugar e movimenta-se sem uma

direção precisa". Ela, portanto, transmite o frêmito e a curiosidade do ar, que está sempre à

procura de algo ou de alguém. Oiá, nesse sentido, pode parecer quase desesperada, nesse seu andar sem meta e com tanta energia. Oiá é um orixá com características joviais e de guerreiras, que abrem os caminhos, lutando e limpando as energias dos eguns, em qualquer lugar.

O último aspecto relevante é a leveza que ela expressa quando afasta os mortos, transporta algo, ou abre o caminho para os seus devotos. Nessa sua qualidade, ela parece mais dócil e flexível, demonstrando sua generosidade ao transportar as almas ao orum, para uma nova vida.

Os níveis de seu corpo no espaço — que passam do baixo para o alto — expressam, sensualmente, o elemento ar. O corpo inteiro é como que suspenso no ar, a ponto de os pés não estarem postos completamente no chão. Oiá é mais ligada ao externo, à aventura, à ação livre.

Analisando os níveis espaciais, podemos reconstruir toda a história mitológica de Oiá: — quando ela dobra para o chão, é a guerreira que se prepara para lutar ou, então, expressa sua transformação como búfalo. Nessa fase, as lendas contam a sua vida afetiva com Ogum e Oxóssi (a mata);

— quando ela ascende seu nível, isso representa a sua ligação com Xangô, o fogo;

— quando seu nível é alto, representa o ar; e as lendas contam a sua ligação com os espíritos dos mortos, que ela transporta ao orum.

É interessante observar a dinâmica no espaço de Oiá: ela toma consciência dele ao andar em todas as direções, inclusive nas diagonais, que simbolizam uma saída da ordem, preenchendo o espaço com uma dinâmica agressiva. Enquanto Iemanjá tem uma dinâmica mais tranqüila, ela constrói ao seu redor círculos concêntricos que vão sumindo dos seus limites. Esse uso diferente da dinâmica no espaço, provavelmente, origina-se da diferença de cultura dos povos que cultuavam as duas divindades. Segundo Leroi-Gourhan (1977: 130):

"A mitologia dos caçadores organiza-se ao redor de um espaço itinerante, como o caminho dos astros ou dos heróis, enquanto a mitologia dos agricultores sedentários organiza-se ao redor de um espaço radiante, como o paraíso sobre uma montanha, com a árvore da sabedoria ao centro e quatro rios que vão aos limites do mundo".

Oiá é ação pura, constrói seu espaço através da ação direta do corpo no espaço.

Oxum

A mitologia de Oxum (Verger, 1981; Prandi, 2000) é rica em mostrar o quanto esse orixá sabe fazer uso da inteligência. Os contos nos falam de sua famosa beleza e de sua determinação em obter as coisas, seja amor, dinheiro, fama ou beleza. Ela mostra em seu movimento uma suavidade que realmente só pode ser alcançada pela harmonia interior. Seus objetos sagrados são o abebê — um espelho de ouro que compartilha com Iemanjá — e uma espada que só um tipo de Oxum possui, sendo essa, portanto, uma guerreira. Enfeita-se, ainda, com peixes que adornam a sua saia, eles lembram a fertilidade das mulheres e a procriação. Ela é uma das primeiras bruxas, pois pode se transformar em pássaro — ela é a proprietária da cabaça que contém um pássaro, símbolo das primeiras mães antigas, as Iá Mi158 —; mas ela é também um peixe e, por causa disso, pode se jogar na água e desaparecer. Oxum é irreal, é mágica, ela pode sumir e a gente não sabe onde e como reaparecerá.

Em algumas danças ela é acompanhada por Oxóssi, o marido mítico, e Logum Edé, o filho que ela teve com o caçador, ao dançarem juntos o ijexá. Em outubro de 1999, na festa das

aiabás, vi no terreiro de Oxumarê a dança desses três orixás: Oxóssi, Oxum e Logum Edé, o que

demonstra a ligação entre eles. Ela também desce nas festas de Xangô, pois é uma das esposas desse rei.

Podemos sintetizar as danças de Oxum nos seguintes aspectos:

— uma forma circular no começo e, sobretudo, na roda que constrói o espaço sagrado no qual acontecerá a incorporação. Esse movimento circular também é feito com os braços e com a postura do corpo, que é leve e mostra toda a sua coqueteria;

— uma ocupação do espaço durante o transe tranqüila e circular. Ela não se deixa levar para outras partes diferentes de seus círculos na água, aproxima-se das pessoas, mas sempre com leveza, com gentileza, pois ela simboliza a água doce, a água dos rios que desce e leva consigo as coisas do mundo;

— um movimento contínuo, sem paradas, à semelhança da água que desce e tem um andamento constante. Ela é muito paciente, pois um dos elementos da magia é a paciência de saber esperar que o encanto lançado faça seu efeito;

— uma característica de sedução em todas as danças, mas sobretudo na de tomar banho: ela se prepara com movimentos tranqüilos, como se a única coisa importante fosse o de se preparar para o seu papel, o da mulher bonita e que sabe usar esse seu valor.

