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Transe e possessão: teorias interpretativas

O fenômeno do transe é conhecido no mundo inteiro, pois é um fenômeno do ser humano, representado diferentemente segundo as culturas nas quais acontece. Lapassade (1990) o define como sendo a "consciência modificada, caracterizada por uma mudança qualitativa da

consciência ordinária, da percepção do espaço e do tempo, da imagem do corpo e da identidade pessoal".

Os primeiros estudos sobre o fenômeno do transe nas religiões afro-brasileiras foram feitos pelo médico Nina Rodrigues (1935), que pesquisou sobretudo no Gantois, no tempo de Mãe Pulquéria, terreiro no qual teria sido suspenso ogã. De acordo com as idéias científicas do final do século XIX, Nina Rodrigues considerava a possessão como um estado sonambúlico que favorecia a dissociação e a substituição de personalidade — induzida também pelo hipnotismo — sendo, por isso, semelhante às perturbações histéricas. Rodrigues aceitava, assim a noção ocidental de pessoa, que enfatiza a unidade do eu. Pouco tempo depois, Ramos (1940: 283), também médico e antropólogo, associava a possessão não só à histeria, mas aos múltiplos tipos de perturbação mental que se originariam de uma "regressão" que, por sua vez, alcançaria "estados efetivos profundos, arcaicos".

Após as publicações de Bastide (1974; 1978), que formulou uma nova concepção sobre esse assunto, a explicação do transe como fenômeno patológico foi deixada de lado . Para ele o transe, núcleo das religiões afro-brasileiras, deve ser pensado como um fenômeno normal e

quais as funções manifestas e as funções latentes articulam-se de várias maneiras, originando um sistema muito complexo. Resumindo a tese de Bastide, ressaltamos que:

a) os cultos de possessão são formas de vivência religiosa caracterizadas por um tipo de relação entre a divindade e determinadas categorias de seus fiéis; essa ligação ocorre de maneira que o fiel seja possuído pela divindade;

b) a possessão em si é um comportamento socializado, isto é, aprendido. No íntimo do fiel acontece uma mudança na qual a personalidade normal, que determina os comportamentos habituais, cede seu lugar à personalidade do orixá, que atua com comportamentos diferentes. Essa substituição é acompanhada de uma alteração do estado psíquico chamada geralmente de transe; c) a identificação que assim se realiza, constrói um tipo de pacto de recíproca aliança, cuja função principal é garantir a proteção do orixá tanto para o fiel quanto para o grupo ao qual ele pertence.

Bastide entende os cultos de possessão como uma forma de psicodrama nos quais os fiéis podem expressar seus conflitos emocionais. Em sua "sociologia do misticismo", ele tenta explicar as mudanças na expressão das experiências religiosas como se elas fossem determinadas pela mudança das estruturas sociais.

Costa Eduardo (1948) e Ribeiro (1952) insistem na natura socialmente adaptativas do transe. Os autores defenderam a tese de que o transe é uma forma intencional de protesto das classes desprivilegiadas, uma maneira de inverter seu status social, uma vez que os indivíduos, possuídos pelos espíritos, se tornam divindades e ganham prestígio e respeitabilidade na comunidade.

Também Verger (1981) encara a possessão de um ponto de vista sociológico e psico- analítico, percebendo o transe como um reflexo condicionado no qual uma personalidade inconsciente do fiel possuído tem a possibilidade de aflorar e de se expressar num contexto social controlado.

Márcio Goldman (1987), de uma perspectiva estruturalista, polemiza com as velhas interpretações biopsicológicas e com os modelos sociológicos reducionistas. Para ele, uma compreensão maior do complexo fenômeno do transe deve ter como ponto de partida uma prévia análise da estrutura ritual e da noção de pessoa dentro do contexto ritual no qual o culto se desenrola. Assim, Goldman examina o processo da iniciação no candomblé como uma construção ritual da nova personalidade do indivíduo.

Muitos estudos foram feitos sobre a possessão não só no candomblé mas em várias áreas culturais em que se manifesta. Leiris (1988 [1958]) e Metraux (1971 [1958]) consideram a possessão nos seus aspectos teatrais como se fosse uma comédia do sofrimento e da marginalidade. Também Bourguignon (1976) situa-se um pouco nessa linha, mostrando que os estados alterados de consciência nas religiões não ocidentais são muito difusos. Para ela, os possuídos agem como atores, uma vez que, através da mudança de papéis, desenvolvem um balanceamento entre as necessidades pessoais e as expectativas sociais. De Martino (1994) e Boddy (1994) propõem o transe como uma prática do discurso político de crítica corporal contra a hegemonia. Outros estudos ainda, como os de Lewis (1972), situam a possessão como uma resolução de conflitos existentes na estrutura social, especialmente entre mulheres e homens.

