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Em geral a incorporação do orixá é lenta e raramente se percebe seu início. Pode durar alguns minutos, e ser mais rápida, ou parar e recomeçar de novo. Usualmente cada filha-de-santo tem sua maneira própria de sentir a aproximação do orixá, o que evidencia o caráter individual do transe.

No contexto ritual, as filhas-de-santo comumente "caem" ao final do xirê. Algumas começam a sair da roda, dão um passo e depois parecem cair num buraco; outras coçam o rosto

ou atrás da orelha; outras tapam os ouvidos (ou põem uma das mão sobre a orelha); outras param por alguns segundos ou andam mais lentamente, ou, ainda, cambaleiam ligeiramente; outras fazem movimentos descontrolados com os braços; outras rodam em torno do próprio eixo até serem sacudidas violentamente. E depois de terem rodopiado, com os braços estendidos ou com um braço esticado ao longo do corpo, o orixá se manifesta completamente. O orixá estica os braços sobre a cabeça à frente dele, cruza os braços atrás das costas, curva-se diante o público e grita o seu ilá característico, diferente para cada orixá. O ilá é a identidade sonora do orixá, e não se repete de um para outro orixá pessoal (orixá desta ou daquela filha-de-santo), havendo, contudo, um padrão para cada orixá geral: ouvem-se piados nos ilás de Oxóssi, choro nos que são emitidos pelas diferentes incorporações de Iemanjá, um som parecido com heeei nos ilás de Iansã etc.

O xirê continua e outras sacerdotisas seguem dançando na roda. Há as que saem correndo, não querem ser "tomadas", mas que depois de alguns passos são presas pelo orixá completamente. As velhas ebômis se sentam, mas se alguma delas incorpora o orixá, o que não é muito freqüente entre as "velhas", as outras filhas dão gritos de felicidade. Logo o orixá se levanta e se dirige aos atabaques, esperando que toquem para ele.

Cada orixá tem um jeito próprio de possuir seus filhos, havendo também distinções características cada orixá. Assim, as filhas de Iemanjá têm movimentos lentos e muitas param o andar, enquanto as filhas de Oiá são rápidas e dão muitas voltas sobre si mesmas. Os filhos de Omulu voltam os olhos para cima e se dobram para frente e para atrás com grande mobilidade da coluna vertebral.

Deve ser acrescentado que cada casa de candomblé também tem seu padrão de incorporação, mesmo quando se trata de terreiros de mesma origem. No Axé Opô Afonjá, por exemplo, as filhas-de-santo rodam sobre si mesmas; na Casa Branca, o corpo se curve para o chão e para atrás, desenhando um grande arco. O desequilíbrio do corpo é grande e as equedes socorrem as filhas-de-santo colocando uma mãos atrás das costas e outra na frente do peito da filha, como se demarcassem limites de movimento dentro dos quais o equilíbrio é restabelecido. No Gantois presenciei orixás demarcando sua chegada definitiva no corpo de seus filhos com um salto para o ar.

Varia também de uma casa para outra a forma de despachar o santo, cujas fórmulas são mantidas em segredo. No Axé, para alguns orixás, isso é conduzido nos quartos localizados na parte traseira do barracão, ou nas próprias casas, no caso de Omulu, Nanã ou Oxumarê, ou, ainda, para Xangô. Em cada terreiro há uma técnica que corresponde evidentemente aos fundamentos da casa, usando-se, por exemplo, cobrir a cabeça do orixá com um pano branco e fazer uso da água das quartinhas (Querino 1938: 80; Ribeiro 1952: 58; Landes 1967: 60-62). É comum no candomblé dizer que é muito perigoso ter o santo despachado de forma não usual, pois a matéria, isto é, a filha-de-santo poderia acordar sem poder a fala ou ouvir, ou padecendo de outros desconfortos. Quando a filha-de-santo "acorda", isto é, quando recupera sua identidade, mostra-se meio atordoada, com um olhar completamente ausente, caminhando sem equilíbrio. Precisa ser amparada por alguém ligado a ela, como uma das filhas-pequenas ou uma amiga, que a ajuda na volta para casa. Ela acorda muito cansada, com sede e com a sensação de ter voltado de uma

longa viagem. Geralmente é necessário passar algum tempo para que recupere o senso de orientação.

Apesar de eu não ter presenciado nenhum despacho de orixá de iniciados, vi como se despacha o santo bruto, isto é, o orixá de quem ainda não é feito e cai no barracão durante um ritual público. Usualmente seu corpo é apertado em vários pontos (nos ombros, nas costas, nas mãos e nos pés), puxam seus cabelos e sopram nos seus ouvidos, às vezes chamando a pessoa pelo nome. Usa-se também a água para molhar o rosto e as mãos dessa pessoa.

O estado de santo ocorre corriqueiramente nas festas públicas do terreiro. No Axé Opô Afonjá são realizadas cerca de 25 festas por ano, mas os orixás se manifestam de acordo com um calendário. Normalmente o orixá chega nos dias de festa a ele consagrados. Xangô desce nas suas festas e nas de Oiá, pelo fato de ela ser a esposa com a qual divide o poder do fogo, e desce também na festa de Oxum, que é outra de suas esposas. Oxóssi, além de aparecer na sua própria festa, se manifesta também nos dias consagrados às aiabás, nas festas de Ogum e de Iemanjá. Oxalá que, pelo fato de ser um orixá lento e velho, manifesta-se apenas nas festas do ciclo das águas a ele dedicado. Iemanjá também não desce facilmente, sobretudo as qualidades velhas, como Iemanjá Sabá. Existem, no entanto, uma multidão de outros fatores, dos quais já falamos, que desencadeiam o transe dos orixás específicos.

Uma plena compreensão da ligação e da interdependência entre o estado de santo, o estado de erê e o comportamento da pessoa no estado de consciência normal se torna difícil pela dinâmica estritamente pesssoal presente em cada caso.

Feita esta ressalva, podemos afirmar por ora, para resumir, que o transe, ou estado de

santo, envolve um conjunto de fenômenos que, apesar de contidos num modelo comum

culturalmente padronizado, são experimentados diferentemente por cada indivíduo. Pessoas com uma sensibilidade particular para experimentar tais fenômenos são socializadas através da feitura, que contém o modelo disciplinador dado pela cultura.

O comportamento no transe é modelado ou disciplinado pelo processo de aprendizagem implícito na etapa iniciática da feitura, com o fortalecimento de laços entre a filha-de-santo e seu orixá, com a assimilação pela filha dos traços típicos do orixá (dono da cabeça) que a possui, e pela fixação no corpo da iniciada dos modelos de comportamento e posturas corporais transmitidos por meio das cantigas, toques e mitos.

A freqüência com que se dá a possessão do orixá e o estado de erê varia em função de muitos fatores. De modo gera, uma filha-de-santo recém iniciada cairá em transe com mais freqüência do que uma que já concluiu a obrigação de sete anos, pois uma ebômi experimenta o

estado de santo cada vez mais raramente. As mais velhas no santo experimentam o transe só uma

ou duas vez por ano, pois elas "conversam com o orixá de outra maneira", nas palavras de Mãe Almira.