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Apagamento das Fronteiras Presencial/a Distância

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 159-164)

Com o avanço das tecnologias educacionais o que se observa, a cada dia, é a presença cada vez mais constante, no ensino presencial, de recursos até então próprios do ensino à distância. [...]. Acreditamos que num futuro próximo não tenhamos mais essa dicotomia de ensino à distância e presencial.

(FERREIRA; MOULIN, 2000, p.55) Conforme foi visto anteriormente, na Contemporaneidade não apenas cresce a velocidade dos deslocamentos e das transformações, mas também cada vez conta mais como forma de exercício de poder a capacidade de mudar de lugar. Essa capacidade de mudar de lugar deve ser entendida no sentido amplo, incluindo não apenas os deslocamentos do corpo físico, como também a capacidade de encontrar distintos grupos, de ter diversas fontes de informação, de poder acompanhar, ou melhor, antecipar-se às transformações.

Quando se assume que o papel da educação é proporcionar ao sujeito melhores oportunidades para viver na sociedade atual, a definição dos pressupostos para uma educação de qualidade só será possível considerando o contexto social. De acordo com a seção anterior, os artigos que foram analisados para essa pesquisa parecem reconhecer a importância de promover a mobilidade dos envolvidos nos processos educacionais, ainda que não cheguem a formalizar esse conceito ou a tecer discussões mais aprofundadas sobre o porquê dessa valorização. As conexões entre as narrativas relativas à promoção da mobilidade pela EaD e aquilo que vem acontecendo nas sociedades contemporâneas foram sinalizadas nas minhas análises.

Nesse mesmo conjunto de artigos, encontrei diversas vezes a idéia de que em breve não existirá mais a distinção entre ensino presencial e a distância. Parece que a sala de aula já não basta para proporcionar uma educação adequada às necessidades contemporâneas. Por maiores sejam os esforços que se façam, ela permanece fechada em si mesma, amarrando os alunos a uma territorialidade que os coloca à margem dos movimentos que não cessam de acontecer. Nesse sentido, os artigos apontam para uma disseminação da realização de atividades a distância, que tornaria sem sentido falar em educação presencial ou a distância,

pois essas modalidades estariam mescladas conforme a conveniência de cada situação educacional.

Conforme Hardt e Negri (2002), a emergência do Império e a passagem para a Contemporaneidade estão esvaecendo a distinção entre dentro e fora. Na Modernidade foram traçadas rígidas fronteiras entre o interior e o exterior. Essas fronteiras, em geral, serviam para separar a ordem e a civilidade da desordem e da natureza. As fronteiras dos Estados separavam a ordem civil do caos natural. Essa noção, segundo os autores, se estende para a psicologia, que entende que a mente humana internaliza uma racionalidade que proporciona ao indivíduo uma soberania em relação aos impulsos vindos da natureza. ”O processo de modernização, em todos esses variados contextos, é a internalização do fora, isto é, o ato de civilizar a natureza“ (HARDT; NEGRI, 2002, p.207). Entendo que essa mesma noção possa ser utilizada para pensarmos a sala de aula. Na escola moderna havia rígidas fronteiras isolando a sala de aula do seu exterior. Ela era compreendida como o lugar da racionalidade onde as crianças eram civilizadas, ou seja, eram libertas do domínio da selvageria natural. “Fique estabelecido, pois, que a todos os que nasceram homens a educação é necessária, para que sejam homens e não animais ferozes” (COMENIUS, 2002, p.76).

Para Jameson (apud HARDT; NEGRI, 2002), a pós-modernidade se caracteriza pelo apagamento da noção de natureza como algo oposto à racionalidade e à civilidade. O binarismo natureza/sociedade está sendo desconstruído na Contemporaneidade. As fronteiras que segregavam o dentro e o fora estão progressivamente se apagando. “A moderna dialética do dentro e do fora foi substituída por um jogo de graus e intensidades” (HARDT; NEGRI, 2002, p.207). Isso nos permite pensar o que estaria acontecendo com as paredes da sala de aula. A noção de apagamento da distinção entre ensino presencial e a distância que encontramos repetidas vezes nos artigos analisados corrobora a idéia de borramento dessas fronteiras. Os excertos abaixo são alguns exemplos.

