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"Uma aiabá nunca carrega esteira, eu vou carregar para você, iaiá!" Uma grande e bela

mulher pegou a esteira das mãos de outra, pondo-a debaixo do braço. As duas estavam indo na direção da casa de Xangô; a mais velha, com grande elegância e com uma postura real, enquanto a outra, de estatura mais alta, a seguia com um ar tímido e de quem não estava entendendo o que acontecia. Foi uma das minhas primeiras estadias como pesquisadora no templo da negritude baiana, o Axé Opô Afonjá. Como que encantada, segui as duas que entravam na casa de Xangô. Era dia de amalá52, a comida sagrada do rei. A primeira quarta-feira do mês é um dia de grande

animação no terreiro; todo mundo vem para as oferendas e para participar daquele ritual de comunhão, o amalá de Xangô. Por causa dele, todas estas pessoas se encontram no Axé à procura de força e reparo na vida.

Os preparativos do ritual começam de manhã cedo, lá pelas seis horas, porém, quando há muito quiabo para ser cortado, as sacerdotisas mais velhas, que usualmente moram no terreiro, já o preparam desde a noite precedente. A rotina diária começa de manhã cedo: enquanto as filha de Xangô tomam conta do altar do orixá, mudando a água das quartinha e trocando a roupa do peji53,

enfeitando-o com flores brancas e vermelhas e botando frutas num cesto, as outras cortam quiabo e cozinham. Na casa de Xangô há uma cozinha onde é preparada sua comida. Aí, sentada sobre um banco ou uma cadeira, as mais velhas cortam a verdura e conversam, enquanto as abiãs ficam sentadas numa esteira ou no outro quarto. Cada uma tem uma bacia e corta o quiabo seguindo uma técnica antiga que virou tradição do terreiro.

O quiabo deve ser cortado em rodelas bem finas, com graça, concentração e em um estado de espírito tranqüilo. Ao longo da preparação as mulheres pedem a Xangô força e proteção neste mundo tão difícil. Naquela quarta-feira, uma abiã54, que visivelmente estava em processo de aprofundamento místico-ritual, de repente ficou imobilizada com a faca na mão, como se não conseguisse continuar. Mantinha o olhar parado e distante, parecendo ter dificuldade na respiração. — "É a proximidade do deus!" — diziam, baixinho, as mais velhas.

"É assim, cortar quiabo é um negocio serio, dá força. Olha ontem comecei cortar lá pelas 21 horas e hoje comecei cedo. Devo tudo a ele, ao meu senhor, ele me deu uma casa; dinheiro nunca me faltou para alimentar meus filhos. Ele sempre me ajuda na luta, que a vida, filha, é luta. E, olhe lá, uma mulher deve ser independente de marido. Com eles nunca se sabe, não prestam, homens não prestam... e de dinheiro. Quando precisei, Xangô sempre me ajudou a mim e à minha família" — Assim me falou uma sacerdotisa.

Após ter cortado todo o quiabo, que é supervisionado por uma sacerdotisa com o grau de

ebômi, deve-se preparar a cebola e o tempero e pôr tudo para cozinhar. É quase sempre a mesma

52 Amalá é a comida ritual de Xangô, feita com quiabo, camarão seco, cebola, azeite-de-dendê e sal. 53 O peji é o altar do orixá ou o quarto que contém os altares (assentamentos).

54 As abiãs são as pessoas que estão começando o percurso religioso. Já passaram por alguns rituais, como o das

velha sacerdotisa que cozinha, experimentando o sal e o tempero com um grande sorriso: "Ele

gosta de sal e de um bom tempero!".

Mexendo as panelas com grande colheres de pau, ela põe atenção em tudo aquilo que faz, sorri quando está bom de sal, está satisfeita por ser a cozinheira de Xangô. As outras mulheres continuam conversando, contando casos íntimos ou relatando alguma história. É tudo muito divertido e alegre; Xangô gosta de alegria e de ter muitas mulheres por perto. "O nosso rei está

feliz quando toda esta mulherada esta perto, ele gosta de ser cuidado e de um bom amalá" .

