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Ciberespaço ou o Novo Empíreo

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 52-60)

No começo eram as redes e essas redes cresceram lentamente. Mas seu crescimento foi se acelerando, até resultar numa espécie de big bang digital. E dessa explosão digital emergiu um universo paralelo de dados e interações. Essas redes, hoje unificadas como a popular internet16, ultrapassam em muito sua concepção original de ferramenta para

compartilhamento de dados. Ao tornar-se um veículo de comunicação entre sujeitos fisicamente distantes, configurou-se como um espaço de convivência. Espaço que vem sendo chamado de ciberespaço, termo criado por William Gibson (2005)17 em seu romance

Neuromancer, publicado originalmente em 1984. Nessa obra, o ciberespaço é uma cidade onde os bancos de dados de grandes companhias são blocos de cores e formas diversas, conformando uma paisagem urbana. Os hackers18 se movem nesse cenário e são chamados

16 A formação da internet é abordada no capítulo 6.

17 Gibson é um dos precursores do gênero literário conhecido como ciberpunk, um subgênero da

ficção científica, que se caracteriza por histórias cujo cenário é a relação do homem com as tecnologias digitais.

18 O termo hacker indica alguém interessado em ter conhecimentos cada vez mais profundos sobre o

funcionamento das redes e, freqüentemente, encara como desafio a quebra do sigilo dos sistemas de grandes empresas. Entretanto, pela ética hacker, o conhecimento não pode ser utilizado para lesar terceiros. Outro ponto importante para os hackers é o compartilhamento do conhecimento. O movimento do software livre está estreitamente ligado ao movimento hacker. Entretanto, como diversos hackers violaram o código de ética e roubaram, o termo passou a ser associado com o crime. Entre a comunidade hacker, esses salteadores do ciberespaço são chamados crackers. Alguns hackers não se apropriam de nada, mas simplesmente desconfiguram sites, o que consiste numa forma de marcar sua proeza. Esses são chamados defacers.

cowboys do ciberespaço. Atualmente, entende-se por ciberespaço a interconexão mundial de computadores, abrangendo não apenas a infraestrutura física, como também as informações que contém, as interações entre pessoas mediadas por esse artefato e todas operações realizadas por seu intermédio (LÉVY, 1999).

As narrativas sobre o ciberespaço tendem a mostrá-lo como uma terra sem fronteiras, onde a liberdade de deslocamento é total e existe um completo compartilhamento de informação. Talvez tenha sido assim nos primeiros anos de existência da internet comercial. Entretanto, essa infinita extensão espacial está sendo colonizada e loteada. Talvez estejamos assistindo uma espécie de revival do velho oeste americano. Tal como lá, existem lutas e disputas, ainda que menos sangrentas. Não se dizimam índios, mas concorrentes. São as fronteiras eletrônicas que hoje proliferam no espaço internáutico. É certo que existe cada vez mais informação na web, mas também é certo que cada vez mais as grandes empresas tentam tornar o acesso a essas informações mais restrito. Por exemplo, cada vez existem menos jornais de acesso gratuito. Suas páginas são reservadas para assinantes ou suas matérias devem ser compradas, como é o caso do New York Times. Porém, enquanto se tenta colocar muros e cercar áreas, surgem novos mecanismos de compartilhamento, muitas vezes rompendo com a legalidade. Esse é o caso de softwares para troca de arquivos entre usuários, entre os quais o Kazaa e o Emule são os mais populares atualmente. Por meio dessa tecnologia, milhões de usuários domésticos trocam músicas, jogos, programas, filmes, livros de forma não-autorizada. Talvez aí esteja uma das grandes batalhas que estão sendo travadas em torno da conquista do ciberespaço: a forma de preservar informação e autoria como fonte de renda. Colocam-se cercas eletrônicas, mas multidões forçam os portões e estouram seus cadeados.

