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A aprendizagem no candomblé é sobretudo corporal e se dá por meio de um habitus que é exercitado durante a estadia no terreiro, num nível de consciência ordinária, no caso das abiãs, e ao longo da feitura, no caso das iaôs ou filhas-de-santo, quando elas se encontram em estado de

erê. No roncó as filhas-de-santo aprendem a soltar os ombros e a deixar sair o ilá, conforme me

foi dito por Mãe Beata de Logum Edé. Aprende-se na prática, pois no candomblé não existem aulas ou textos escritos, e sim trabalho. É o corpo que, trabalhando, aprende a sentir e se imbui das novas regras a serem atendidas.

Nos primeiros tempos, a abiã começa a freqüentar o terreiro com assiduidade. Ela aprende a se comportar na presença dos mais velhos, a ter uma postura correta, a saudar os orixás, a fazer pequenos trabalhos. Em geral, aprende a etiqueta do candomblé. Ela começa a ter uma certa familiaridade com as ebômis, e essas lhe narram os mitos do candomblé e as histórias de uma ou outra filha-de-santo, ressaltando ao máximo a magia do candomblé e o desenho do destino de cada um. As velhas traçam histórias que mostram a obrigatoriedade de se entrar para candomblé, como se a vida de muitas pessoas tivesse somente essa finalidade. Usualmente a abiã tem uma ligação forte com sua mãe-de-santo e sempre a procura para orientação, aconselhamento, ou simplesmente para conversar e estar junto dela. Se essa ligação não é assim tão estreita, há sempre por perto uma das velha ebômis que procura ajudar e aconselhar a recém chegada. Comumente, as abiãs colaboram na preparação das festas, enfeitando o barracão, ou ajudando na comida, mas apenas na limpeza das verduras, pois cozinhar é um das obrigações das ebômis.

A cozinha é um dos pontos centrais para as mulheres de um terreiro, pois ali é o seu reino, e são poucos, de fato, os homens que se atrevem a nela entrar. Os homens acabam por se ocupar de trabalhos pesados, mas podem auxiliar na limpeza da comida. A cozinha é um dos lugares mais sagrado do terreiro, pois é onde são preparadas as comidas dos deuses. Todo mundo passou por ali e muitas são as conversas e os casos mágicos ali relatados. É justamente nesse ambiente que começa a aprendizagem de uma futura filha-de-santo. E ali ela é observada em tudo o que faz, ali as velhas procuram entender a sua índole mais profunda e antever os sinais do orixá.

No Axé Opô Afonjá há duas cozinhas. A mais antiga, localizada nos fundos da casa de Oxalá, é bastante ampla e dispõe de dois fogões, vários bancos e um grande pilão. A outra, menor em tamanho, fica na casa de Xangô e usualmente é lá que se prepara o seu amalá às quartas- feiras.

Durante uma festa de Oxóssi, tive a oportunidade de ajudar na limpeza das galinhas, o que foi feito de manhã, depois da matança. Pude observar a postura das mulheres: a maioria vestida de branco ou com uma saia florida, com o torço na cabeça, cada uma sentada em seu próprio banco, com a sua faca e a sua bacia. Era algo muito bonito de se ver, pois as pessoas trabalhavam com grande euforia, cada uma dizendo que tinha "muito que pedir", pois a vida era difícil. As conversas variavam muito, falava-se das últimas abiãs chegadas — se elas tinham ou não o santo; se elas deveriam fazê-lo ou não etc. —, mas foi tudo interrompido com a chegada de uma delas. Algumas sacerdotisas estavam trabalhando fora da cozinha, pois dentro havia outras que

estavam já cozinhando sobre os grande fogões. O calor era muito forte. Ao redor de uma mesa um grupo de mulheres depenava as galinhas, enquanto um outro grupo retirava delas o axé, as partes destinadas ao orixá. Cada grupo ou pessoa em separado depenava, limpava, cortava, mas sobretudo contavam-se histórias e se falava sempre de algum assunto relacionado ao candomblé, comentando-se de que é dever de todos trabalhar nas festas dos orixás.

Ali, na prática, tem início a escola do candomblé. As velhas mostram às jovens como se tratam as galinhas: primeiro são escaldadas em água fervente, depois são depenadas e passadas sobre o fogo para que percam a penugem remanescente. Um fato curioso: uma abiã que estava colocando a sua galinha na água, deixou sem querer sua saia ficar em contato com o fogo. Logo, logo foi avisada por uma das ebômis, que assim disse: "Minha sereia, você quer que a sua cauda

pegue fogo? Não faça assim, mas bote a saia no meio das pernas quando está na frente do fogo!"

Depois, uma das velhas pôs-se junto à recém chegada e, com tranqüilidade, mostrou-lhe como cortar a galinha e tirar seu axé. Ela disse: "Olhe aqui, que hoje sou eu a te mostrar, assim

um outro dia você não precisa pedir a ninguém. E lembre de trazer a sua faca! Agora, faça atenção e nunca pergunte no candomblé, mas observe e depois faça!" A velha estava ensinando a

regra de ouro: a aprendizagem no candomblé se dá na prática, na observação constante e na repetição de gestos, de tarefas, de posturas que se reproduzem desde sempre.

Inesperadamente uma outra abiã quase caiu com o rosto sobre a galinha. Logo aproximou-se uma sacerdotisa dizendo: "Essa também vai para a UTI. Venha comigo, filha. Hoje

é demais para você!", e a levou para dentro da cozinha, enquanto uma outra lhe oferecia um

copo d'água dizendo: "Agora respire, que vai passar!".

Começa assim o treinamento da abiã, na cozinha, em estado de consciência normal. Mais tarde virá o aprendizado no roncó.

Os conselhos simples dados às mais jovens aos poucos vão tornando familiar a estrita etiqueta do terreiro, e elas aprendem a se comportar na frente dos mais velhos ou do orixá, aprendem quem deve receber a comida primeiro, quem são as pessoas mais importantes etc.

As abiãs conversam muito entre si e contam as coisas mais extravagantes. Atraídas pela magia que emana do candomblé e pela doçura das mais velhas e da mãe-de-santo, acompanham, o quanto podem, tudo aquilo que acontece no terreiro. Elas se sentem importantes, pois foram escolhidas, e o fato de se sentirem reconhecidas pelo próprio orixá as deixa ainda mais felizes e cheias de si. Sentem-se gente importante. Elas fazem de tudo para se aproximar da mãe-de-santo e conversar com ela, ter sua atenção.

Começa, assim, uma aprendizagem que poderia ser a de crianças, pois as abiãs são consideradas crianças: elas nada sabem e, por isso, têm o direito de errar. Observam tudo atentamente e procuram a mãe-de-santo a cada minuto para perguntar ou dizer algo, como se tudo dependesse delas.

Nessa primeira etapa iniciática do candomblé, essa forma de ensinar deixa os devotos aprendizes à vontade para que possam se expressar e, por acerto e erro, aprender.

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APÍTULO

7:

M

ÚSICA

,

TRANSE E O REFLEXO DO SAGRADO