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Os Mundos Medievais

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 32-35)

Os mundos feudais eram pequenos, finitos e cercados de mistério. A percepção do espaço durante o Feudalismo estava bastante limitada à idéia do lugar, compreendido como uma porção territorial demarcada por fronteiras de forma aproximada e fragmentado geograficamente. O espaço exterior era de difícil apreensão e povoado por seres misteriosos. Podemos falar na existência de diversos mundos medievais, já que na época um mundo unificado não parecia fazer sentido. A representação do lugar era fortemente sensorial, havendo uma fraca distinção da representação de tempo. No lugar eram cumpridas as

rotinas da vida, ao longo de um tempo inapreensível e incomensurável, marcado pelos ritmos individuais (HARVEY, 2001).

Na Idade Média o significado de espaço estava muito distante daquele que tomaria modernamente, ou seja, um espaço contínuo tridimensional. A concepção medieval de espaço era ainda embasada pelo pensamento aristotélico. Central a essa abordagem era o que Wertheim (2001) chama de “horror ao vácuo”. Para Aristóteles, a natureza não permitiria a existência daquilo que ele chamava volumes vazios e que hoje chamaríamos espaços vazios.

Logo, se não existe diferença de seu lugar, por que deveríamos assumir um lugar para os corpos acima de seu volume [...]? Devemos ter claro pelo estudo das coisas móveis que tipo de coisa é o vazio. Entretanto, ele não é encontrado em nenhum lugar do mundo […]. Está claro, então, a partir dessas considerações, que não existe o vazio (ARISTÓTELES, 2006, tradução minha).

A partir dessas hipóteses, ele concluiu que o espaço não poderia ter volume, resultando numa proposição que hoje nos soa bastante estranha: “o espaço é a superfície que envolve o corpo” (ARISTÓTELES, 2006, tradução minha). Essa concepção bidimensional do espaço, junto com um sentimento religioso que procurava invocar o mundo espiritual como um mundo sem peso, produziu uma pintura que não tinha interesse em representar o mundo tridimensionalmente. As pinturas chapadas e icônicas dos pintores góticos e bizantinos não tinham essas características por desconhecimento da técnica da perspectiva, mas pelos significados produzidos pela cultura da época. “Esses artistas anteriores não pintavam num estilo icônico chapado por ignorância, simplesmente não estavam interessados em retratar o mundo físico tridimensional, concreto; visavam a algo inteiramente diferente” (WERTHEIM, 2001, p.63). A pintura privilegiava temas do cristianismo e tinha como principal objetivo não uma representação que simulasse o mundo físico, mas que enaltecesse o mundo do espírito. A proporção entre as figuras não obedecia a suas dimensões geométricas, mas estava baseada numa espécie de hierarquia espiritual, sendo representados com maior tamanho aqueles que se consideravam mais próximos de Deus. A arte tinha um caráter fundamentalmente simbólico. Também os mapas da época refletem uma percepção sensorializada e bidimensional do espaço, sendo desenhados de modo a dar a impressão de mostrar o que o viajante veria ao se deslocar (HARVEY, 2001). Não eram representados objetos fixos, a partir de um ponto de observação privilegiado, mas deslocamentos. Podemos perceber aí como os significados de espaço e tempo estavam enredados entre si na Idade Média. Dessa forma, aquilo que muitas vezes tem sido interpretado como uma pintura rudimentar e com carência de recursos técnicos é apenas

uma outra forma de representar e compreender o mundo, distinta daquela que hoje entendemos como “mais fiel à realidade”. Ou seja, o sentido do que seja a realidade foi radicalmente modificado na passagem do pensamento medieval para o pensamento moderno. A realidade medieval em pouco se assemelhava à realidade moderna.

Segundo Wertheim (2001), as narrativas de Dante Alighieri na Divina Comédia, escrita no início do século XIV, mostram as representações medievais dos diferentes mundos e de sua exterioridade misteriosa. O espaço medieval era dividido entre o espaço do corpo, aquele onde vivemos, e o espaço da alma, para onde iremos após a morte. O espaço da alma era habitado por anjos e demônios e fazia parte da realidade medieval, sendo até mesmo considerado que no espaço da alma estaria a realidade primária, pois era por esse mundo que se devia orientar a vida. O espaço imaterial da alma é divido em três regiões distintas: Inferno, Purgatório e Céu ou Empíreo.

Os medievais, com seu cosmo espiritualmente graduado e seu dualismo metafísico, tinham uma concepção de que diferentes níveis de realidade exigem domínios espaciais diferentes: uma realidade multiforme exige uma concepção multiforme do espaço. Corpo e alma requerem, cada um, seu próprio meio espacial. (WERTHEIM, 2001, p.97)

O florentino Dante Alighieri realizou a mais espetacular das viagens medievais, atingindo os confins do universo e retornando. A epopéia A Divina Comédia (ALIGHIERI, 2002) mostra a representação do cosmo medieval. Nessa obra, Dante, guiado por Virgílio, percorre as três regiões do espaço da alma. O Inferno é localizado no interior da Terra, na região das trevas e o mais afastado possível da posição divina. O Inferno de Dante não arde no fogo, é frio e cheio de gelo. Já o Empíreo (ou Céu) estava no topo do cosmo medieval, região iluminada, cuja luz se intensificava na direção de Deus, ocupante do mais alto dos lugares. O Purgatório era um lugar de difícil representação, havendo discordância entre os sábios da época nesse ponto. Dante o coloca como uma montanha muito alta, que une a Terra ao Empíreo.

A noção de um espaço bidimensional e as representações pictórias chapadas e sem profundidade sofrem as primeiras fissuras na mesma época em que foi escrita a Divina Comédia. Nos primeiros anos do século XIV, Giotto pintou na Capela Arena, em Pádua, imagens com efeitos de tridimensionalidade, de modo a dar ao observador a impressão de estar olhando para santos efetivamente presentes. Essas imagens sinalizam as profundas mudanças que iriam acontecer nas representações de espaço e tempo e, por conseguinte, na própria cultura (WERTHEIM, 2001), estando entre as primeiras manifestações de uma nova

forma de pensar o espaço e o tempo, que iria se consolidar nas representações científicas da Modernidade.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 32-35)