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Toda a roça143 do candomblé é considerada lugar sagrado. No momento em que o fiel entra no terreiro, entra num lugar mágico-sagrado. Logo na entrada há o assentamento de um tipo especial de Exu que defende a comunidade e todos os seus filhos. O mundo de fora é perigoso e cheio de dificuldades. Dentro, existem várias provas a serem superadas, mas as filhas-de-santo encontram aliados na luta pela sobrevivência e no caminho místico-religioso. No terreiro há vários lugares sagrados, mais ou menos perigosos segundo a energia que transmitem. Por isso nem todos podem entrar nas casas dos orixás ou circular de noite nos lugares dedicados aos espíritos dos mortos. Tanto a rua, o mundo de fora da roça, quanto o próprio terreiro poderiam simbolizar uma peregrinação, um caminho iniciático, lugar de passagem para alcançar o

barracão, o lugar onde as divindades se manifestam, nas cerimônias públicas.

O espaço onde acontecem as festas públicas é chamado barracão. É um salão muito amplo, onde, logo na entrada, há uma arquibancada. Do lado direito, sentam-se as mulheres e, do lado esquerdo, os homens. Na frente da entrada, é colocado o trono da Ialorixá, cujo lado direito é reservado às filhas-de-santo e as ebômis com cargo, enquanto o lado esquerdo é reservado aos

obás144 de Xangô, os ministros deste orixá. No lado direito, além das mulheres, está colocada a orquestra com os três atabaques. Na sua frente ficam as famílias dos ogãs, hierarquia leiga do candomblé, ou algum convidado particular.

O fiel dança, segundo Wheatley (1983), ao redor do centro sagrado, um ponto da terra ligado ao céu por um invisível raio energético, o axis mundi. Nesse ponto estão enterrados os

fundamentos145 da casa, que também são colocados no teto, num lugar diametralmente oposto. O centro do barracão é fundamental nas religiões africanas, porque é o lugar onde a árvore mágica liga o céu à terra, conforme Davidson (1972) e Deren (1997).

Em geral, os lugares sagrados apresentam as mesmas analogias: em cima do ponto sagrado, o céu, o teto redondo e a cúpula tomam a forma da terra embaixo (que é símbolo do feminino e do espaço que contém), uma árvore sagrada na África, um obelisco ou um minarete nos países árabes (símbolos do masculino, do céu e do tempo) ligam a abóbada ao chão. Mas nem sempre essa árvore existe visivelmente. No Axé Opô Afonjá146, por exemplo, não sabemos por que motivo não há um poste central. Para Eliade (1969:26):

143O termo roça está próximo do termo aldeia. É um lugar onde se cultivam as plantas e se criam os animais.

144 De acordo com Vivaldo da Costa Lima: "(…) os obás de Xangô, são os Ministros de Xangô, o grupo foi

instituído formalmente no candomblé de São Gonçalo, no ano 1937, quando aquele terreiro estava sob a direção de sua primeira mãe-de-santo Eugênia Ana dos Santos. Os obás, são doze, dividem-se em duas falanges, seis do lado direito, e seis do lado esquerdo".

145 Cada terreiro tem seu próprio fundamento.

146 Podemos observar, em alguns terreiros de Salvador, como o do jeje Bogum e o terreiro do Cobre, na Federação,

ou o mais antigo, a Casa Branca do Engenho Velho, a simbolização da árvore sagrada na forma de um poste central que liga simbolicamente o céu à terra. Em outros terreiros, como no Gantois, a coluna sagrada não existe, mas permanece a simbologia do centro do barracão.

"(…) o centro da realidade absoluta, assim como todos os outros símbolos da realidade absoluta (Árvore da Vida e da Imortalidade, Fonte da Juventude etc.) encontra-se num centro. O caminho que conduz ao centro é um "caminho difícil", e isso verifica-se em todos os níveis do real: circunvoluções complicadas de um templo; peregrinações aos lugares santos (Meca, Jerusalém, etc.); peregrinações aventurosas das expedições do Velo de Ouro, da Erva da Vida; todas as dificuldades dos que procuram o caminho para o "si", para o "centro" do seu ser etc."

