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O Corpo Pós-Orgânico

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 95-102)

A ciência fáustica não conhece limites e cinicamente coloca em dúvida todos preceitos tradicionais. A própria morte já não parece ser um limite intransponível. A crença na vida eterna faz parte dos planos contemporâneos. Porém, Deus não é chamado a participar. E a imortalidade pode incluir o corpo. O Movimento Raeliano Internacional, reconhecido oficialmente na França como uma seita religiosa (INFOSECTES, 2005), acredita que a vida eterna prometida pela religião virá por meio de técnicas de clonagem. Os raelianos não crêem na existência de Deus, mas creditam a vida na Terra a uma obra de extraterrestres. O próprio Cristo teria vindo de outro planeta com a missão de preparar a Humanidade. Esse movimento, que já conta com mais de 20.000 participantes ao redor do mundo, financia pesquisas para que um dia seja possível a criação de clones adultos, para os quais se possa transferir a memória e a personalidade (LE BRETON, 2003).

O movimento raeliano pode ser identificado com o que se tem chamado de transumanismo. Segundo Bostrom (2005), doutor em filosofia, professor da Universidade de Yale e um dos fundadores da World Transhumanist Association, o transumanismo é a crença na possibilidade de expansão das capacidades físicas e mentais do homem pelo uso da tecnologia, onde se incluem máquinas, nanotecnologia, técnicas biogenéticas e drogas inteligentes (smart drugs)46. Com o uso desses artefatos seriam criadas pessoas com um

desenvolvimento sem precedentes, potencialmente imortais. Esses seres seriam parcialmente biológicos, porém teriam suas personalidades transferidas para equipamentos mais duráveis e potentes que o próprio corpo. Outro movimento ligado ao transumanismo é o Extropy Institute (2005), criado pelo também doutor em filosofia Max More. Seus adeptos encontram- se, sobretudo, no Vale do Silício. Extropia é um termo criado pelos fundadores do

46 As chamadas smart drugs, também conhecidas como nootrópicos (do grego noo, mente, e tropos,

modificar), são substâncias químicas que têm a finalidade de aumentar capacidades mentais, tornando a memória mais aguçada, o pensamento mais rápido, melhorando a capacidade de concentração e aprendizagem.

movimento para expressar a inteligência e vitalidade humana, sendo o extropianismo um movimento para maximizar a extropia e vencer a entropia. Esse instituto também financia pesquisas, porém não se atém apenas à clonagem. Investe em todo tipo de tecnologia que possa contribuir para atingir seu objetivo.

Assim como para Stelarc, os adeptos do transumanismo consideram que máquinas acopladas ao corpo, ligadas à rede neural humana e comandadas pelo córtex cerebral, constituem uma das formas mais promissoras para que se ultrapasse a condição humana. O corpo e a mente humanos são maravilhosos, mas estão longe da perfeição. A tecnociência colaborará para alcançarmos um desejado estado de excelência. Diversos pesquisadores têm realizado experiências neste sentido, desenvolvendo aquilo que se têm chamado próteses neurais. Seus propósitos iniciais estavam relacionados com a substituição de membros perdidos, mas muitos trabalhos atuais estão sendo desenvolvidos no sentido de incrementar as capacidades do corpo. Outra área que está gerando grande expectativa entre os adeptos do transumanismo é a nanotecnologia. Para o cientista K. E. Drexler, em alguns anos seremos capazes de desenvolver máquinas microscópicas, capazes de realizarem uma contínua reparação celular, o que, no limite, poderia significar a imortalidade (DERY, 1998).

A Contemporaneidade, marcada pela noção de um corpo obsoleto, empreende grandes esforços para enfrentar isso que se tem constituído como um problema. Num aparente paradoxo, nunca o homem utilizou tão pouco as capacidades de seu corpo, mas também jamais teve tamanha preocupação com sua manutenção. As técnicas que permitem um upgrade contínuo do corpo proliferam, mas, simultaneamente, questiona-se a necessidade de ainda se ter um corpo. Os esforços para que se mantenha o corpo atualizado e são ocupam cada vez mais o tempo e os recursos dos indivíduos. Nesse contexto, surge o sonho de uma Humanidade sem corpo. A perda do corpo está presente nos desvarios da literatura ciberpunk, mas também nas idéias de cientistas e pesquisadores. Esse tipo de pensamento está fundado numa dicotomia corpo-mente. O homem consiste no conteúdo de sua mente e pode ser reduzido a um conjunto de informações digitalizáveis.