Nesse sentido compreendemos a educação a distância como uma das modalidades de ensino-aprendizagem, possibilitada pela mediação dos suportes tecnológicos digitais e de rede, seja ela inserida em sistemas de ensino presencial, mistos ou completamente realizados por meio da distância física (NOVA; ALVES, 2002, p.55).

O uso de tecnologias educacionais mediadas pelo ambiente informatizado, como suporte às aulas convencionais e para ensino a distância, tem sido, com freqüência citado como ferramenta para enfrentar as necessidades de atualização permanente (TIMM; SCHNAID; AMORETTI, 2003, p.43).

Daqui há alguns anos, provavelmente, não mais será necessário discutir tanto sobre se o ensino-aprendizagem é presencial, semi-presencial ou a distância. Discutiremos que educação queremos e, principalmente, o que estamos fazendo para alcançá-la num padrão de qualidade desejável (ROMISZOWSKI, 2004) A percepção de uma sala de aula que já não é fechada em si mesma aparecerá em outras categorias de análise que serão trabalhadas posteriormente. A escolha individualizada de quando e onde estudar e o pressuposto que o aluno poderá buscar informações de forma autônoma, independente das indicações do professor, são outras sinalizações da permeabilidade que os muros escolares estão apresentando.

Entretanto, a noção de uma sala de aula isolada, que divide o mundo em dentro e fora, pode ser problematizada mesmo em relação à escola moderna. Em sistemas educacionais tradicionais sempre foi esperado que os alunos realizassem tarefas sem a presença do professor. É comum que ele prescreva atividades para serem realizadas em horário extraclasse, sem a sua presença: exercícios, pesquisas, leituras. É também fora da sala de aula que os alunos costumam estudar para as provas. Todas essas tarefas podem ser consideradas atividades a distância, o que faria com que a maioria dos processos educacionais acontecesse numa modalidade semipresencial. Entretanto, só se torna possível conceber a sala de aula como permeável e com forte comunicação com seu exterior dentro da ordem do discurso contemporânea, mostrando que muitas vezes o que mudam não são as práticas, mas os sentidos dados às mesmas.

Tipicamente, espera-se que um aluno de ensino médio realize duas ou três horas de estudo extra por dia, seja de trabalho individual ou em grupo. Portanto, no total (análise a nível "macro"), um currículo de uma escola secundária convencional é, aproximadamente, dois terços "presencial" e um terço "não presencial". [...]. Se agora considerarmos um típico curso universitário, a proporção de atividades presenciais vai para mais baixo ainda (ROMISZOWSKI, 2002).

Ou seja, as atividades a distância não são uma novidade em si. Entretanto, elas não eram nomeadas dessa forma, pois no pensamento moderno não cabia o entendimento de uma educação que não estivesse delimitada por fronteiras espaço-temporais. Na escola moderna, a educação era o que acontecia entre as paredes da sala, sendo o restante nomeado como “tema de casa”, “atividades complementares” ou outro termo semelhante que caracterizasse essas atividades como secundárias. O novo não são as atividades realizadas fora da sala de aula e do horário escolar, mas o fato de considerar essas atividades como atividades a distância, numa transformação de significados intrinsecamente relacionada às transformações contemporâneas dos significados espaço-temporais.

Essas atividades extraclasse dos cursos presenciais estão gradativamente migrando para o ciberespaço e aí se percebe uma inovação: enquanto tradicionalmente as atividades a distância eram realizadas sem contato com professor e com o restante da turma, as atividades mediadas pela web prolongam o convívio para além da sala de aula. Ferramentas utilizadas em EaD estão sendo tomadas pelos professores como recursos auxiliares de cursos presenciais.

Ainda que [os ambientes de aprendizagem] tenham sido inicialmente desenvolvidos para cursos não-presenciais, estes softwares são utilizados como ferramenta de apoio em cursos presenciais (TANNOUS; RODRIGUES, 2002, tradução minha).