O ponto fundamental do corpo na dança de Oxum é a bacia, pois todo o movimento do

ijexá provém dessa área, que está ligada aos órgãos da sexualidade e da reprodução. Dessa região

parte um movimento que toma posse do corpo inteiro numa ondulação tranqüila: liga o alto (a cabeça) com o baixo (os pés).

Quanto ao uso do espaço, sobretudo com os movimentos dos braços, ela o faz horizontalmente e com isso demonstra seu lado social. Ela é uma rainha bonita e também a chefe da sociedade secreta das mulheres, portanto, deve saber como se portar no meio das pessoas.

Seu movimento na vertical parece que se abre, mas tudo sempre se volta para ela. Tem uma expansão do busto para a frente que volta a se fechar outra vez sobre si mesma, seguindo a respiração. Na dança de tomar banho, seu corpo se abaixa até o chão, utilizando então toda a sua verticalidade, pois, sendo água, está em cima e embaixo.

Ela anda numa trajetória contínua, sem movimentos bruscos e sem paradas. E mostra todos os encantos de seu corpo e as possibilidades que tem de oferecer dons e ouro. Seu movimento sugere, sobretudo quanto o comparamos ao de Oiá, uma diferente capacidade de utilização do tempo. Oxum vive o tempo como contínuo e, nesse ritmo eterno, vive a sua respiração como se quisesse atrair todo mundo com o seu movimento do ombro. Ela sabe esperar, enquanto Oiá caminha bruscamente, pára, vai e deixa a idéia de ser uma conquistadora forte e feroz.

De acordo com aquilo que dizem no candomblé, ela é a outra metade de Iemanjá. As duas nos mostram o lado feminino: uma, de ouro, mais visível, a outra, de prata, mais escondida, mais sensível. Tanto é assim que, quando é oferecido algo a Iemanjá, também deve ser feito o mesmo para Oxum e vice-versa, "se não a outra fica ciumando!".

Iemanjá

Como dizem lá no Axé, Iemanjá é a mais misteriosa dos orixás: "Ninguém sabe o que ela

tem por baixo!". Sua casa está sempre fechada, se abre apenas no ossé, uma vez por mês, e na

festa dela, pois "ela não gosta de barulho nem de confusão. O interno parece uma gruta do mar,

assim como a outra casa dela no Rio Vermelho também parece uma gruta escondida no fundo do mar!", como me contaram. Ela é a expressão da feminilidade na sua inteireza, é a mãe de muitos

filhos e a esposa, pois ela gosta da ordem e da hierarquia.

Podemos sintetizar algumas características dos movimentos de Iemanjá desse modo: — uma trajetória circular que constrói o espaço sagrado no qual, logo no começo, acontecerá a incorporação. Esse movimento circular é feito também com o corpo inteiro, como se ela mesma originasse essa forma;

— durante a incorporação ela pára e então se move devagar com pequenos movimentos circulares ou como se o corpo virasse uma onda;

— em algumas danças, como o jincá, seu movimento é contínuo como a água que segue o seu curso constantemente. Em outras, no entanto, em seu andar ela pára, retoma força e volta a andar, assim como as ondas quando batem na praia;

— movimentos que descrevem a sua sensibilidade, o seu encanto que é como o da lua cheia, algo de que todos querem se aproximar, mas só poucos conseguem;.

— o uso do espaço é diferente daquele observado para Oiá. Iemanjá, em seu andar, é mais tranqüila do que Oiá e mais pausada do que Oxum. Ela ocupa muito espaço, pois é uma onda do mar. Assim, na primeira de dar rum, ela anda nas laterais, movimentando os braços horizontalmente e empurrando montanhas d'água e seus filhos. Ela dança dois passos para um lado e dois para o outro, mas também se move assimetricamente e, depois de dois passos, ela faz três e pára a fim de retomar a dança.

Quando Iemanjá se locomove como onda, ela ocupa um espaço mais em vertical e também seu movimento é um andar, um chegar para si mesma, é um movimento mais introspectivo, mais ligado a sua interioridade. Ela pára e se prepara para mergulhar no fundo.