A Criação, em toda a sua extensão, se efetuou a partir de um "centro" e por isso tudo aquilo que é fundado está no centro do mundo. A partir do centro passam dois eixos — um vertical e o outro horizontal — tempo e espaço. Segundo Wheatley existem alguns paradigmas astrobiológicos que formam a estruturação do espaço, ou seja, existe um paralelismo entre o espaço cósmico e o do ser humano, entre macrocosmo e microcosmo. O mundo dos seres humanos é construído à imagem do dos deuses e a harmonia é garantida por meio de rituais. Assim, o espaço na terra deve ser sacralizado através dos rituais.

O barracão é o lugar externo do culto, é a construção arquitetônica que foi sacralizada e que, pelo fato de deter cerimônias periódicas, torna-se um espaço sagrado. O corpo humano é o lugar interno do culto, receptáculo da divindade e, por si mesmo, sagrado. Esses dois lugares são o teatro da transformação ritual, neles o fiel deixa o mundo cotidiano e chega ao encontro tão assustador, mas tão desejado, com o divino. É somente no espaço sagrado que ele pode voltar à totalidade — sendo sustentado pelo seu grupo e pela experiência da mãe-de-santo e das ebômis — e se comunicar com a divindade.

O espaço do barracão, durante o ritual, é preenchido pelos corpos das sacerdotisas, que logo se transformam em orixás. Dessa maneira, o espaço está preenchido pelos níveis dos corpos em movimento e pelas direções, que, por sua vez, são os caminhos do corpo no espaço que simbolicamente expressam as várias possibilidades de caminhar em direção ao sagrado. A divindade pode utilizar uma estrada curvilínea mais moderada (como o andar de Iemanjá), ou um caminho que prevê várias mudanças de direção (como o de Oiá ou de Ogum).

Mas há também um outro espaço, ainda mais precioso, o do interior do corpo, no qual acontece a transformação principal: a de deixar entrar o orixá. Pelo fato do corpo ser a representação do macrocosmo, a coluna vertebral simboliza a árvore sagrada, pois liga os pés ao

ori, os ancestrais ao orixá, enquanto que os braços abertos mostram a ligação com o social. No

momento das danças de transe, o espaço é preenchido mais "densamente" pela a energia dos orixás que o estão utilizando e ocupando em todos os níveis: alto, médio e baixo.

8.3.1. As Formas sagradas

As danças são executadas em coreografias no xirê ou durante a incorporação. Elas são muito diversificadas, pois há uma variedade enorme de coreografias para cada orixá, embora algumas formas se repitam para todas as divindades. Antes de descrever a dança das aiabás, chamo a atenção para os sentidos simbólicos dos desenhos de algumas coreografias pertencentes ao xirê, formas observáveis também em algumas danças dos orixás.

A primeira de todas é a forma da roda, a antiga roda sagrada, que pode ser encontrada em várias culturas do mundo. De fato, em muitas danças extáticas — entre os indígenas norte e sul- americanos, na bacia do Mediterrâneo, nas danças asiáticas etc. —, os dançarinos rodam em torno de um centro que representa o princípio, o coração do mundo (Guénon, 1992). Este ponto representa o continuum da existência que tem a sua ordem em si mesmo. Sem forma, ele não pode ser observado diretamente nem a razão pode conhecê-lo; seu dinamismo, no entanto, se manifesta em imagens. A maneira para colhê-lo passa através dos estágios da experiência estética e da mística. (Marchianó, 1977). Podemos entender isso também no candomblé, pois as sacerdotisas rodam ao redor de um centro no qual é colocado o fundamento da casa, que é o começo, o princípio das forças daquela casa.

A forma do círculo tem uma grande importância, pois segundo Neumann (1981: 214),

"(…) a Grande Mãe é simbolizada como um grande círculo que contém a totalidade do universo, expressa um ideal de perfeição, de imutabilidade, mas também de transformação, porque em si contém os elementos masculinos e femininos".

É interessante observar que as danças extáticas rodam em sentido anti-horário, mas é difícil dar uma interpretação sobre esse fato, me foi dito apenas: "que é bom para o espírito". Confirmamos, ainda, que esse movimento, ao contrário, é feito no mundo inteiro, basta lembrarmos das danças dos súfi, entre muitas outras, pelo fato de ser um movimento centrifugo dizem que é um movimento que abre para uma outra dimensão, aquela sagrada.

