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O terreiro Axé Opô Afonjá, o contexto da pesquisa,

Mãe Aninha, uma das grandes figuras dos candomblés da Bahia, nasceu em 1869, filha de dois africanos: Anió (nascido na África, mas batizado no Brasil) e de Azambrió (pertencente à etnia grúnci).

Como relata Mãe Stella38,

"Ainda era Iyalaxé da Casa Branca Julia Figueiredo, quando Aninha Oba Biyi39,

completando sete anos de iniciada, teve ordem de ser mãe-de-santo. Teve como primeira filha-de-santo Paula de Ogum, na própria Casa Branca. Com a morte de Maria Júlia, assumiu Marcelina, dai surgindo divergências, culminando com o afastamento de um grupo liderado por Aninha, que foi para a Rua do Camarão, numa roça, no Rio Vermelho, onde funcionava o Terreiro de Pai Joaquim – Obassainá – Essa Oburo".

Desde aquele época, mãe Aninha mudara-se para a Rua Santa Cruz, no bairro do Nordeste, sempre em Salvador. Fazia iniciações, como a de Rosalina de Oxalá, em sua residência, apesar de existir o espaço da roça de candomblé.

Em 1903 mudou-se para a rua Corriachito, onde iniciou mais duas filhas-de-santo, Salu de Airá e Maria das Dores de Oxóssi. Em 1907 mudou-se para a Ladeira da Praça, onde Mãe Senhora, Oxum Muiuá, foi iniciada com outras cinco irmãs de barco, além de outras iaôs40 recolhidas dias depois. Naquele tempo Mãe Aninha morava na ladeira da Praça, número 77, no Pelourinho. Em 1912, na residência da Ladeira da Praça, Mãe Aninha iniciou, ainda menino, o professor Agenor Miranda Rocha41, que veio a ser mais tarde o oluô do terreiro do Afonjá e de outros candomblés por ocasião do falecimento da mãe-de-santo. Conta-se que, pouco antes disso, Aninha teve um sonho no qual Xangô a mandava comprar uma roça. E em 1910 ela adquiriu um terreno no alto de São Gonçalo do Retiro e lá fundou seu próprio terreiro, ao qual deu nome de Axé Opô Afonjá. Nele, onde cada orixá tem a sua casa. Uma das mais misteriosas construções do terreiro de Mãe Aninha é a casa de Iá, a casa de Iemanjá, em cujo interior jorra uma fonte na qual se cultua Iá, divindade grúnci42 que Aninha herdou de seus pais. Com a ajuda do babalaô

38 A atual mãe-de-santo do terreiro.

39 Obabií significa o rei nascido nesta Terra.

40 Iaô significava originalmente esposa, esposa do orixá. Hoje é sinônimo de filha ou filho-de-santo, a mulher ou

homem iniciado para ser possuído pelo orixá.

41 Sobre a história do Professor Agenor, o único oluô da tradição queto e balogum da Casa Branca, há vários livros

(Rebouças Filho, 1998; Sodré e Lima, 1996).

42 Os grúncis são um povo do grupo lingüístico gur que alguns autores chamam de voltaico e eram conhecidos na

Martiniano Elizeu do Bonfim43, elo de ligação entre o Axé e a Nigéria, a ialorixá do Afonjá organizou o corpo dos doze obás de Xangô44, responsáveis pela condução civil dos destinos do terreiro, reconstituição simbólica da corte africana de Oió. Conta-se que Mãe Aninha teria instituído que a chefia do terreiro deveria passar sempre pela linha feminina45.

Essa ialorixá criou uma casa de candomblé que, além dos rituais da religião, teve a possibilidade de abrigar filhos-de-santo menos favorecidos e mesmo amigos em difíceis conjunturas.

"Mãe Aninha costumava dizer à sua irmã carnal Andreza que criara a Roça para Xangô e para os seus filhos-de-santo. Ela era passageira, o Axé, não" (Azevedo e Martins,

1988).

Desse modo, vários filhos e filhas-de-santo foram socorridas pela ialorixá, tanto devido a dificuldades financeiras, quanto por causa de perseguição política, como foi o caso de Édison Carneiro, o qual, tendo se refugiado na Casa de Oxum, ficou aos cuidados de Senhora, que era então a ossi-dagã46 do terreiro.