Provavelmente o primeiro a escrever sobre esse tema da perda do corpo e da dissolução da mente num ambiente virtual tenha sido o matemático Norbert Wiener, em 1948, na obra Cybernetics. O livro não apenas prevê o surgimento de ciborgues e o desenvolvimento da informática, mas também trata da transmutação dos organismos em informação. Partindo da superioridade do espírito sobre o corpo, o autor toma esse último como supérfluo e celebra a possibilidade de armazenar as informações que caracterizam o indivíduo fora do organismo (LE BRETON, 2003).

Desde a década de 80, diversos autores pertencentes ao movimento ciberpunk vêm demonstrando sua aversão pelo corpo, uma carne que impede sua perfeita integração com o mundo digital. Esses escritores freqüentemente apresentam em seus romances situações em que a mente separa-se do corpo: o uso de computadores, no qual a interferência do físico é mínima, gera um desprezo pela materialidade orgânica. A matéria limita o acesso do indivíduo aos ambientes tecnológicos, fazendo nascer um ódio ao corpo e uma fantasia de livrar-se dele e viver para sempre dentro do ciberespaço. Reconhecer que o funcionamento da mente está condicionado ao uso do corpo, que se desgasta e tem uma obsolescência programada, parece-lhes inaceitável. A cisão corpo/mente da literatura ciberpunk é muito semelhante à cisão cristã corpo/alma. Em ambos os casos o corpo é algo pesado, que impede o desenvolvimento daquilo que realmente importa. O corpo é um instrumento a ser descartado para tornar possível a “verdadeira vida”. “A oposição entre a carne mortal e pesada por um lado e o corpo etéreo da informação – aquele desencarnado – por outro é um dos dualismos fundamentais da cibercultura” (DERY, 1998, p.272). Maníacos da internet e hackers sentem-se presos a um corpo inútil, que impede a relação completa com o ciberespaço. O mundo material é obsoleto e opressivo. Abandoná-lo e trocá-lo pelo ciberespaço é o desejo, frustrado pela carne pesada.

O maior clássico da literatura ciberpunk é o romance Neuromance, de Gibson (2005). Nesse livro, onde foi criado o termo ciberespaço, é narrada a história de Case, um hacker que foi expulso da Matriz (o mundo digital) por surrupiar dados de seus empregadores. Na história, cada centímetro quadrado da superfície da Terra pertence a uma corporação, os olhos dos empregados são cultivados em laboratório e traduzem não a visão de seu proprietário, mas da empresa. Esses mesmos empregados têm tatuado o logotipo da empresa sobre sua pele. O corpo é escravizado. A redenção está no ciberespaço. O protagonista tem um corpo literalmente tóxico. Por haver praticado um roubo, injetaram-lhe uma toxina que o impede de se conectar ao ciberespaço. Ele, que fora um respeitado cowboy do ciberespaço, estava preso à carne, condenado a uma espécie de danação. Em sua aventura, Case conta com a ajuda de Molly, uma prostituta cibernética, com cérebro programado. Ambos são profundamente apolíticos e só desejam obedecer às ordens e receber sua recompensa, no caso de Case um novo pâncreas e um novo console ciberespacial, que permitirá que escape ao inferno orgânico. Trabalhando para uma organização secreta que precisa de seus conhecimentos em Inteligência Artificial, consegue reconquistar o direito de conectar-se, o que representa uma espécie de redenção que o liberta do corpo.

O tema da perda do corpo para viver no espaço cibernético aparece em outras obras de Gibson e também em livros de outros autores ciberpunk, entre eles Pat Cadigan (DERY, 1998). “A solução final para o problema mente/corpo, segundo a lógica dominante na cibercultura, é a redução da consciência a sua pura quintessência” (DERY, 1998, p.329). Esses romances mostram um indivíduo com uma consciência pura e transcendente, capaz de sobreviver ao desaparecimento do corpo. Basta achar um suporte tecnológico capaz de substituir sua materialidade. A alma existe ...

A trilogia cinematográfica Matrix (o nome é uma clara referência a Neuromancer) anda na contramão das idéias ciberpunks. Nesses três filmes, os indivíduos encontram-se em estado letárgico e aquilo que pensam ser a vida não passa de uma simulação computacional. O protagonista Neo tem como missão destruir Matrix e libertar a Humanidade. Nessa obra o ciberespaço não é o Empíreo, mas uma supressão da vida. Não liberta, mas mantém sob controle.