Pela primeira vez uma tecnologia vem sendo encarada como uma nova manifestação do espaço. Essa noção de espaço, ligada às redes de trocas digitais, deve-se às possibilidades de interações entre sujeitos diversos, que muito freqüentemente nunca se encontraram presencialmente. Acrescente-se, ainda, que esses sujeitos que interagem por meio das redes formam uma infinidade de grupos. Interagir com diferentes grupos, bem como acessar diferentes bancos de dados, dá a impressão de estarmos nos deslocando. Essas características, interações com outras pessoas e sensação de deslocamento, parecem simular aquilo que estamos acostumados a perceber na vida cotidiana como atividades realizadas

dentro de um determinado espaço. Esse espaço nascente é um espaço desmaterializado, é um espaço cibernético19, é o ciberespaço.

A noção de ciberespaço traz consigo um novo conceito de espaço. Aí, as leis da física não fazem sentido. Nem mecânica newtoniana, nem einsteiniana. Ele não pode ser representado nem pela geometria euclidiana, nem pela riemanniana. Se for possível constituir uma arquitetura e uma geografia do ciberespaço, elas serão completamente diferentes daquelas do espaço material. Como calcular nossa posição no ciberespaço? Como calcular qualquer posição no ciberespaço? Velocidade já não é a taxa de distância percorrida pelo período de tempo, mas a quantidade de dados que conseguimos receber num dado lapso temporal. A distância no ciberespaço parece ser a quantidade de bits e bytes percorrida...

No ciberespaço, pode-se jogar e conversar, conhecer novos amigos ou um grande amor, ir ao banco e fazer compras. Pode-se, até, consultar a imensa fonte de informações lá disponível, que uns pensam ser uma imensa biblioteca e outros uma sopa de informações desconexas. Para acessar esses lugares, basta navegar. Uma navegação que deixa o corpo20

para trás, alojado numa cadeira. Que não precisa de instrumentos, nem de perícia com velas. São somente mãos movendo-se sobre um teclado. Ou, se preferir, pode-se chegar surfando.

Portanto, o que freqüenta o ciberespaço é uma parte de mim que parece não incluir meu corpo21. Acostumados como estamos com um espaço material e corpóreo, parece-nos

que o ciberespaço não pode ser real. Essa noção de realidade como sendo impregnada de materialidade é uma herança do pensamento moderno. Nessa perspectiva, o ciberespaço muitas vezes é tomado como ilusório, uma espécie de reino de Alice (CARROLL, 2005), repleto de criaturas imaginárias como o Chapeleiro Maluco, o Gato ou o Coelho Branco. Passamos por um portal e entramos num mundo de fantasia. Nesse mundo, passamos rápido por vários lugares, com o mesmo sentido de urgência do Chapeleiro, mesmo sem sabermos para onde queremos ir, apenas queremos chegar a algum lugar, como respondeu

19 O termo cibernética foi criado pelo físico Norbert Wiener, provindo do grego kybernetes. O sentido

original dessa palavra era “a arte de conduzir um navio”, mas Platão, na República, modifica seu sentido para “a arte de governar os homens”. A cibernética é entendida como sendo a ciência que irá tratar de interfaces de controle e comunicação entre homens e máquinas (WIKIPEDIA, 2005).

20 Tomarei a palavra corpo num sentido restrito, considerando-o exclusivamente como a materialidade

formada pela carne. Essa materialidade produz as narrativas e participa das interações e socializações que ocorrem no ciberespaço, porém não poderá adentrar nessa dimensão espacial, reservada aos impulsos eletrônicos.

21 Refiro-me aqui à sensação experimentada por muitos internautas. Com isso não estou assumindo

um entendimento dualista corpo/mente. A relação corpo/ciberespaço será discutida com maior profundidade no Capítulo 6.

Alice ao Gato. Mas o ciberespaço não está fora da realidade, apenas se apresenta como uma nova face do mesmo. Podemos compreender isso facilmente ao pensarmos em operações radicalmente ligadas a questões materiais, como as movimentações bancárias e as compras via internet. Entretanto, o que interessa nesse momento não é discutir a realidade das experiências no ciberespaço, mas seus efeitos sobre os significados espaço-temporais contemporâneos.