Quando finalmente a comida fica pronta, lá pelas 11 horas, o amalá é colocado em algumas gamelas onde é servido o cozido, enfeitando-se cada gamela com doze quiabos (o número de Xangô) e um acaçá55. Algumas mulheres pegam as gamelas e, depois de terem tido a

permissão, entram no quarto de Xangô e esperam o sinal da mãe-de-santo para deixarem a comida defronte ao peji. Umas vinte mulheres vestidas à moda do candomblé — com a saia de cores bem vivas ou de estamparia florida, pois Xangô gosta de cores vivas — e com o torço na cabeça circulavam entre o quarto de Xangô e a cozinha. Uma delas, após ter posto a comida no chão, girou sobre si mesma, pôs as mãos no rosto (como se o estivesse limpando), rodopiou outra vez e, após um tremor, deu o ilá, o grito do orixá… chegou Oiá56. E, como um vento sagrado, outras duas e depois três sacerdotisas, rapidamente, foram incorporadas por seus deuses ou deusas. Era um dia de grande animação, com muita gente, com muita energia, era a primeira quarta-feira do mês. Outras sacerdotisas entravam e saiam pela porta trazendo novos hóspedes e muitas pessoas aguardam a mãe-de-santo, fosse para marcar um encontro com ela, fosse apenas para bater um papo ou receber uma palavra de conforto.

Logo depois, a mãe-de-santo começou um canto em honra a Xangô, oferecendo o amalá. As sacerdotisas mais importantes ficaram na frente do peji de Xangô e, a seu lado, os demais iniciados. No final dos cantos, todo mundo se prostrou na frente do altar e pediu a proteção ao deus do trovão e da justiça, o dono do terreiro. As aiabás57 se debruçando no icá, virando-se para os dois lados, enquanto os homens se deitavam de bruços com a fronte voltada para o chão.

Ao final da cerimônia, todos saíram do quarto de Xangô e comeram do amalá e da farinha que as aiabás, saindo cozinha portando os pratos cheios, a todos ofereciam.

E então, como sempre, foi hora de muita conversa jogada fora, numa atmosfera de alegria e cumplicidade entre todos aqueles que se encontravam sob a proteção de Xangô. Um filho-de- santo, de uns 50 anos, virou-se para uma filha-de-santo e disse:

— Oh! minha rainha, como vai você, há muito tempo queu não via a senhora tão

elegante!

55 Acaçá é um bolinho tenro de milho branco e água, deixado resfriar em folha de bananeira, simboliza a paz, a

calma, o equilíbrio.

56 Quando chega um orixá na Terra, depois de alguns movimentos corporais típicos, ele emite um grito que é

particular de cada divindade, como que para dizer "cheguei".

— Eu vou bem e o meu esposo como está? Eu vejo ele sempre circundado com muitas

aiabás! Não precisa mais de mim!

— Esse povo de Iemanjá 58, com toda esta meiguice, observa tudo! Não é?

Os filhos e as filhas-de-santo falam entre si referindo-se às características dos orixás dos quais são filhos e se auto-elogiando com grande ênfase.

Repentinamente, a porta do quarto de Xangô se abriu e a mãe-de-santo saiu de lá, rápida, e com um andar real que demonstrava toda a importância da sacerdotisa suprema. Ela se sentou numa grande poltrona e, mais que depressa, um filho-de-santo se aproximou e falou com ela, se abaixando e pedindo orientação sobre as folhas.

Quando eu estava saindo do terreiro em companhia de um amigo que freqüentava o Axé havia muito tempo, vi o mesmo filho-de-santo voltando da mata e trazendo consigo um feixe de folhas. Mais ao longe, vi um outro que andava na frente de uma senhora, levando nas mãos uma bandeja de ferro com vários objetos, folhas e ovos. A senhora estava indo fazer uma "limpeza". Meu amigo fez o seguinte comentário:

"Tirar folha é coisa de santo homem! Nada de aiabá! Tem que descer no mato, tem que conhecer as folhas, tem que saber o horário para poder tomar as folhas, todo mundo acha de saber tudo e poder fazer tudo, mas é com o tempo que se aprende, observando e…", com uma mão faz um movimento na frente da boca e continua, "senta em cima, minha filha, entendeu? —Na verdade, eu não tinha entendido.

"Ah, se você quer pesquisar e não sabe, minha filha, observe e fique calada!" "Então são só os homens que podem pegar as folhas?" — perguntei rapidamente.