Mas não é apenas na literatura que projetos de uma vida sem corpo encontram suporte. Saltando das páginas de ficção científica, eles aparecem nas pesquisas de renomados cientistas filiados a instituições de reconhecido mérito acadêmico ou a grandes empresas que desenvolvem projetos na área de tecnologia e inovação. São projetos onde as máquinas não serão mais utilizadas para potencializar as capacidades do corpo, mas para definitivamente suprimi-lo. Para esses pesquisadores e seus apoiadores, a vida de um homem resume-se a sua atividade cerebral. Livrar-se do corpo significa manter sua identidade, deixando para trás doenças, envelhecimento e morte. O corpo orgânico tornou-se o lugar do mal e a saúde só parece possível fora dele. O corpo é a própria doença. Conforme Gerald Sussman (apud LE BRETON, 2003, p.215), professor no MIT e pesquisador na área de nanotecnologias, “se você puder fazer uma máquina que contenha seu espírito, então a máquina é você mesmo”. Sussman teme pertencer à última geração que irá morrer. Antevê que daqui a alguns anos todos alcançarão a imortalidade digital.

As técnicas que permitiriam copiar a mente para uma máquina vêm sendo chamadas de uploading47, mostrando que as máquinas são consideradas superiores ao cérebro orgânico.

Projetando o futuro, já são antevistas situações bizarras. Marvin Minsky (apud LE BRETON, 2003, p.215), também professor no MIT e pesquisador na área de inteligência artificial, prevê que possamos fazer várias cópias de nós mesmos e viver várias vidas simultâneas. Se hoje os

47 Os termos downloading e uploading são utilizados no campo da informática para significar,

respectivamente, a cópia de arquivos de um computador central para um computador pessoal e a cópia do computador pessoal para o computador central.

infinitos virtuais que se abrem a cada instante na vida de um sujeito se atualizam de forma única, as múltiplas vidas abrem possibilidade para atualizações também diversas. O sujeito estaria materialmente fragmentado. E nestes múltiplos viveres, em que a morte já não seria uma sombra a nos seguir, a infelicidade também poderia ser suprimida, deletando-se aquela vida na qual houvesse sofrimento.

Entre os diversos pesquisadores que vêm trabalhando neste tipo de projeto, o mais conhecido é Hans Moravec, diretor do Laboratório de Robótica da Universidade de Carnegie-Mellon, em Pittsburg. Num artigo, escrito em 1997, preconizava que até 2020 haveria computadores com capacidade de simular o funcionamento do cérebro a preços acessíveis (MORAVEC, 2005). Segundo esse autor, estamos entrando na era “pós-biológica”, quando o homem será substituído por robôs pensantes. E assistiremos, finalmente, à derrota do DNA, o que fará com que a evolução deixe de ser biológica, para tornar-se tecnológica. A morte será eternamente evitada conservando-se backups atualizados de nossa vida. O máximo que aconteceria, em caso de dano no sistema, seria perdermos informações equivalentes a alguns poucos dias de existência. Para Moravec, o indivíduo é o conjunto de seus processos mentais, sendo o corpo um mero suporte mecânico, substituível por outros componentes. “Se o processo é preservado, eu sou preservado. O resto não passa de geléia” (MORAVEC apud LE BRETON, 2003, p.219)48.

A transferência das informações cerebrais para uma máquina, resultando numa vida eterna simulada em ambientes gráficos, parece ser uma das mais delirantes utopias contemporâneas. De acordo com o que já foi analisado no capítulo 3, o ciberespaço está sendo associado a um novo Empíreo, onde a alma digitalizada poderia viver para toda eternidade.

Conforme já comentei anteriormente, estamos vivendo na era da tecno-religião, em que assistimos à emergência de uma religião sem Deus, estruturada sobre uma ciência transformada em objeto místico. Isso vem sendo chamado por alguns autores de tecnognose49, uma versão profana do pensamento gnóstico, na qual o conhecimento do

48 Apesar de hoje nos parecer uma crença quase mística a possibilidade de vida sem corpo, ficando em

suspenso a questão de como seria possível a experiência frente à supressão dos sentidos, as pesquisas seguem. Seu sucesso ou fracasso só será conhecido dentro de algumas décadas. Entretanto, diversos argumentos são levantados contra a possibilidade de uma vida digital. A maioria deles diz respeito à impossibilidade de pensamento e cognição sem o corpo, rejeitando o idealismo dualista. Para uma discussão do tema ver Sibilia (2002), em especial o sub-capítulo O Espírito na Carne: a teimosia da organicidade.

49 A gnose é uma forma de manifestação religiosa, caracterizada pela crença que o princípio divino

divino é substituído por um feixe de informações (FELINTO, 2005). Como vimos, se para os raelianos a clonagem é a forma de suprimir a morte, para uma outra corrente do pensamento, que não cessa de ganhar adeptos, o paraíso é digital. Segundo essa concepção, no ciberespaço seremos libertados daquilo que Minsky (apud WERTHEIM, 2001, p.14)., chamou com desdém de “a maldita mixórdia da matéria orgânica”. Esse sentimento de religiosidade vem sendo expresso nos discursos de alguns dos mais influentes nomes da cultura cibernética (WERTHEIM, 2001). Num único movimento, essa nova religiosidade sem Deus, suprime o corpo, substituindo-o por um conjunto de dados, e funda um Empíreo gravado no silício.

