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Introduzindo o problema, descrevendo casos

No Axé mora um grande número de mulheres sozinhas. Algumas vivem na casa de Oxalá, outras moram com as respectivas famílias em casinhas, construídas desde muito tempo e outras chegam só no período das festas. As que moram na casa de Oxalá são as que cuidam mais das obrigações e que se aprimoram ao longo das feituras. Já as que moram com as famílias, normalmente têm uma vida particular, paralela àquela do candomblé. A seguir relatarei algumas histórias de vida e entrevistas feitas com algumas mulheres do candomblé.

Mãe Stella de Oxóssi

Mãe Stella é uma mulher anciã de classe média. Formou-se em enfermagem e trabalhou vários anos. Não têm filhos carnais, mas muitos espirituais. Mora no terreiro, numa casa particular, em companhia de uma ebômi e circundada pelo afeto de seus filhos-de-santo e familiares. É certamente a mãe-de-santo mais conhecida no Brasil e também no exterior. Suas posições políticas e religiosas são apreciadas no mundo ligado às religiões africanas da diáspora e aos problemas ecológicos, tendo se tornado, por isso, uma importante personagem política.

Lembro de um depoimento feito em 2000 num encontro no Parque da Cidade, em Salvador, junto com outros grupos sobre a questão do rio São Francisco, no qual ela falou com muita simplicidade sobre o problema e mostrou o mundo dos moradores e dos trabalhadores

daquele rio como um todo. Conseguiu passar a idéia de um mundo de pessoas, animais e plantas que vivem ao longo de suas margens, fazendo quase uma cosmovisão da situação. Conseguiu organizar os atores e o rio numa ordem natural, com muita sabedoria e simplicidade, o que deixou as pessoas refletirem sobre o assunto. Ela é constantemente convidada para seminários, congressos e encontros afins para falar de religião ou sobre as relações raciais.

Seu dia-a-dia é muito fatigante. Os telefonemas dos fregueses e amigos começam de manhã cedo: lá pelas 8 horas as pessoas chamam e vai assim até umas 9.30, quando ela sai, seguida pelo seu fiel cachorro, até a casa de Xangô, onde ela olha os búzios e recebe as pessoas. Dependendo dos clientes, ela fica ali até as 13 horas ou mais, quando volta para casa, e recomeçam os telefonemas. De tarde, tira um descanso para reiniciar lá pelas 16 horas ou 17 horas.

Ela também é uma pessoa muito organizada e tenta encaixar todo mundo em sua agenda. Vi muitas vezes Mãe Stella preocupada por não poder ajudar alguma pessoa. Trata bem tanto as pessoas importantes quanto as mais comuns e se explica sempre de um jeito simples. Suas palavras passam sempre mensagens de procura de um equilíbrio interior pessoal para as pessoas se encontrarem.

Susanna: "Mãe Stella, como a senhora faz para receber tanta gente, todos os dias? "

Mãe Stella: "Isso é muito cansativo, mas as pessoas precisam. O mundo é difícil e as pessoas são despreparadas para a vida!"

S: "A senhora acha que é o mundo difícil ou difíceis são as pessoas?" (risadas).

M: "Os dois, mas até que uma pessoa não se acha, não entende quem ela é, e é difícil enfrentar a

vida. A gente tem que procurar um equilíbrio. Orixá é equilíbrio e quando a gente o consegue tem que trabalhar para mantê-lo".

S: "Parece que este mundo está traumatizando sempre mais as pessoas, não é?"

M: "As pessoas são divididas entre muitas coisas; tudo é sempre mais corrido; é difícil se

manter em pé. Mas a gente tem que dar um jeito de se encontrar e de fazer as próprias obrigações de coração leve. Não adianta fazer trabalhos sem se concentrar, a força não vem!. As pessoas precisam entender que têm que encontrar a força dentro de si mesmas e continuar. Às vezes a gente gostaria de ajudar mais, dizer uma palavra, mas não pode; cada um tem seu caminho e seu destino. Mas a vida continua. Se a gente tem uma relação boa com o orixá, a gente enfrenta; é questão de fé também!".

S: "Mãe Stella, parece que as pessoas depois da iniciação mudam de expressão, mudam a forma

do corpo…"

M: "Eh! A iniciação conserta as pessoas! Cada um com seu caminho; então, se uma pessoa

segue em frente com as obrigações, é claro que muda interna e externamente. Os seres humanos são um todo."