"Olha, o candomblé é um negócio profundo e tem que participar para conhecer e entender. É preferível que sejam os homens de santo homem a catar as folhas, mas, se no momento da procura não estão presentes, ou como aqui que é um terreiro grande, serão também as filhas de santo homens como Oxóssi ou Ogum a colher as folhas, mas sempre pessoas que saibam e que tenham axé. Não é a mesma coisa se cata folhas uma ebômi de Oxóssi ou eu".

É um dia de grande movimento como todas as primeiras quartas-feiras: alguns sacerdotes se ocupam em fazer a "limpeza" nas pessoas, outros coletando folhas, as mulheres cuidam da cozinha.

Essa foi uma de minhas primeiras visitas a esse terreiro da Bahia. A idéia que ficou desse universo foi de um mundo complexo e sutil, no qual existia uma clareza de papéis a serem desempenhados. Chamou minha atenção a exaltação de algumas características femininas assim como aquelas masculinas que serviam para dar continuidade à tradição, enfim, à vida.

A cultura ioruba é de tipo holístico e funcional: cada energia, cada pessoa, cada objeto tem uma função e um papel bem preciso. Esse aspecto permaneceu nas Américas e encontra-se no candomblé. Todos os fiéis têm de conhecer e aprender sua função no grupo. Existe uma

58 Chamam-se povo de Iemanjá ou povo de Oxóssi todos os filhos e filhas-de-santo que pertencem a um mesmo

complexa diversificação de papéis que segue uma lógica específica. Essa compreende o sexo do orixá dono da cabeça, o gênero do filho-de-santo, os anos de iniciação, o tipo e o grau de sacerdócio etc. Genericamente, as mulheres ocupam-se das atividades ligadas ao interior: a costura da roupa litúrgica e, sobretudo, os afazeres na cozinha. Conforme Monique Augras,

"Quem manda na cozinha são as grandes mães míticas. Lugar de transformação, onde a alquimia própria da culinária converte o sólido em líquido, o espesso em sutil, unifica o disperso e transubstancia os elementos, a cozinha guarda em seu interior mistérios uterinos, misturas de plasmas e seivas, que vão redundar em pratos saborosos, mas também construir, no mesmo processo, as identidades míticas de todos quantos compõem a comunidade do terreiro" (Augras, 1994: 4).

Os homens, por sua vez, ocupam-se das atividades externas, como a coleta das folhas, o sacrifício etc. Os músicos, os alabês, são sempre homens que não podem, e não devem, receber o orixá em transe.

Outra clara divisão dos sexos pode ser percebida ao longo do próprio rito, quando o público, não podendo sentar-se junto, divide-se entre mulheres do lado direito e homens, do lado esquerdo, como era o costume nas igrejas católicas até as reformas que vieram com o Concílio Vaticano Segundo. Tal ordem é invertida no axexê, o que claramente tem um sentido simbólico. Essa divisão entre as energias femininas e aquelas masculinas permaneceu e se padronizou com o tempo, simbolizando talvez os dois princípios da cabaça da origem, o feminino e o masculino.

A hierarquia é basicamente dividida em rodantes e não-rodantes. Os primeiros são os que entram em transe, que são possuídos pelos orixás, os segundos são os que não entram em transe, participando dos ritos com outras atribuições. Cada filha ou filho-de-santo sabe exatamente quando e o que fazer,e o mesmo ocorre com os mais jovens, como os abiãs, instruídos sobre as suas funções ao longo do ritual.

Parece-nos, ao observar um rito, que os papéis experimentados pelas mulheres e pelos homens são claramente definidos e limitados. Limites que não significam contudo a impossibilidade de se relacionarem, mas que implicam uma interligação entre si e com o todo. Sendo os ritos uma "re-atualização do ato cosmogônico" (Eliade, 1969), é necessário que a energia feminina e aquela masculina interajam para que possam originar o mundo, criado a partir da união harmônica de dois princípios , o feminino de Odudua ou, como diz Mãe Stella, de Aiyê, e o masculino de Obatalá. Esses dois princípios se encontram na dinâmica da dança de transe que se verifica através da fusão das energias da música e aquela da dançarina-sacerdotisa e em todos os rituais que são movimentados pela dinâmica das energias.