As linhas interpretativas de Neher (1962) e Goodman (1988), que tentaram explorar os aspectos das alterações neurofisiológicas nos estados de consciência alterados, tiveram muitas interpretações ligadas às esferas da biopsicologia.

Voltando ao contexto afro-brasileiro, Cossard-Binon (1970), Lépine (1978), Verger (1981) e Augras (1983), entre outros, concebem os cultos de possessão como definidores de um arquétipo característico que permitiria a liberação de uma tipologia psicológica mais ou menos escondida no inconsciente. Há, porém, muitos outros fatores que favorecem o desenvolvimento desse fenômeno, como o da solidariedade do grupo e o da participação comunitária. Todas essas abordagens demonstram o quanto é difícil de se compreender o transe e também as múltiplas possibilidades que levam ao seu acontecimento e orientação.

Para podermos discutir esse aspecto da possessão e o seu envolvimento corporal é bom sublinhar as diferenças, inclusive as lingüísticas, entre os termos que descrevem a fenomenologia mística: êxtase, possessão e transe.

Segundo Rouget (1986), a primeira distinção a ser feita é entre o êxtase e o transe. O primeiro acontece em completa imobilidade, no silêncio, na solidão, sem que haja uma crise evidente e com a presença de visões ou alucinações; o transe, por sua vez, ocorre com o movimento, em presença da música e de outras pessoas, com a ocorrência de uma crise evidente e sem alucinações. Conclui dizendo que o transe e o êxtase podem acontecer por ocasião de rituais diferentes, com as mesmas pessoas e dentro da mesma fé religiosa.

Outra distinção a ser feita é a entre transe xamânico e de possessão. Sempre conforme Rouget, o xamanismo é identificado como uma viagem que o xamã decide fazer no mundo dos espíritos para trazer de volta a alma do "paciente"; no transe de possessão, no entanto, é um espírito (ancestral, orixá) que entra no corpo da fiel e a possui. Esse segundo tipo está ligado a tradições da África e da bacia do Mediterrâneo (e na América da diáspora africana), enquanto que a primeira, às áreas culturais indígenas americanas e asiáticas. Ele define a possessão como sendo:

"(…) um comportamento socializado de um indivíduo que, dadas algumas circunstâncias especiais, consiste numa mudança que nele acontece, com o efeito de que a sua personalidade usual (que atua no seu comportamento cotidiano) se transfere para a divindade, que provoca diferentes formas de comportamentos; essa substituição deve ser acompanhada por uma alteração da atividade psíquica chamada, geralmente, de transe"

(Rouget, 1986: 30).

Entendemos a possessão segundo essa definição de Rouget — e não como uma dissociação mental — e a propomos como um complexo comportamental que expressa uma relação entre o indivíduo a e divindade. A possessão, portanto, implica um "comportamento identificatório", fundamentado por nós sobre um saber corporal que se identifica com o próprio orixá.

Tanto quanto pude observar, a fenomenologia mística é muito ampla e complexa e está de acordo com muitos tabus existentes no candomblé. Diante disso, minha descrição e análise, apesar de termos participado de perto de muitos atos de possessão, não pode ser considerada

individual e, por isso, de difícil alcance. O transe, assim como outros fenômenos interiores, é algo difícil de descrever, pois, conforme Prandi (1991a: 138):

"O transe no candomblé, pelo menos em suas primeiras etapas iniciáticas, é experiência religiosa intensa e profunda, pessoal e intransferível. Como a dor e as paixões não- religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem descrito, a não ser metafórica e indiretamente."

Mesmo assim, tentarei apresentá-lo descritivamente, mostrando minha interpretação, que tenta compreender a experiência do transe como uma compreensão do corpo, o qual, em circunstâncias especiais, experimenta uma ampliação da consciência ordinária. Trata-se de um estado profundo de meditação no qual os limites entre o externo e o interno não existem mais, pois o indivíduo faz parte do mundo e o mundo faz parte do indivíduo.