Tivemos que parar aqui a entrevista, pois procuravam-na: tinha uma pessoa precisando de sua ajuda.

Mãe Amália

É uma senhora negra, de classe média-baixa, gordinha e sempre de bom humor, originária da Liberdade166. Trabalhava como cozinheira. Casou-se quando tinha 20 anos e teve cinco filhos, entre os quais uma mulher. Os filhos e os netos vivem com ela, de modo que em sua casa moram uns dez adultos, mais os seis netos. Além da família restrita, moram também várias filhas-de- santo em períodos mais ou menos longos. Em seu terreiro, há um grande número de moças jovens iniciadas, cerca de quinze, que vivem constantemente no terreiro e que são orientadas pela mãe-de-santo. Mãe Amália foi iniciada há 23 anos. Ela é filha de Oiá, e agora tem 36 anos de feita. Tornou-se mãe-de-santo, mas não queria, pois isso comporta muita responsabilidade.

Seu terreiro fica na mesma área onde mora: perto da Av. Vasco da Gama, em Salvador. Trata-se de uma casa particular de três andares, com um quintal na frente e um outro atrás. Ali fica o barracão e, ao seu redor, as casas dos orixás, dos eguns e mais à frente, a de Exu.

Trabalha em casa nos afazeres domésticos e tem uma intensa atividade como mãe-de- santo do bairro. Sua vida se divide entre as obrigações religiosas e familiares. O limite entre a vida privada e os deveres religiosos é muito sutil, pois as filhas-de-santo vivem com ela.

A vida de Mãe Amália começa de manhã cedo: quando não tem obrigações, ela se levanta lá pelas 6.00h e inicia o seu dia ou lavando roupa ou preparando a comida para o almoço. Logo os outros componentes da família acordam e o dia começa. Já de manhã chegam os fregueses ou alguém do bairro passa simplesmente para dar um alô. Mãe Amália é a referência do bairro ou, pelo menos, de muitas pessoas da área. Tornou-se a conselheira de todo mundo e o seu jeito maternal e acolhedor a revela como uma pessoa cheia de sabedoria e humanidade.

Tem sempre alguém que chega para bater um papo ou para que essa mãe-de-santo olhe os búzios. As pessoas esperam para serem atendidas, acomodadas no pequeno quintal, embaixo de um pé de iroco muito grande e frondoso. Chegam e se sentam. O tempo, nos terreiros, não é o mesmo que o da sociedade de fora, ali as coisas acontecem segundo uma outra concepção do tempo167. Portanto, um freguês pode esperar desde 30 minutos até duas horas ou mais. Enquanto ficam no quintal batendo papo com alguém do terreiro, a mãe-de-santo aproveita para acabar com outros afazeres: a preparação de algum ritual para alguém ou algo em casa etc. Como pude notar, as tarefas privadas e religiosas se entrelaçam em continuação.

Lembro de uma vez quando chegou uma mulher que tinha sido espancada pelo marido e fugido de casa. Mãe Amália mandou que alguém tomasse conta da mulher. Ela tomou um banho de folhas para se acalmar e depois teve uma longa conversa com a mãe-de-santo.

A mãe-de-santo passou-lhe conselhos e a sua mesma experiência com grande dignidade e, apesar da mãe-de-santo já ter-lhe falado para abandonar o marido e para se iniciar, não tomou nenhuma postura de acusação por a mulher não ter cumprido sua obrigação. Mãe Amália

166 A Liberdade é um dos bairro populares de Salvador onde se localiza a famoso bloco Ilê Aiyê. 167 Sobre o conceito do tempo no candomblé, veja-se Prandi (2001a).

demonstrou uma grande compreensão e, com simplicidade, contou uma lenda na qual encaixou a vida daquela mulher. Ela, junto com seus dois filhos, passou a viver no terreiro por um bom tempo, uns oito ou dez meses, até encontrar um canto para si.

Essa senhora manteve várias conversas com a mãe-de-santo que procurou realmente ajudar-lhe, inclusive economicamente e em sua iniciação, que foi organizada dois meses depois daquele acontecimento.

Depois de resolver casos urgentes como este que acabo de contar, presenciei um outro, o de um homem "irradiado" de Exu que foi acalmado só depois de duas horas de rezas e conversas com a divindade. Este fato aconteceu numa tarde de domingo: muitas pessoas estavam presentes no terreiro, estavam batendo papo quando chegou um rapaz bêbado e com o rosto quase deformado, acompanhado por dois homens. A mãe-de-santo rapidamente pôs todo mundo dentro de casa e ficou de fora, em companhia do rapaz, com os ogãs e algumas das sacerdotisas mais velhas. Somente depois de duas horas foi que ele se acalmou e, então, a gente pôde sair.

