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O orixá se aproxima: sensações e emoções

Conversando com as entrevistadas e analisando os fatos ocorridos ao longo de minha estada no terreiro, tive que lidar com um conceito de mediunidade muito mais abrangente que aquele que normalmente entendemos. Usualmente, quando se fala de médium, pensa-se logo em um tipo de transe no qual acontece algo de estranho, de violento, enfim, algo de visivelmente diferente do "normal". Segundo o candomblé, existe uma outra realidade além do mundo visível, que seria um mundo paralelo e correlato ao nosso, onde moram os orixás e os espíritos. A comunicação entre esses dois mundos se daria por meio do corpo de algumas pessoas especialmente escolhidas pelos orixás. Tais pessoas, devidamente treinadas, são preparadas para emprestar seus corpos aos orixás, que assim vêm à Terra para trazer conforto e paz aos humanos e com ele se confraternizar.

A mediunidade é considerada um dom divino, recebido no momento do nascimento. As informantes nos explicaram que há vários tipos de mediunidade e que os orixás podem enviar recados e energia de várias maneiras.

A mediunidade apresenta diferentes modalidades e se manifesta em intensidades variadas. O médium precisa ser educado para poder desenvolver todo o seu potencial e servir na comunicação, e assim ajudar a todos, caritativamente90. O conceito de mediunidade é direcionado e interpretado culturalmente e abrange uma grande gama de fenômenos. É associada a outros tipos de percepção, como a intuição, o pressentimento e a premonição. Esses tipos de conhecimento corporal são interpretados no candomblé como sinais dos orixás. Assim, todo mundo pode ter um certo grau de mediunidade, que em alguns momentos pode explodir ou se tornar mais fraca.

90 Muitas vezes as velhas me disseram que o candomblé é caridade. Quem entra deve ajudar os outros, como os elos

Como propõe Kardec, o codificador do espiritismo, existem vários tipos de mediunidade. As pessoas chamadas de sensitivas têm uma especial sensibilidade através do tato. Esses médiuns podem perceber a presença dos espíritos através um arrepio, através de um "sentir" que alguém está por perto. Ainda segundo o kardecismo, existem médiuns auditivos, ou seja, que podem ouvir vozes que vêm do próprio interior ou não e que trazem recados. A vidência é uma outra possibilidade: pode acontecer que em alguns momentos especiais os médiuns vejam coisas invisíveis aos homens comuns. Esses fenômenos de mediunidade podem acontecer de várias modos, num estado de consciência normal ou de consciência alargada ou, ainda, por meio dos sonhos.

Uma outras possibilidade é a conexão de pensamentos. Para alguns médiuns é fácil perceber, ouvir, que alguém está pensando neles ou desejando comunicar algo. Em momentos de concentração, podem assim se comunicar com os orixás. Essa capacidade de recepção de mensagens é muito útil quando o médium está envolvido numa atividade de adivinhação ou de cura.

Almira, a ebômi filha de Oiá, conta que sempre foi muito emotiva e passional:

"Ah minha filha, eu já sofri muito. Quando trabalhava com aquele ciúme besta das pessoas, sempre alguém tinha algo a me dizer. Cansei de fazer ebó fora do trabalho. Olhe, chegavam a me dizer cada coisa. Entrava no trabalho e já ficava nervosa. Nem precisava que eles falassem nada; eu sentia aquele arrepio, aquela sensação de peso e saía do trabalho toda lerda. (Mãe Almira começa a ficar nervosa e agita uma das pernas). Saía do hospital e tinha que fazer algo para não me sentir deprimida.

A gente sente quando tem algo de bom ou de mal nas pessoas, ou se alguém tem olho gordo. A gente está protegida por nossos orixás. A gente recebe avisos, alertas. Um dia, botei na cabeça que tinha que ir fazer o mercado, e já era tarde e escuro. Me arrumo e, ligeira, saio na rua. E quando boto o pé na rua, algo me empurra para trás, e me vem aquela intuição "não saia!". E aí? Não saí."

A filha de Iemanjá, Simona, nos fala de uma época na qual estava muito fragilizada e emotiva:

"Foi um período muito confuso, muito confuso mesmo. Eu sempre gostei de criança, mas assim era demais. Eu chorava quando via uma, ficava olhando e pensava quando vai ser que terei o meu? E depois, de repente, aquela vontade de choro. E chorava, chorava horas, nem eu sei porquê; tudo me comovia, tudo era motivo de choro. De repente vinha aquela coisa estranha na cabeça, como se algo saísse dela e eu me tornava vazia e mole. Tinha momentos que sentia uma coisa leve, como uma água que descia desde a cabeça até os pés. E aí não conseguia nem andar, uma coisa solta me pegava e me sentia uma meninota que andava na rua pulando e rodando. Às vezes me pegava também uma vontade de dar risada; e aí eu ria… ria como uma maluca. Duas ou três vezes pulei no barracão.

Numa festa de São Lázaro, aí na igreja de São Lázaro, estava cheio de gente, toda aquela gente tomando banho de pipoca, sabe como é? Bem, nunca tinha visto aquilo, mas por

baixo de um tecido branco tinha um bocado de pessoas que, vestidas como crianças, brincavam. Naquela época eu nem sabia o que eram os erês91. Bem, eles começaram a me chamar de mãe e a brincar comigo: 'Viu, mãe', diziam pulando e cuidado com você, 'mãe, está boa?' E tatatá e tatatá'. E andavam pra direita e pra esquerda, com aqueles laços todos tortos na cabeça. 'E quando a nossa mãe vai tomar conta de nós? A gente fica triste sem a senhora', e tatatatá e tatatatá, viu?

