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Conforme a pesquisa e o que já foi anteriormente exposto sobre a fenomenologia do transe antes da feitura, tentarei descrever o transe no seu "módulo corêutico-musical", que significa uma técnica protetora, num quadro mágico-religioso ou, ainda, "proteção da crise através de modelos de gestos, de sons, de figuras, de ritmos e de melodias" (Carpitella apud De Martino, 1994: 335). Mas, sobretudo, significa uma fidelidade cultural a tais modelos, que funcionam como instrumentos de evocação e de controle socialmente admitidos e operantes cada vez que se delineia a crise do "tarantismo". Essa análise me pareceu adaptável ao rito do candomblé onde se verifica situações bem parecidas com a interação do módulo corêutico- musical do tarantismo.

Crise131, ritmo, dança e resolução no transe estão intimamente ligados e em conexão orgânica, pois as sensações produzidas pela aproximação do orixá são superadas no transe e na dança. Há uma profunda reciprocidade entre os sons e o chamado dos deuses, porque a filha-de- santo pede os "ritmos" e, por outro lado, os ritmos podem desencadear uma crise latente e "chamar" definitivamente o santo.

Há rituais preliminares que devem ser realizados para que o transe ocorra no ritual noturno, como a matança de animais oferecidos em sacrifício ao orixá homenageado; o fato de a fiel ser filha do orixá para o qual foi organizada a festa; o fato da mesma ter sido iniciada a pouco tempo, etc. Toda essa preparação propicia a atmosfera na qual, provavelmente, irá acontecer a possessão.

As filhas-de-santo, todavia, têm medo do estado de santo, pois as sensações da chegada do orixá nem sempre são tranqüilas. Desenvolve-se um certo mal-estar que, ao provocar o medo de ser possuída, leva a fiel a uma certa expectativa, ampliada pelo fato de que todas as

sacerdotisas iniciadas devem continuar a dançar na roda. Enquanto isso, as abiãs são obrigadas a sair da roda, pois lhes seria perigosa a aproximação do orixá, uma vez que elas ainda não foram preparadas para isso. Saem, também, as sacerdotisas cujo orixá não tem nada a ver com o dono da festa, fato raro porque quase todos têm a ver um com o outro. Por outro lado, há as ebômis, mais velhas por idade "no santo", que têm menos possibilidade de caírem possuídas pelos seus orixás, pois a freqüência do transe diminui com a idade.

O medo do estado de santo é verdadeiramente muito grande, pois as sensações são dramáticas e nem sempre a "caída" é desejada. Conforme um nosso informante, no entanto, "se o

santo quer, ele te pega em qualquer lugar!".

Os módulos rítmicos são estritamente ligados aos corêuticos, como se os toques chamassem energicamente para a procura de uma "gestualidade" organizada ritmicamente. Assim, fica difícil diversificar as várias partes: danças, ritmos, cores, enfeites, roupas etc., pois tudo está interligado numa única semântica.

Se por acaso, como já disseram no Axé, "A gente canta, canta e o santo não vem!", pode ser que seja utilizado um dos instrumentos de fundamento, como o xere — chocalho feito de cabaça ou de cobre que se agita para Xangô — ou um tipo de campainha que, tocada perto da cabeça da iaô, provoca uma manifestação imediata, pois o som desses instrumentos atraem os orixás, porque lhes são agradáveis, sempre segundo as nossas informantes.

A função dessa campainha ficou clara para mim por ocasião de uma festa no Axé Aganju, em Lauro de Freitas, quando um pai-de-santo se aproximou com a campainha de uma filha-de- santo que se mantinha a rodopiar mas sem estar completamente possuída, e tocou perto de seu ouvido, e imediatamente, a moça "caiu" no santo.

No ritual público a música tem, portanto, a função evidente de chamar o orixá e assim promover o estado de santo. O conhecimento espiritual dessas cantigas e toque de fundamento é apreendido previamente durante a iniciação, em momentos especiais. Estas cantigas que obrigam baseiam-se numa tradição transmitida no terreiro, tendo cada casa de candomblé uma tradição própria.

Resumindo: há algumas cantigas que obrigam que têm efeito sobre todas as filhas-de- santo, independentemente de seu orixá, já outras agem sobre determinadas famílias de orixá como, por exemplo, uma cantiga entoada só nas festas de Oxalá com efeito restrito a suas filhas, ou outra para as filhas de Oxóssi, Oiá-iansã e as aiabás132 etc.

Mas além das cantigas que obrigam há também outras que têm um efeito mais individual em momentos chamados de "ensaios", que têm lugar antes da iniciação. Os alabês desenvolvem uma ampla exploração musical, junto à mãe-de-santo ou às mais velhas ebômis, utilizando todo o repertório das cantigas, procurando descobrir a cantiga na qual o corpo da iniciada responda e manifeste o seu orixá. Quando isso acontece, encontra-se o ritmo, a identidade mítica individual da nova sacerdotisa, que a acompanhará ao longo de toda a sua vida. Essas cantigas, porém, são diferentes das de rum, que também contam sobre o fundamento.

Essa "cantiga pessoal" exerce um grande poder sobre a filha-de-santo, por isso, ela deve guardar, zelosamente e em segredo, a identidade de tal canção, sendo essa a sua personalidade sonora mais profunda.

Então, podemos finalizar dizendo que o transe no ritual público do candomblé acontece em relação com as práticas rituais estabelecidas com antecedência, as quais se desenvolvem segundo um padrão tradicional. Conforme Bastide (1976: 117), o transe afro-americano é uma linguagem (motora e vocal) que tem um código interno, enquanto que para o Ocidente é a recusa de uma linguagem, é uma fuga da realidade.

Desse modo, os papéis desempenhados pela música assim que o transe acontece são os seguintes:

Cantigas que obrigam (aquelas de efeito geral),

Cantigas que obrigam pessoal (efeito individualizado), Instrumentos de fundamento.

Há também no repertório outras cantigas que mexem com o lado emocional e afetivo, como as:

Cantigas de fundamento, que, contando sobre as ligações míticas, chama um determinado orixá Cantiga de Oxalá e Iemanjá que são especiais porque ambos os orixás são vistos como pai e mãe

de todos os demais orixás. Essas cantigas produzem grande efeito emocional em todos os orixás e filhas e filhos-de-santo, pois diz-se no candomblé que nenhum orixá pode resistir ao apelo da

mãe ou do pai.

Concluo afirmando que, nesse contexto, a música não é um simples evento, mas é "música para ser". A música e o mundo estão presentes numa única semântica. A música tem um efeito desencadeador do transe no ritual público. Na África Ocidental, como no candomblé, o tambor está associado aos espíritos e mostra uma correspondência entre a energia espiritual e o ritmo.

C

APÍTULO

8:

A

DANÇA DAS AIABÁS E O CORPO COMO EXPERIÊNCIA SOCIAL E RITUAL