Nesse sentido, penso que o ciberespaço possa ser colocado no grupo das heterotopias, “espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se pode encontrar no interior da cultura, estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares” (FOUCAULT, 2001b, p.415). Uma heterotopia é “ao mesmo tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe” (FOUCAULT, 2001b, p.415). Ao mesmo tempo real e irreal, isolado do espaço total, mas conectado a ele pelo equipamento de acesso: isso é o ciberespaço. Uma heterotopia sem referência geográfica. Sua realidade se impõe nas diversas tarefas que realizamos com uso da web. Mas esse espaço desmaterializado, onde o corpo físico não pode penetrar, parece estar fora do mundo, fora da própria realidade. O ciberespaço é um lugar fora de todos os lugares. Talvez o ciberespaço venha a ser a mais importante heterotopia da sociedade contemporânea. A navegação pelo ciberespaço torna virtualmente possível trazer para o espaço da tela do computador o mundo em forma de informação. Pelas sucessivas janelas que podemos abrir, temos a impressão que o planeta inteiro pode estar dentro de nossa sala (VEIGA-NETO, 2002a). E podemos acessar todos os pontos do mundo em apenas alguns segundos, se pressionarmos uma conveniente combinação de teclas. O espaço está ali condensado a níveis inimagináveis. Já o intervalo de tempo entre o premer das teclas e o aparecimento da informação desejada parece se alongar numa eternidade. Nessa velocidade estonteante que atingimos no universo digital, os tempos de viagem parecem estar se expandindo. 30 segundos é um tempo muito longo quando se aguarda o acesso a uma página da web.

Mas a navegação pela internet não apenas contribui para a aceleração do acesso à informação, incrementando a sensação de estarmos vivendo em velocidades com grandeza próximas à velocidade da luz. O ciberespaço parece retomar uma tradição ocidental interrompida pela Modernidade, reinstaurando um dualismo entre espaço material e imaterial. O espaço imaterial dos gregos era o Olimpo onde habitavam seus deuses. Para os

medievais, como vimos antes, o espaço da alma era mais real que o espaço físico. “Nesse sentido, podemos ver o ciberespaço como uma res cogitans eletrônica” (WERTHEIM, 2001). Na imaterialidade do ciberespaço, os sujeitos estão vivendo novas experiências que não seriam possíveis num mundo material. Para Turkle (1997), a internet está sendo utilizada como um laboratório para realizar experiências com a subjetividade e a identidade.

Uma experiência interessante dessa nova perspectiva espacial é a que acontece nos jogos chamados MUDs22. Nesses ambientes, os jogadores criam suas histórias a partir de um

cenário básico elaborado pelos criadores do software, chamados de Magos ou Deuses. Além de fazerem parte e criarem a história, os jogadores, dependendo do nível em que se encontrem, podem construir lugares para si, de crescente complexidade. Um quarto, uma casa, um bairro, uma cidade. Note-se que não existem imagens: a existência do espaço é caracterizada por descrições textuais e sinalizada por alguns comandos alfanuméricos. Essa criação, que penso que pode ser tomada como um processo de lugarização, é bastante real para os jogadores, assim como sua movimentação no ambiente, através dos comandos digitados no teclado. A vida nos MUDs é de fantasia: pode-se ser um esquilóide lustroso, uma fada ou um viking. Mas, para muitos usuários, ali está uma vida paralela, em que expressam sentimentos que dizem ser reais e que não conseguem dar vazão na vida cotidiana. Alguns chegam mesmo a dizer que ali vivem suas verdadeiras vidas (TURKLE, 1997). Talvez algo próximo da realidade primária do espaço da alma medieval.

Conforme Wertheim (2001), a cultura ocidental, por sua herança grega e judaico- cristã, tem uma tendência ao dualismo, associando a imaterialidade com espiritualidade. A autora desenvolve essa idéia baseada nos trabalhos de Mircea Eliade, estudioso da história das religiões, e da programadora de realidade virtual Nicole Stenger, que usa o trabalho de Eliade para analisar alguns efeitos do ciberespaço. Para Stenger, a cultura ocidental geralmente associa o espaço material ao profano e o espaço imaterial ao sagrado. Desse modo, o ciberespaço oferece condições para a emergência de um sentido de religiosidade. Uma religiosidade que pode excluir a noção de Deus, mas que vem se manifestando pela crença na possibilidade de imortalidade e ressurreição.