Mas, além desses casos mais pesados, a mãe-de-santo cuida de todo mundo: os filhos carnais, os espirituais e de quem a procura. Toma a sua agenda e organiza os rituais para outros filhos-de-santo ou fregueses novos. De modo que, a cada semana, ela tem pelo menos uns dez rituais de limpeza para pessoas novas.

Usualmente, de manhã arruma a casa e organiza o seu dia inteiro. Sai para a feira quando já é de tarde. Geralmente, Mãe Amália vai para São Joaquim, perto do porto dos ferry-boats, pois ela diz que ali as verduras são mais frescas e as galinhas, mais baratas. Mas ela freqüenta também a feira de Sete Portas, perto da Cidade Baixa, onde conhece várias pessoas e gosta de ir para conversar e se distrair um pouco, lembrando dos antigos moradores da Liberdade. Volta já de tardinha, por volta das 5.00h ou 6.00h horas, e novamente encontra alguém do bairro ou de outro lugar que chegou para conversar com ela ou receber um conselho. Às vezes até os seus próprios filhos ficam esperando para falar com a própria mãe.

Mesmo nos dias mais tranqüilos pode acontecer algo como, por exemplo, uma tarde em que chegou uma moça em companhia de sua filhinha de cinco anos para se preparar para a obrigação do dia seguinte. De repente, ouviu-se o ilá da sua Iemanjá que parecia uma melodia. Todo mundo parou e duas equedes se foram para tomar conta da moça, mas a filha já tinha aprendido o que fazer. A pequena já tinha descalçado os sapatos da mãe, assim como tirado seus óculos, e estava indo ao barracão para deixar ali esses objetos, enquanto o orixá andava pelo quintal.

Nos dias de festas ou de obrigações grandes há sempre muita euforia e muito trabalho a se fazer. Todas as atividades particulares ficam para um segundo plano e a mãe-de-santo arca com toda a responsabilidade pela festa. Tudo depende dela, desde as coisas mais importantes até os pequenos detalhes. As filhas-de-santo e os ogãs pedem tudo para ela, a fim de terem certeza de sua aprovação e da sua satisfação. São coisas simples, como os enfeites do barracão que as pessoas já fazem há anos, mas tudo deve ser revisado pela mãe-de-santo e feito como a tradição manda. E é aí que cada filho e filha-de-santo tem a sua responsabilidade e o seu "o que fazer". Mãe Amália: "E aí, querem saber o quê?"

Susanna: "Como é que a senhora consegue passar essa calma para as pessoas, até aos mais

agitados?"

M: "A gente dá um jeito e tem cada cabeça, difícil para consertar!"

S: "Mas, por exemplo, aquele dia que chegou aqui aquele bêbado, como consegui acalmá-lo?" M: "Aquele foi um negócio sério! Ele não queria, porque não queria de jeito nenhum se acalmar!

Mas a gente fez um trabalho e depois ele veio e indo conversando, ele se iniciou e agora ele trabalha e voltou para casa."

S: "A gente viu chegar aqui um bocado de pessoas cheias de problemas e a senhora consegue

conversar com todos, dar uma força para todos! "

M: "Você viu como é, não é? Bem, sabe… a gente aqui já viu de tudo, então é muita experiência

que a gente tem! E eu também já passei cada coisa! Mas as pessoas têm que se apegar ao próprio orixá. É ele quem nos ajuda nas situações mais difíceis. É ele quem nos avisa, alerta e ampara; então, é ele o nosso bem mais precioso. Tento passar isso aos meus filhos. As pessoas acham que candomblé é aquele negócio mágico. Candomblé é religião e como tal precisa de esforço e de muito amor; sem amor a pessoa não é nada. Aqui a gente aprende a respeitar os outros. Quando ouço algo desagradável sobre alguém, falo logo: ninguém pode julgar ninguém; somos todos seres humanos!"

Ebômi Raiulda, filha de Xangô

É uma mulher negra, de 45 anos, redondinha e muito simpática. É formada em artes, mas já aposentada. Ela mora com a mãe e não tem família própria. Tem muitos amigos e gosta da farra. Ela é reconhecida por sua forte intuição e pelo conhecimento de rituais e trabalhos, sobretudo, os de limpeza. Ela anda bastante nas festas até de outro terreiros e atualmente trabalha muito pelo Axé, pois recebeu um cargo importante.