Nas danças — com as mãos em forma de concha —, ela utiliza mais o nível inferior do espaço, o que nos remete às profundezas do mar e àquilo que existe lá embaixo. Juntamente com Oxum, ela é uma das grandes mães. Destacamos os níveis baixo e médio, pois ela também representa a fecundidade, a reprodução e, por isso, é mais chegada às partes do corpo situadas na bacia. Por outro lado, ela é muito coração, é caridosa (veja-se a lenda com Omulu).

Contudo, não podemos esquecer que um dos símbolos de Iemanjá é o abebê que, com sua forma redonda, nos lembra a forma da lua cheia, eterno símbolo do feminino. Mas ela também tem um lado mais agressivo, pois carrega uma espada, e o abebê é uma terrível arma de ofensa e defesa que a deusa usa para defender seus filhos.

Os aspectos gerais dos movimentos de Oxum podem ser idênticos aos de Iemanjá, porém me parece que o movimento mais marcante é o horizontal da primeira de dar rum, pois essa coreografia nos fala do lado social e da preocupação de Iemanjá com todos, uma vez que ela é a

Saliento, ainda, que a filha-de-santo chora quando Iemanjá vem; um choro de emoção que demonstra a sensibilidade de Iemanjá.

O seu andar em círculo também sinaliza uma certa conformidade, uma certa ordem, talvez pelo fato de representar a mulher madura, firme, que não necessita mais sair da norma. Iemanjá tem muitas coreografias que demonstram as suas várias facetas, e a cor de prata ajuda a ressaltar a magia e os sonhos que ela leva consigo. Dizem que ela é a senhora dos sonhos.

Ela dança com Oxalá, de quem é esposa, e com seus filhos Oxum, Ogum, Oxóssi e Omulu. Mas, além de uma análise dos passos, que nos falam das histórias míticas, é importante ressaltar o fato de que nas danças de candomblé os fiéis acreditam ser o próprio orixá a se manifestar e, portanto, a amplitude e o fluxo do movimento relatam isto: a transformação interior. No corpo da filha-de-santo não há mais a personalidade dela, sua "presença", mas sim a do seu orixá. Com isso o deus distribui axé à própria filha e à comunidade inteira, contando a sua história mítica. As danças de transe esvaziam o corpo da filha-de-santo para deixar que a forma, a energia do orixá se manifeste e movimente aquela matéria como o orixá o desejar, e, por isso, a qualidade do movimento muda de modo tão evidente.

É interessante notar, ainda, que a relação entre os orixás também é manifestada através dos toques e da energia que é transmitida no movimento. Por exemplo, todos os orixás velhos — como Oxalufã, Iemanjá Sabá, Omulu e Nanã — dançam com um ritmo lento e são curvados para o chão, demonstrando a fadiga de andar, pois são muito velhos. Os orixás jovens (ou de qualidade jovem, como Oxaguiã e Iemanjá Ogunté, Oiá e Ogum) dançam sempre com uma postura mais ereta. Os orixás guerreiros (Ogum, Oiá etc) dançam como se estivessem agredindo o espaço e utilizam as diagonais, enquanto os orixás ligados à maternidade (Oxum e Iemanjá) dançam ocupando o espaço de modo mais redondo, mais tranqüilo e sem o uso de diagonais. Xangô e Oxum, por sua vez, dançam utilizando um espaço mais regular, como que simbolizando a realeza. O mesmo acontece com Oxóssi, o caçador.

Queremos evidenciar com isso o quanto é complexa a compreensão da dança ritual que, aliás, deve ser feita sempre como um todo. Não basta uma simples descrição dos movimentos, pois eles não passam de uma moldura para que a energia do orixá se manifeste, levada pela música dos alabê.

Em última análise, essa dança é algo de fortemente encarnado e vivido. A respiração, o ritmo daquele elemento natural vive no corpo da filha-de-santo. Essa é uma experiência tão forte e enriquecedora que merece, verdadeiramente, grande respeito. Numa das cerimônias do terreiro de Oxumarê, por ocasião da festa de Oxalá em 2 de fevereiro de 2000, isso me pareceu claro como cristal. Atrás do Oxalá ia uma Iemanjá, sua esposa, que dançava do mesmo jeito, devagar, e seguia um Omulu — que, mais tarde, teve que ser retirado, pois não conseguia mais nem se mexer. Atrás deles, enfim, dançavam outros casais: Oxóssi e Oxum, Ogum e Oiá, indo sempre devagar, mas com o corpo em posição mais vertical.

Para finalizarmos, as danças de transe são a própria expressão da fé das filhas e filhos-de- santo que se deixam tomar e ser conduzidos pelas divindades, cada um com o fluxo e a qualidade

do movimento do dono da cabeça ao qual corresponde, a fim de reequilibrar as forças cósmicas para si mesmos e para sua comunidade.