Outro aspecto a ser destacado é que essas danças começam em um grande e lento círculo que vai diminuindo ao longo do ritual com rodopios, feitos durante as incorporações. Uma outra forma, encontrada em outras coreografias, é a da espiral que se mostra seja no movimento da incorporação, seja na bela dança de Exu147. Assim como o círculo é um símbolo antiqüíssimo — encontrado em quase todas as culturas e também na natureza, incluindo-se a molécula do DNA —, também a espiral o é e aparece nas rotações que as filhas-de-santo fazem sobre si mesmas, quando incorporam ao longo da "performance".

A espiral é símbolo da comunicação (Santos:1977; Pelosini:1994) e desse modo, quando o orixá possui o corpo da filha-de-santo, realiza-se uma comunicação entre o homem e a divindade. Enquanto o corpo material gira sobre si mesmo, a energia do orixá penetra, girando do outro lado e entra no corpo, formando uma dupla espiral, como me foi explicado. Não é por acaso que Exu, a divindade da comunicação, rodopia desse modo, conforme as danças quando se transforma, porque ele é a própria "comunicação"148. A espiral expressa o movimento circular que, ao sair do ponto de origem, movimenta-se ao infinito, organizando o caos, como dizem os dervixes. Ela expressa a evolução a partir de um centro, simboliza a vida, porque indica o

147 É muito raro ver pessoas incorporadas de Exu na Bahia, pois se alguém tem esse orixá procura-se colocar Ogum

na frente, como nos foi esclarecido. Mas no Axé Opô Aganju, o pai-de-santo fez um moço de Exu. Suas danças são belíssimas sempre na forma de espiral, se abrindo de um lado e do outro.

148 Comunicação neste caso não significa somente o ato de comunicar, mas também o ato de transportar, porque Exu

movimento numa unidade de ordem ou, ao inverso, a permanência do ser na mobilidade. Durand (1972) sugere que simboliza a permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida. Segundo Pelosini (1994:181):

"(…) a função simbólica das rotações helicoidais seria a de aproximar, por etapas, o homem ao infinito e juntar a terra ao céu" . Essas inter-relações, entre o corpo humano (microcosmo) e o universo (macrocosmo), entre o infinitamente pequeno (microcosmo) e o espaço interestelar infinitamente grande (macrocosmo), já eram, em muitos casos, conhecidas ou percebidas por civilizações do passado, que as tinham codificadas em mitos e símbolos de espiral".

A espiral poderia simbolizar, ainda, a procura do próprio espírito ao longo do difícil caminho espiritual. Partindo de um ponto firme, alcança, muitas voltas depois, o mundo do sagrado. A mesma forma encontra-se na dupla hélice do DNA, que é responsável não só pela programação da atividade celular, mas também pela hereditariedade das características genéticas e da própria evolução dos viventes: é a verdadeira quintessência da vida, é o eterno que se transmite sempre. Essa molécula é o "mensageiro" da hereditariedade biológica e das características hereditárias, do mesmo modo que Exu é o mensageiro entre os homens e as divindades. Não é ao acaso que no candomblé a espiral encontra-se no ocóto, associado a Exu, orixá que expressa a dinâmica da vida, o movimento da alma na criação e na expansão do mundo. Segundo Santos (1977: 133),

"o ocóto é uma espécie de caracol e aparece nos motivos das esculturas e como emblema entre os que fazem parte do culto de Exu. Ele consiste numa concha cônica cuja base é aberta, utilizada como um pião. O ocóto representa a história ossificada do desenvolvimento do caracol e reflete a regra, segundo a qual, se deu o processo de crescimento espiritual; um crescimento constante e proporcional, uma continuidade evolutiva de ritmo regular. O ocóto simboliza um processo de crescimento. É o pião que, apoiado na ponta do cone, com um só pé, um único ponto de apoio, rola, "espiraladamente", abre-se a cada revolução mais e mais, até converter-se numa circunferência aberta para o infinito".

Exu é o princípio dinâmico da evolução, sendo um deus fálico como cultor da vida e o mensageiro entre o homem e a divindade, sem ele, nada pode ser cumprido.