22 MUDs (Multiple Users Dungeon – Masmorra para múltiplos usuários) são jogos on-line que não

possuem imagens, podendo ser compreendidos como uma realidade virtual baseada em textos. Os usuários assumem um personagem/avatar e, através de comandos textuais, movem-se e exploram o ambiente, podendo conversar com outros usuários, envolver-se em batalhas, criar novos ambientes e decifrar enigmas. O termo MUD vem daquele que é considerado o primeiro jogo desse tipo – Dungeons and Dragons – criado a partir de um RPG (role playing game) com o mesmo nome, por Roy Trubshaw and Richard Bartle, em 1980 (MOOCK, 2005).

A noção de ciberespaço como um espaço de imortalidade digital já estava bastante presente nas obras de Gibson e outros autores da década de 80. Em 1991, quando a internet comercial dava apenas seus primeiros passos, Michael Benedikt, proprietário de uma grande empresa de software, afirmou ser possível a existência de Nova Jerusalém, a cidade prometida no Apocalipse, onde os bons cristãos iriam residir por toda eternidade:

E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. (APOCALIPSE, 21:1-4, 2004).

Neste livro da Bíblia, a cidade sagrada é caracterizada por uma geometria altamente estruturada. Nova Jerusalém substitui o caos e a ignorância do Éden, por ordem e sabedoria. Benedikt acredita que essa cidade sagrada só poderá existir na realidade virtual e que o Apocalipse se referia a uma visão religiosa do ciberespaço (WERTHEIM, 2001). Essas idéias, contidas no ensaio de abertura do livro Cyberspace: First Steps, tiveram grande repercussão entre aqueles que trabalham, pesquisam ou, simplesmente, são aficcionados pela internet. Outros ensaios nesse mesmo livro seguem essa visão ciber-religiosa. Kevin Kelly, editor da revista Wired23, disse ver dados da alma no silício. De acordo com Mark Pesce, um dos

criadores da tecnologia VRML24, todos que navegam no ciberespaço experimentam um

momento de iluminação, comparável ao mito do Santo Graal.

Também no site Cyberspace — the New Jerusalem encontramos uma coletânea de citações de diversos autores que exaltam essa ligação do ciberespaço com o sagrado. Entre essas, destaco algumas que me parecem particularmente significativas:

“Por que deveríamos nos contentar em ser avatares25 quando podemos ser

anjos?” Fala do programador de jogos Brian Moriarty, em 1996, na Computer Game Developers' Conference (CYBERSPACE — THE NEW JERUSALEM, 2005, tradução minha).

O ciberespaço gibsoniano é digital e socialmente durkheimeniano, no sentido que é ao mesmo tempo profano (uma metrópole de dados) e sagrado

23 A revista Wired (2005) é considerada o mais importante periódico da atualidade dedicado à temática

da tecnologia digital.

24 VRML (Virtual Reality Modeling Language) é a linguagem de programação mais utilizada atualmente

para programação de ambientes de realidade virtual.

25 Avatar é a representação virtual de um usuário num programa de realidade virtual ou em um site

(uma cabeça de deus cibernético). David Tomas, em Cyberspace: First Steps (CYBERSPACE — THE NEW JERUSALEM, 2005, tradução minha).

Outra obra importante na produção do ciberespaço como um espaço de espiritualidade foi lançada pela teóloga Jennifer Cobb, em 1998: Cybergrace: the search for God in a digital world (REVIEW OF CYBERGRACE, 2005). Nesse livro, a autora mostra como o ciberespaço pode aguçar o senso de religiosidade do ser humano, aproximando-o de Deus.

Mas nem sempre a idéia de vida eterna está associada com Deus ou com religião, pelo menos nos termos em que estamos acostumas a utilizar essas palavras. Ficção científica e ciência encontram um ponto de convergência quando em romances ciberpunks e em livros de pesquisadores de inteligência artificial está presente a idéia de produzir cópias da mente humana em máquinas que simulariam a vida num ambiente virtual, tornando os homens imortais. O espaço imaterial reproduz uma alma digital, um eu que prescinde do corpo e cuja morada eterna não será ao lado de Deus Pai, mas em torno de chips de silício.

