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Oluô Agenor Miranda Rocha

Nas sociedades de cultura oral, a aprendizagem acontece de maneira diversa das sociedades ocidentais, pois nas primeiras se acredita que ela se dê por meio da atenção e da concentração, de modo que somente mais tarde é que o aprendiz interiorizará as noções envolvidas. A memória é um bem muito útil e se usa da para que o ato, a palavra, o canto seja internalizado inconscientemente. Acredita-se que essa maneira de aprender opera uma transformação interna que acalma as ondas da mente e que contribui para o desenvolvimento da sensibilidade e da receptividade como conhecimento.

Então a escuta atenta e silenciosa acompanhada de virtudes como a paciência, a humildade e o respeito para com os mais velhos que são os detentores do saber, são qualidades extremamente apreciadas. A abiã, a filha-de-santo recém iniciada, deve escutar quase intuitivamente as palavras das velhas a fim de conhecer as coisas e mais tarde saber reproduzi- las.

Conforme Cossard-Binon (1981: 41),

"(…) o ensino nunca se faz de modo sistemático. 'Isto vem com o tempo…', dizem as mais antigas. Desta forma, através de um hábito lentamente adquirido, o saber da yawo incrusta-se no mais profundo de seu ser."

A escuta pura, livre de outros pensamentos, portanto, permite a intelecção das palavras, enquanto que a repetição aquieta a mente e produz um relaxamento que leva as fiéis à abertura das percepção dos sentidos. Por exemplo quando se come a comida de um orixá, as velhas

ebômis sugerem, várias vezes, que se faça isso em silêncio e com calma, no intuito de saborear o

prato e sentir as emoções que isso nos dá; e mesmo na preparação das festas é aconselhado manter uma postura tranqüila.

No candomblé, como na África, a ligação entre poder e palavra foi bastante estudada (Calame-Griaule, 1982; Santos, 1977). O saber, e por conseguinte o poder, está subordinado aos atos de escutar e ficar em silêncio.

Típica é a postura corporal das abiãs e das filhas-de-santo perante a mãe-de-santo e

ebômis. Elas mantém uma postura quase dobrada, com a cabeça para baixo, nunca olham nos

olhos dos mais velhos (Cossard-Binon, 1981). As ebômis podem autorizar a nova iaô a se levantar, caso esta demonstre paciência e humildade. Quando têm que entregar algo, as iniciadas sempre o fazem com as duas mãos, para simbolizar um equilíbrio das partes do corpo, reflexo de um equilíbrio interior. Podemos falar também em dois tipos de aprendizagem: um que se dá num estado de consciência normal — ao se prepararem as festas, por exemplo —, outro que se verifica estando as iaôs num estado de leve transe — no roncó, quando aprendem as danças, as rezas e a postura dos orixás, em estado de erê, conforme relata Verger (1957: 91).

"É neste estado, em um espírito livre de toda lembrança anterior, que serão inculcados os ritmos particulares dos orixás, seus cantos, suas danças e todo o comportamento dos deuses."

5.3.1. A aprendizagem dos papéis

Conforme Prandi (1991a),

"O primeiro papel a ser interiorizado é o do erê, depois o papel do orixá. Quero, entretanto, chamar a atenção para o fato de que esses papéis são papéis vividos religiosamente e, portanto, desempenhados e sentidos a partir de um código de comportamento que é código religioso. (…) na sociedade, o comportamento vem junto com o código; às vezes o comportamento se mantém quando o código já foi esquecido e o código pode sobreviver ao comportamento — assim, um papel pode ou não estar provido de sentido. Nas conversões religiosas, o novo comportamento passa a ser vivido junto com a crença; ação e código são uma coisa só. Ao mesmo tempo que o indivíduo age, interioriza-se o sentido da ação, de cada gesto."

A inicianda, ao desempenhar o papel de erê — intermediário entre seu eu profano e o orixá sagrado — "internaliza o conjunto de regras íntimas e públicas que regem este

comportamento e dão a ele sentido próprio" (Prandi, 1991a). A mesma coisa se dá quando a

filha-de-santo deve internalizar o papel do orixá, do segundo orixá e, depois, em algum casos, o de seu caboclo111. A inicianda, então, desenvolve uma multiplicidade de eus sagrados que atuam nos rituais, além do seu eu social, que é a expressão das regras sociais internalizadas por ela.

Dessa maneira, e ainda conforme Prandi (1991a),

"O eu profano do indivíduo é o seu eu social. É o conjunto de papeis através dos quais ele se expressa publicamente e intimamente. Expressar-se significa mostrar-se através de posturas, gestos, ações, linguagem, símbolos, emoções e enunciados."

Segundo Prandi, as religiões de transe buscam integrar as dimensões íntimas e públicas do eu social com aquelas que estão circunscritas aos papéis dos eus sagrados que parecem estar separados do eu social da pessoa, mas que na verdade estão interligadas. Eus sagrados são eus profundos, escondidos, que a iniciação revela e integra no todo da pessoa. A iniciação expande e multiplica as possibilidades de expressão. Assim a iniciada tem uma experiência enriquecedora no candomblé, pois ela pode manifestar uma multiplicação de eus sagrados que antes estavam segregados dentro dela mesma. Essa possibilidade que o candomblé oferece de se experimentar a complexidade e multiplicidade da vida interior é reparadora e abre um grande espaço de liberdade interior, que aumenta quando os fragmentos são integrados. As emoções ligadas a cada parte espiritual são profundas e podem ser representadas e exibidas num ambiente propício e acolhedor, o do rito do transe, o que abre uma grande possibilidade ao ser humano para integrar a sua multiplicidade.

111 Em alguns antigos terreiros de nação queto o culto é exclusivamente dirigido aos orixás, não se cultuando

caboclos e outras entidades de origem brasileira. Mas na maioria dos terreiros, de forma mais ou menos reservada, cultua-se o caboclo, para o qual a iniciação consiste numa cerimônia simples de "chamada".

C

APÍTULO

6:

A

EXPERIÊNCIA DO TRANSE E O CORPO MÍSTICO