Mãe Aninha foi várias vezes ao Rio de Janeiro, onde fundou o Axé Opô Afonjá que é irmão daquele da Bahia. Com determinação e inteligência, essa mulher conseguiu junto a Getúlio Vargas, por meio do Decreto 1202, o reconhecimento e a liberação do culto afro-brasileiro, que até aquele momento era tido como "coisa de negro ignorante, prática fetichista e vergonha da

Bahia". Algumas das velhas sacerdotisas do Axé dizem que mãe Aninha era uma personalidade

imponente e que o seu Xangô era um grande mágico.

"Filha, lembro ainda eu pequena na festa do Xangô dela, ele dançava, dançava e de repente começou a cuspir pedras, sim, sim , pela boca. O Xangô de mãe Aninha cuspiu pedras de raio pela boca, mas era criança ainda não entendia nada das coisas e aí perdi as pedras. Se tivesse tido um pouco mais de cabeça! E não só eu vi esta magia, mas várias pessoas correram para pegar as pedras".47

Em 1936 realizou-se em Salvador o Segundo Congresso Afro-Brasileiro e nele mãe Aninha apresentou um relatório sobre a culinária do candomblé e ofereceu no final uma grande recepção, com danças rituais, toques e guloseimas baianas. Ela mesma inventou o hino do Axé que canta-se em ocasião de algumas festas. No mesmo ano ela criou o Centro Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, que é a sociedade civil responsável pelos assuntos profanos do terreiro.

Mãe Aninha faleceu em 1938. Dizem seus descendentes espirituais que teria levado consigo muitos conhecimentos religiosos que não teve tempo de transmitir aos filhos.

43 Martiniano do Bonfim e Felisberto Sowzer foram os últimos babalaôs, e muito respeitados, sobretudo o primeiro. 44 Sobre este assunto, veja-se o artigo de Costa Lima, Os obás de Xangô, em de Moura, 1981: 87.

45 Muitos estudiosos relataram que a liderança nos terreiros de candomblé de nação queto é feminina, enquanto nos

de tradição Congo, angola e caboclo pode ser também masculina. Dificilmente se comprovaria tal hipótese.

46 Ossi-dagã é um cargo que recebem as sacerdotisas que se ocupam do padê no Axé Opô Afonjá. 47 Fala de uma informante do Axé, mãe Almira de Oiá.

"Dizem que pouco antes de falecer chamou as pessoas mais próximas e falou em iorubá, mas ninguém entendeu nada, pela fala e quem sabe, ela estava já fraca. Mas quando as pessoas pediram para ouvir outra vez aquilo que ela tinha dito, mãe Aninha respondeu: não sabem o que perderam".48

Mãe Aninha tinha feito construir um cruzeiro em frente ao lugar de culto aos ancestrais, onde foi celebrada uma missa católica. Naquela época existia o costume, que ainda hoje se preserva em muitos candomblés, de rezar missa nos terreiros, assim como os costume de levar os novos filhos-de-santo, logo depois da iniciação, à igreja do Bonfim e a outros templos católicos.

Após a morte de Mãe Aninha, Mãe Bada Olufandeí, que tinha o cargo de baró, assumiu temporariamente o axé. Mãe Bada morreu em 1941 e, conforme o jogo de búzios realizado pelo Professor Agenor Miranda Rocha, Mãe Senhora, Oxum Muiuá, foi escolhida como a nova mãe- de-santo. Mãe Senhora, famosíssima na Bahia, dedicou-se ao Axé Opô Afonjá por mais de trinta anos. Tinha uma especial dedicação para com Xangô e sempre, como diz mãe Stella: "o

consultava para as mínimas coisas, pois era seu orientador e confidente. Apesar da sua dedicação ao Axé nunca faltava nas festas do terreiro de egunguns, o Ilé Agboulá49, onde ocupava o importante posto de Iá-egbé, a chefe da sociedade feminina".