Estamos hoje nos defrontando com os novos significados de tempo e espaço da Contemporaneidade, fragmentados como parecem estar todas as categorias. A determinação da distância é cada vez mais incerta e o significado de tempo é cada vez mais obscuro. As limpas, elegantes e diretas medidas da Modernidade estão borradas e embaralhadas. Já não estamos seguros nem mesmo de ocupar um lugar no espaço. Talvez porque sejamos nós mesmos uma dobra desse espaço, talvez porque o cibereu não possa ocupar lugar algum. As transformações que aqui mostrei nos significados e usos do espaço e do tempo na sociedade ocidental estão fortemente associadas com outras transformações sociais, nas formas de produzir a subjetividade e no tipo de subjetividade que está sendo produzido. Espaço e tempo, como hoje estão reconhecendo sociólogos, antropólogos e filósofos, constituem não um pano de fundo para o desenrolar dos acontecimentos, mas elementos ativos em sua produção.

4 TRABALHADORES DISCIPLINADOS, CONSUMIDORES ENDIVIDADOS O fato de tornar-se aquilo que se é admite que não se tenha a mais longínqua idéia daquilo que se é.

(NIETZSCHE, 2002, p.62) A maneira como uma sociedade representa e usa o espaço e o tempo está imbricada com o modo como ela se organiza e como produz as relações sociais. Como já vimos no capítulo anterior, espaço e tempo não são apreendidos de um modo apriorístico, como acreditava Kant (2004). Essas noções se constituem de diferentes maneiras nas diferentes sociedades, produzindo entendimentos diversos sobre o que seja a realidade. As relações e regulações sociais que hoje conhecemos e vivenciamos, muitas vezes parecem naturais e inerentes ao ser humano, tratando-se suas transformações como um processo de evolução. Desenvolvo esse trabalho a partir de uma perspectiva foucaultiana, que toma essas mudanças não como um progresso, um contínuo aperfeiçoamento da sociedade, mas como mudanças nos regimes de produção de verdade. Assim como não existe um entendimento universal e intuitivo sobre o espaço e o tempo, sendo os sentidos que lhes atribuímos construídos a partir de determinadas experiências, a organização de uma sociedade se desenvolve entrelaçada com esses mesmos significados. Para compreender como se dão as relações interpessoais e como se constitui a subjetividade não se irá buscar respostas numa instância transcendental, que esteja fora da própria sociedade. Sujeito e sociedade são produzidos de forma imanente. E essa produção está articulada aos significados espaço- temporais, constituindo e sendo constituída pelos mesmos.

Desde a Modernidade, a escola tem sido uma instituição de fundamental importância na produção da subjetividade dos indivíduos. Segundo Kant (1996, p.13), as crianças devem ir à escola antes de tudo para “que aí se acostumem a ficar sentadas tranqüilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado”. Aprender a cultura era apenas um aspecto secundário, pois isso poderia se dar fora da escola. O surgimento da escola moderna, que quadriculou e organizou tempos e espaços, repartiu e organizou o conhecimento e incentivou cada um a se conhecer, pode ser tomado como uma das principais condições de possibilidade26 para o estabelecimento do capitalismo. A instituição escolar ensinou aos

26 A noção de condição de possibilidade é de algo que torna possível, mas não determina a emergência

de um determinado evento. Observe-se que aquilo que se coloca como condição de possibilidade, em geral, é retomado e intensificado pelos seus desdobramentos. Por exemplo: o relógio é condição de possibilidade para emergência da ordem moderna, que por sua vez se encarrega de aprimorá-lo e de

alunos que deviam se manter pacientemente nos seus lugares, observar horários e executar tarefas prontamente. Esses sujeitos disciplinados e com capacidade de se autogovernarem constituídos pelos mecanismos escolares tornaram possível a organização do trabalho fabril tal como aconteceu na Revolução Industrial. Com isso não quero dizer, como acreditam alguns, que a escola seja uma invenção deliberada do sistema capitalista. Deve-se compreender, antes, que o capitalismo apenas se beneficiou de algo que já havia sido inventado, ainda que tenha retomado e realizado ajustes na instituição escolar para melhor adequá-la a seus fins. Escola e sociedade mantêm uma relação de circularidade, produzindo e sendo produzidas mutuamente.

Para analisar como vem sendo pensada e narrada a escola nesse início do século XXI

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 52-60)