Os computadores e a Internet podem oferecer um suporte bastante adequado à aprendizagem enquanto processo social, seja como suporte a cursos presenciais, seja como ferramenta para cursos não-presenciais (AMORIM et al., 2002, p.10). O uso de ambientes de aprendizagem como apoio aos cursos presenciais modifica a relação que era estabelecida por professores e alunos com as atividades extraclasse. As tarefas realizadas em ambientes de aprendizagem deixam registros que podem ser controlados com muito maior intensidade. O professor já não tem apenas o tempo da aula para controlar o aluno, pois agora poderá lhes enviar mensagens e verificar sua produção a qualquer hora. Os alunos, por outro lado, também podem exercer maior controle sobre o professor, pois poderão utilizar os mesmos canais de comunicação para lançar suas dúvidas e pedir auxílio. O uso de ferramentas de EaD na educação presencial aumenta a captura do tempo dos sujeitos e potencializa o controle. A aula vai para além dos muros e para além dos quadros de horários. Essa dissolução dos limites espaço-temporais é uma característica das sociedades contemporâneas, chamadas por Deleuze (1992) de sociedades de controle. “Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar [...], enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada” (DELEUZE, 1992, p.221). Passamos de uma quitação aparente para uma moratória ilimitada. A obrigação mútua entre professores e alunos já não está confinada ao tempo e ao local da aula.

As narrativas sobre o apagamento da fronteiras entre educação a distância e presencial não se apóiam somente na derrubada das fronteiras espaciais e temporais, mas na própria reconstrução do significado de distante.

O resultado é que enquanto vemos muitos cursos tradicionais sustentando-se única e exclusivamente na proximidade natural de suas aulas presenciais, a EVI [Educação Virtual Interativa] não pára de evoluir e de criar condições para a efetiva redução de distâncias (TORI, 2002).

Falar em Educação à Distância hoje não passa de uma metáfora. O conceito de distância deve ser relativizado. Trata-se de educação flexível. A distância pode ser o colega da carteira escolar ao lado, na sala vizinha, ou o colega interconectado, seja no Alasca, seja no interior do Mato Grosso, ou nas barrancas do São Francisco (FORMIGA, 2003).

Em Educação à Distância foi-se destilando, ao longo dos anos, um conjunto de técnicas e abordagens metodológicas que, com uso de tecnologias da informação e da comunicação, podem contribuir para a redução da distância transacional e a promoção da proximidade afetiva, relacional e comunicacional tão necessária à aprendizagem. E isto pode, agora, retornar por sobre a prática educativa presencial, permitindo que outras proximidades possam ser promovidas e intensificadas em ambientes de proximidade física, e mais elevados níveis de qualidade possam ser alcançados (AZEVEDO, 2002),

Segundo Bauman (1999), a distância não pode ser tomada como um dado objetivo, mas como uma construção social. A tecnologia de informação e de comunicação, ao mesmo tempo em que pode aproximar pessoas fisicamente distantes, permitindo uma comunicação intensa através de recursos multimídia que podem transportar mensagens, fotografias, filmes, músicas e até mesmo a imagem dos comunicantes captadas através de uma câmera (supõe-se que em algum tempo também será possível transmitir cheios), dando uma forte sensação de proximidade e intimidade, também pode afastar indivíduos fisicamente próximos. Aqueles que podem viver em casas seguras, cercados de recursos tecnológicos, bem pouco contato travam com seu entorno. O poder de consumir traz consigo a desterritorialização dos sujeitos, fazendo com que seus relacionamentos sejam muito fracamente dependentes de sua localização ou, melhor dizendo, de seu posicionamento. Os sujeitos ligados ao mundo digital espalham suas conexões em redes independentes da espacialidade.

O apagamento das fronteiras entre educação presencial e a distância parece já estar em curso, principalmente no âmbito das instituições de ensino superior, tendo em vista que os cursos presenciais cada vez mais utilizam atividades a distância como formas de complementar as atividades realizadas face-a-face e, em alguns casos, para substituir alguns dos encontros que aconteceriam na sala de aula. O próprio Ministério da Educação contribuiu nesse processo, ao criar a Portaria nº 2.253, em 2001, permitindo que 20% da carga horária dos cursos de graduação presenciais fossem ministradas na modalidade a distância, desde que mediada por tecnologias de informação e comunicação.

A noção de que a EaD está promovendo a mobilidade dos sujeitos e o progressivo apagamento dos limites entre educação presencial e a distância estão entrelaçados com uma representação de desterritorialização das instituições educacionais.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 159-164)