Na Contemporaneidade, o corpo cada vez mais se coloca como um problema. Seja pela obrigação de um permanente investimento para sua melhoria, seja por um desprezo pela sua carne. Os diversos artefatos de comunicação do mundo contemporâneo tornam a presença simultânea em um mesmo local cada vez menos necessária para a comunicação e a interação com outros indivíduos. A materialidade da carne que se impunha brutalmente ao outro nos espaços públicos da pólis moderna é cada vez mais volatilizada pelos telefonemas, pelas mensagens de texto e de voz, pelos comunicadores instantâneos. A distância entre os corpos muitas vezes parece a melhor forma de viver numa sociedade de exacerbado individualismo.

Um conto de Ballard (apud LE BRETON, 2003) narra uma história que se passa num futuro próximo, em que todas as interações sociais se realizam através de telas de computadores. O contato físico é terminantemente proibido. A procriação é realizada por meio de técnicas de fertilização in vitro e os indivíduos se encontram utilizando câmeras. A família se reúne para jantar com cada um se posicionando em frente a sua tela, pais e filhos brincam através da troca de imagens, médicos examinam e operam pacientes sem nunca tocá-los. Os indivíduos estão isolados materialmente, mas nunca estão sós, pois podem contatar uma multidão de amigos instantaneamente. Entretanto, um dia o protagonista decide conhecer sua mulher e seus filhos presencialmente. Uma idéia completamente despropositada para aquele contexto. O primeiro encontro do casal é um fracasso: eles não conseguem olhar-se sem a transfiguração da imagem digital. Os corpos de carne lhes parecem repulsivos. A segunda tentativa é ainda mais trágica: um encontro entre pais e filhos acaba na dilaceração mútua dos corpos. Todos morrem ao final. As interações presenciais são potencialmente letais.

espiritual. A prática gnóstica é descrita como uma ciência da espiritualidade, capaz de promover a saúde espiritual (FELINTO, 2005).

Esse conto é uma alegoria das relações desencarnadas que se tornam cada vez mais intensas e que vêm ocupando um lugar cada vez mais destacado no mundo contemporâneo. A distância entre os corpos acentua a volatilidade e multiplica as possibilidades de fuga. Comunicações e interações sem a co-presença dos corpos minimizam compromissos e transformam as relações duradouras em conexões sempre prontas a serem interrompidas. O corpo, seja qual for seu futuro, provavelmente será cada vez menos tangível.

6 NASCIMENTO DO UNIVERSO DIGITAL

Essa é a nova maneira de trabalhar e se manter em contato. (Menu de instalação do Windows XP) A cada sociedade, seu suporte material, sua maquinaria. Nas sociedades de soberania, as máquinas simples (alavancas, roldanas) baseadas na mecânica clássica. Nas sociedades de disciplina, máquinas energéticas, criadas a partir da segunda lei da termodinâmica. Nas sociedades de controle, a informática, filha da microeletrônica, as biotecnologias e as nanotecnologias. Máquinas minúsculas, invisíveis e limpas.

Desde a construção do primeiro computador digital – o Eniac, em 1946 – até os dias de hoje, muitas mudanças aconteceram. Inicialmente, uma máquina gigantesca, de custo extremamente elevado, com potencialidades muito reduzidas em comparação com as atuais, apenas manipulável por pessoas altamente qualificadas e empregada nas análises de grandes projetos militares e aeroespaciais. Em 2005, populares como um eletrodoméstico, acessório indispensável em moradias de classe média, com uma velocidade inacreditável para aqueles cientistas pioneiros, operada até por crianças para... para tantas finalidades que fica difícil enumerar!Segundo os capítulos anteriores, o advento da informática e a criação da internet constituem-se em condições que tornaram possível algumas das mudanças que estamos vivendo na Contemporaneidade. Em especial, o uso da internet está articulado com profundas transformações na percepção espaço-temporal. O acesso instantâneo de informações em qualquer lugar do mundo e a possibilidade de comunicar-se com sujeitos que estão do outro lado do planeta e a quem nunca vimos estão acentuando a compressão espaço-temporal e alterando nossa noção de simultaneidade. Os avanços da informática também estão entrelaçados com os mecanismos de controle e com a biopolítica. Muitos acreditam que o corpo será consertado ou desmaterializado através de dispositivos computacionais.

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