Mas o que mudou foi minha percepção sobre as pessoas; às vezes passando perto ou encontrando alguém, podia saber tudo sobre ela, sentia a energia da pessoa claramente. Se ela estava bem ou não. Nas primeiras vezes fiquei assustada: enquanto um amigo meu conversava comigo, vinha uma dor de cabeça horrível (nunca tinha uma dor tão forte, como se algo tivesse me cerrando a cabeça), não sabia o que pensar. Depois, me afastando da pessoa, passou tudo.

Uma outra vez, estava perto de uma menina adolescente de Oiá. Sempre gostei muito dessa menina, tinha algumas pessoas que estavam entrevistando ela. De repente senti uma dor, uma vontade de choro ao redor dessa menina. Aí, quando as pessoas foram embora, perguntei à mãe-de-santo o porquê dessa sensação de tristeza em volta da menina. A mãe-de-santo falou bastante da situação dessa adolescente, que chegou no terreiro praticamente maluca. Tudo isso pra dizer que as percepções das situações ou das pessoas que eu sempre tive aumentaram, até que eu acreditei em mim. E se não seguisse minhas percepções me dava mal."

Uma outra filha de Iemanjá, Maria, mulher culta que freqüenta o terreiro de vez em quanto, pois não mora na Bahia, um dia me falou que:

"Estava voltando do trabalho e aí estava sentada no ônibus quando percebi uma onda de energia que rodeava as pessoas. Eu podia ver as cores em volta de algumas pessoas. Foi muito estranho. Tudo era diferente, tudo era circundado de energia e eu me sentia no ar."

Josenilda, filha de Oiá relatou uma visão que ela teve:

"Um dia, estava botando a roupa no quintal para secar, virei o olho e vejo um cavaleiro sobre um cavalo que levantou-se na minha frente. Fiquei aí sem poder me mexer, as palavras não conseguiam sair, eu estava aí parada, e o cavaleiro, outra vez, deu uma empinada com o cavalo e aí quase desmaio."

Joana, filha de Iemanjá, explica que, desde menina, tem sensações e percepções sobrenaturais e que uma vez, ainda criança, teve a sensação de sentir a respiração das plantas. Ela sempre foi muito emotiva e capaz de chorar com grande facilidade, sem mesmo saber o por quê:

"É fácil me comover e choro feito louca. Sempre senti muita vontade de andar, de conhecer... que estranho, eu não conseguia ficar parada. Agora saio com dificuldade de casa. Gosto de ficar em casa, de molhar as minhas plantas, de ler etc.

Quando vejo chegar Oxalufã92 — dizem ser o meu esposo —, aí vem uma coisa de dentro e choro, choro, choro… quase me acabo; me emociono muito quando vejo ele."

91 Os erê são entidades infantis. Seus orixás protetores, com os quais muitas vezes são confundidos, são os gêmeos

E Josenilda, filha de Oiá, diz:

"Tem algo dentro de mim, sabe?, um fogo que sobe de dentro e aí vem uma raiva. Olhe, se não me seguro, posso até quebrar a cara do meu marido. Aquela vontade de sair, de deixar tudo, de ir, tenho que me segurar!"

Simone, filha de Iemanjá, conta que:

"No começo falavam que eu era de Oiá, mas aqui a mãe-de-santo logo viu a minha Iemanjá, ela falou que Oiá defende Iemanjá. A minha santa é muito fina, é muito sensível, ela gosta de ficar tranqüila em silencio, nada de confusão. Eu não sabia nada de candomblé, mas sempre gostei de Oiá, gosto da liberdade dela, da forca, mas na verdade no fundo, eu sou muito sensível. Quando alguém está triste ou alegre sinto logo no peito. Quando sinto a energia de um lugar, ao contrário, é nas pernas que sinto subir e rodar a energia."

Almira, filha de Oiá, muitas vezes me falou:

"A gente sente se alguém tem energia boa ou não. A gente sente logo. Olhe, até no andar da pessoa, ou pelo tom da voz, se percebe as intenções de uma pessoa. Não é que a gente fique pensando 'é isto ou aquilo'; simplesmente, de repente, a gente sente algo: pode ser através de qualquer coisa, pode ser um quê de diferente e você saca as pessoas.

Lembro que uma vez chegou aqui uma moça, eu vi entrar primeiro uma cigana, depois reparei que a cigana era o seu espírito. Eu só via aquele cabelo e a saia que movimentava, como se dançasse."

Podemos percebemos nessas falas toda uma correspondência das sensações com o corpo. Como se a compreensão das pessoas e das coisas não fosse meramente algo mental, mas que acontece através do corpo.

Conforme os estudos de Stoller (1997), fica claro como a aproximação do orixá pode ocorrer no candomblé através de sensações e como essa religião desenvolve um processo corporal no qual o corpo conhece coisas e pessoas por meio de uma percepção alargada.

Aos poucos as pessoas são levadas a reconhecer e a acreditar nas sensações e nas emoções que o seu corpo lhes envia como mensagens, como se o processo do conhecimento não fosse apenas ligado à mente, mas tivesse uma base, um fundamento corporal, ancorado. Ressaltemos também importância de algumas partes do corpo, como a cabeça, o coração, os pés, como se fossem lugares mais apropriados para "sentir".

Uma vez, num terreiro que não o Axé Opô Afonjá, presenciei a seguinte cena: uma moça entrou na casa da mãe-de-santo e imediatamente começou a "passar mal", como se diz no candomblé. A mãe-de-santo pôs uma das mãos sobre o coração e a moça logo se acalmou. Perguntei o porquê dessa ação e a mãe-de-santo respondeu que "o orixá tem que vir no coração, é