Por meio de uma complicada filiação, Mãe Senhora era bisneta de Obatossi por laços de sangue e, por laços espirituais de iniciação, sua neta. Mãe Senhora faleceu em 1967 e foi sucedida por Mãezinha Iwintonã, Ondina Valério Pimentel. O jogo de búzios para definir a sucessão foi efetuado pelo professor Agenor. Em 1975 morreu mãe Ondina e, novamente com o jogo de búzios do Professor Agenor, foi escolhida, no dia 17 de junho de 1976, Mãe Stella Odé

Kaiodê, Maria Stella de Azevedo Santos, a atual mãe-de-santo.

No terreiro do Axé Opô Afonjá, que pela sua extensão e organização pode ser tomado como um modelo exemplar, existem dois espaços com características e funções diferentes: um espaço urbano, com construções de uso público e privado, e um espaço de mata que compreende as árvores e uma fonte. A parte urbana é constituída da seguinte maneira:

a) diversas casas dos orixás, sendo que cada orixá tem sua própria casa, exceto as divindades jejes, Omulu, Nanã e Oxumarê, que ocupam uma única casa, e a casa de Iá, que abriga também algumas outras divindades grúncis;

b) a casa de Oxalá que, além do quarto deste orixá e o das aiabás, contém os quartos em que os

iaôs são recolhidos, uma cozinha ritual (com uma ante-sala) e vários quartos para abrigar

algumas sacerdotisas nos dias de rituais e em outras ocasiões;

c) o barracão, que é o salão das danças públicas, e que foi reformado há pouco tempo, depois do tombamento do Axé pelo Patrimônio Histórico em dezembro do 2000;

d) um conjunto de casas residenciais para os iniciados que fazem parte do Axé e suas famílias; e) o Ilê Ibó Iku, a casa dos ancestrais, situado um pouco mais afastado e circundado por plantas e árvores, do qual ninguém pode se aproximar, a não ser os sacerdotes preparados para esses mistérios;

48 Entrevista com a ebômi Eugenia de Oxalá.

f) um museu do Axé, que Mãe Stella fez instituir em 13 de novembro de 1981. Sobre a construção do museu disse Mãe Stella:

"Eu quero fazer o possível para quando o africano, ou outra pessoa interessada em restabelecer a tradição ritual queto desejar informações aqui em casa, no nosso Axé, a encontre, uma vez que os cultos originários desta cidade ou nação foram cruelmente destruídos durante a guerra do Abomey em 1886, e nós aqui os preservamos. Oni Kowé50,

nós precisamos fazer o museu".

Nasceu então o Ilê Ohun Lailai, a "Casa das Coisas Antigas". O museu é formado por três salas repletas de objetos rituais do candomblé, fotografias das comidas e das principais folhas sagradas. As cadeiras e objetos pessoas das antigas mães-de-santo ocupam lugar de destaque. Numa sala interna estão expostas as antigas estatuetas dos santos católicos que mãe Stella tinha feito tirar dos quartos dos orixá — depois do famoso manifesto do 1983, contra o sincretismo51 —, e duas máscaras das Gueledés.

No terreiro foi construída a Escola Eugênia Ana dos Santos, com o papel de democratizar ações educacionais, oferecendo iguais oportunidades de ensino para todos os que desejam matricular-se no primeiro grau (1ª à 4ª série), mas preocupando-se com a preservação das tradições de origem africana. A escola é a realização de um dos sonho de mãe Aninha, exposto no estatuto da Sociedade Cruz Santa, conforme publicação no Diário Oficial de 4 de janeiro de 1969. Ela é freqüentada por cerca de 150 crianças da comunidade e do bairro do Retiro. Desde 1997 existe também um projeto de mobilização social, chamado Criança em Risco – Comunidade Afonjá, com várias oficinas.

Já o espaço da mata cobre quase dois terços do terreiro e é pleno de árvores, arbustos, ervas. Ali são feitos os rituais ligados à mata, freqüentada pelos sacerdotes de Ossaim e de duas outras divindades associadas à mata, Oxóssi e Ogum.

A comunidade do Axé abriga umas cem famílias que moram estavelmente no terreiro. Cerca de 300 pessoas freqüentam o terreiro durante as festas, sem contar as pessoas que procuram esporadicamente a casa para o jogo de búzios, rituais de limpeza e outros serviços mágico-religiosos.