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A religião nagô fundamenta-se num complexo sistema que foi reinterpretado em solo brasileiro. Neste item vou me propor a tratar apenas dos elementos mais marcantes que focalizam as idéias a respeito da organização do cosmo, do ser humano e do dinamismo das forças que se entrelaçam no sistema, pois há vários estudos sobre isso (Nina Rodrigues, 1932; Querino, 1938;

Carneiro, 1977, 1981; Bastide, 1961; Lima da Costa, 1977; Braga, 1989, 1992; Elbein dos Santos, 1977; Verger, 1981; Prandi, 1991a, 1991b) e muitos outros que, a partir de várias abordagens, procuraram entender a religião, o ritual e o fenômeno da possessão.

Conforme Adebayo Adesanya (1958: 39), para a civilização africana é importante encontrar uma harmonia “que não seja só uma ligação entre fatos e religião, entre religião e

razão, entre razão e realidade abrangente, mas também um liame entre todas as prescrições”.

Tudo isso pode-se aplicar muito bem ao candomblé que também procura ligar harmoniosamente todos os preceitos e o contexto sócio-cultural.

No pensamento nagô, sob Olodumare59, o deus suprema, há o arcabouço de um conhecimento pelo qual se entende que a mão divina se manifesta a partir dos elementos mais rudimentares, como a pedra, a folha, a natureza bruta, enfim. E o candomblé vai exatamente procurar encontrar e fortalecer a harmonia entre o homem e a natureza, entre o homem e o semelhante e a harmonia do homem consigo mesmo. Por isso, qualquer planta, qualquer pedra têm um sentido e uma ligação entre si.

O universo é sagrado e real ao mesmo tempo, e os fiéis "participam do mundo invisível", conforme Pâques (1991: 33), pois este mundo existe, os fiéis podem senti-lo. O mundo compõe- se de duas partes, o orum, o céu ou o mundo dos orixás, e o aiê, a terra, o mundo dos seres humanos. No começo os dois mundos estavam em contato, mas por causa de uma proibição não respeitada os dois mundos se separaram (Elbein dos Santos, 1977: 55):

"Em uma época antiga, quando o orum60 o “incognoscível”, limitava-se diretamente com o aiyé61, o 'mundo', um ser humano tocou indevidamente o orum com mãos sujas, o que provocou a irritação de Olorum, entidade suprema. Este soprou, interpondo seu òfurufu, hálito divino, que, transformando-se em atmosfera, constituiu o sánmos, ou céu”.

Depois desta violação, o orum separou-se do aiê e a existência se desdobrou; os seres humanos não tiveram mais a possibilidade de ir ao orum e as divindades sofreram de saudade por não poderem mais encontrar os seres humanos. Assim, por causa da saudade dos dois, originou- se o candomblé que em festas periódicas abre a comunicação entre os dois mundos (Prandi, 2000: 526).

O orum é um mundo paralelo ao real, e cada indivíduo, cada animal, cada planta possui um duplo espiritual e abstrato no orum. Em muitas representações encontradas nos templos, o universo é representado por uma cabaça cortada ao meio com suas duas metades unidas: a metade inferior é a Terra, enquanto a superior é o mundo dos espíritos.

Os pesquisadores que estudaram a cosmovisão iorubá encontraram um sistema de classificação do tipo daquele proposto por Durkheim e Mauss (1901, 1902). Bastide (1978) também propôs um tipo de análise fundamentada em referenciais africanos. Sabemos que a

59 Sobre o distante deus supremo dos iorubás, veja-se Idowu (1982) e Verger (1964). 60 O orum seria o duplo do mundo real, o mundo espiritual.

estrutura da cosmovisão (macrocosmo) e a do ser humano (microcosmo) são ainda mais sutis e complexas (Lépine, 1982), pois segundo esta,

"os compartimentos do universo não são apenas justapostos: eles se engendram e se encaixam num processo que vai do general ao particular e vice-versa".

Quem põe em contato e dinamiza a comunicação entre todos os compartimentos é Exu, a divindade mensageira.

Existe uma divindade suprema, o princípio único, chamada Olorum ou Olodumare que não atua diretamente na Terra, onde é substituído pelos orixás. Os orixás, segundo Prandi (2000: 20),

"(…) são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana."

Os orixás são forças viventes que representam estes aspectos: 1) um aspecto do cosmo;

2) um aspecto social e 3) um aspecto individual.

Segundo Verger, o orixá é (1981: 19):

"força pura, axé imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido, o possuído pelo orixá, um de seus descendentes, é chamado seu elegum, aquele que tem o privilegio de ser " montado", gùn, por ele. Torna- se o veículo que permite ao orixá voltar à terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram".

Cada pessoa é filha de um orixá do qual herdou características físicas, psíquicas, energéticas. Tais legações são impressas no corpo todo, mas só com a iniciação serão fixadas. Existe então uma lógica harmônica que encaixa as pessoas e os seus destinos segundo uma dinâmica que comporta as forças vivas da natureza em movimento.

Podemos concluir que os fundamentos do candomblé visam a continuidade da vida, operando com a energia sagrada à qual as pessoas pertencem e dinamizando suas forças, pois a vida é um equilíbrio entre o movimento e o repouso, entre a ação e o recolhimento. A continuidade e o equilíbrio adquire-se também através da reposição de uma força mágico-sagrada que flui em todas as coisas, plantas, animais, seres humanos, chamada axé. No candomblé são valorizadas as pessoa e objetos que detém muito dessa força. O axé pode aumentar ou diminuir, mas deve sempre ser distribuído entre todos os fiéis da comunidade segundo o grau hierárquico de cada um. Os ritos servem para adquirir, manter, transpor e acrescentar o axé. A mãe-de-santo numa comunidade é quem tem mais força. E é ela que coloca essa força nos seus filhos nos devidos rituais. São princípios básicos na crença do candomblé.

C

APÍTULO

3:

A

EXPERIÊNCIA DE UMA PESQUISADORA NUM TERREIRO DE CANDOMBLÉ

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PROCEDIMENTOS DA PESQUISA