Susanna: "Podemos falar um pouco das mulheres e do que significa ter sido iniciada? "

Ebômi Raiulda: "Olhe, a primeira coisa para uma mulher é ter um trabalho, ser independente do

marido, que eles não prestam, e ter filhos! Mas primeiro, ser independente! "

S: "Por que? Você acha que uma mulher não pode ficar só em casa, tomando conta da família?" E: "Olhe, eu acho que sim, mas já vi tantas coisas, e os homens não prestam; então, por que a

gente tem que ficar brigando com um homem que talvez não dá nem comida? Acho melhor ter um trabalho e depois ir à luta para ter o nosso prejuízo!"

S: "Você não tem confiança nos homens?"

E: "Eu? De jeito nenhum! Já vi tantas coisas e não só entre os pobres; eles só pensam em curtir,

não prestam! Quanto choro eu já ouvi e quanto eu já chorei, para quem? Para um mentiroso?"

E: "Claro, não tenho dúvidas; a gente sabe ficar mais com a gente. Aprendemos a ter mais

dignidade. É difícil, tenho que dizer, mas é muito bom, é muito bom mesmo! "

S: "A senhora percebe a ajuda do orixá todos os dias?"

E: "Eles estão aqui conosco todos os dias. Até mesmo agora estamos rodeados. Quando preciso

de algo eu me concentro sobre algo do meu orixá, aí vem a resposta! Eles nos ajudam demais, demais!"

Ebômi Elvira

Essa é uma senhora negra, de uma das famílias mais importantes da Bahia, quanto à ancestralidade. Ela é filha de Oxalá, mas tem uma forte ligação com Oxum. Foi feita há 54 anos. Era enfermeira. Trabalhou por dez anos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado uma boa posição financeira. Mas, ao ficar sozinha, veio para o Axé Opô Afonjá e dali não saiu mais. Ela tomava conta de uma das velhas ebômis de Oxalá que morreu há um ano atrás. É uma pessoa muito especial, inteligente e esperta, que teve contato com muitas personalidades e isso se deu porque ela sabe conversar com todo mundo.

Ebômi Elvira aconselha quem a procura e, apesar do seu jeito, no começo tímido, ela logo

se abre e ajuda sempre com uma palavra ou contando uma lenda.

Susanna: "O que a senhora acha da questão da mulher no candomblé? "

Ebômi Elvira: "Eu acho que o candomblé deu uma grande oportunidade para as mulheres. Você

conhece a história das escravas, então? Elas mantiveram a sua força através do candomblé, se apegando ao orixá, amando-o, porque sem amor, não há nada! ".

S: "Mas, a senhora acha que a tradição toda foi mantida através das mulheres? "

E: "Claro que teve a ajuda dos homens, já ouvi falar desta história do matriarcado até no

encontro168 aqui no Axé. As mulheres fazem algo e os homens outras coisas, é isso. Mas na nossa tradição a liderança se passa via feminina. É questão de ancestralidade e do fato de a mulher ser mãe. Na vida do dia-a-dia, as mulheres conseguiram muito: trabalho, oportunidades, curtição; porque elas são independentes e fortes para enfrentarem aquilo que já foi e o presente. As pessoas acham que candomblé é magia, vêm para cá, fazem um ebó e pronto! Não é isso. Tem que seguir a regra, a disciplina, pois só se recolhendo de vez em quando a gente ganha força e vai à luta!".

S: "A senhora está dizendo que as pessoas precisam de recolhimento de vez em quando?"

E: "Mas é isso mesmo, quando a pessoa não se sente bem, ela vem para cá, pega um pouco de

axé, fica aqui uns dois dias e com certeza vai ter resposta para os seus problemas. "

S: "Uma última pergunta, ebômi, a senhora acha que as pessoas se transformam depois da

iniciação?"

E: "A iniciação é uma grande experiência. E não só os momentos do recolhimento. É uma

viagem longa que dura sete anos e, depois, a vida toda a gente aprende. As pessoas aprendem a experienciar o próprio orixá e a se ligar com ele para serem ajudadas no dia-a-dia. Que a vida é esta, viver o dia-a-dia, fazendo as coisas que o destino nos apresenta"

Conforme as entrevistas acima, pudemos observar a clareza na exposição das falas referentes ao lado cotidiano da vida e também ao religioso.