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Transformação do Espaço-Tempo Medieval

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 35-37)

Durante o período do Renascimento, as percepções medievais de espaço e tempo passariam por transformações que dariam condições para o aparecimento da definição objetiva e científica que iriam ter na Modernidade. Conforme descrito anteriormente, no início do século XIV aparecem os primeiros sinais que o modo de perceber o espaço e o tempo estava sofrendo mudanças. As pinturas de Giotto na Capela de Arena mostram que a atenção começava se deslocar do “mundo espiritual” para o “mundo físico”. A cultura ocidental gradativamente deixava de ver a realidade num mundo transcendente e passava a focar no mundo chamado de natural, ou seja, aquele em que se realizam as experiências cotidianas. Sutilmente, já se sentem abalos na concepção medieval de mundo na segunda metade do século XIII, quando o monge franciscano Roger Bacon escreveu um tratado defendendo um estilo pictórico realista, baseado na geometria, que, tornando as imagens mais reais, iria colaborar na conversão dos infiéis. Durante o século XIV, a pintura cada vez mais aperfeiçoará as técnicas que dão a ilusão de profundidade e solidez. “O ‘órgão da visão’ do pintor começou a se deslocar do ‘olho interior’ da alma para o olho físico do corpo” (WERTHEIM, 2001, p.65).

Ainda que as pinturas da Capela de Arena estejam entre as primeiras que buscam representar o espaço físico através de uma simulação de profundidade, pode-se também perceber que a noção de um espaço tridimensional ainda não estava estabelecida. Mesmo com a intenção de criar a sensação de presença física de pessoas e objetos, não existe uma unidade de representação espacial, aquilo que na pintura perspectivista seria identificado como o ponto de vista do observador. Cada elemento está num espaço próprio, como se convivessem numa mesma pintura a visão a partir de diferentes pontos de vista, ou seja, como se o observador não fosse fixo, mas estivesse em movimento. A compreensão medieval do espaço entrelaçado com o tempo ainda persistia.

Ao longo do século XIV e XV são formalizadas as regras da perspectiva e as representações passam a mostrar um espaço tridimensional homogêneo e contínuo, prenunciando o modelo que seria adotado pela ciência a partir do século XVII e que se tornaria um dos fundamentos da Modernidade. A perspectiva, desenvolvida principalmente em Florença, moldou não apenas a arte, mas as representações em geral, até o final do século XIX. Nessa nova técnica, as representações são feitas a partir do ponto de vista de um

observador fixo, resultando numa pintura em que apenas o espaço importa. O fluxo do tempo já não está presente nos quadros e, como numa foto, o espaço está congelado em exatas leis geométricas (Harvey, 2001).

Também no século XV, a Europa lançou-se aos mares e iniciaram-se as grandes navegações. A partir das cruzadas, durante a Idade Média, o comércio com o Oriente tornou- se intenso, com o objetivo de trazer especiarias, porcelanas, sedas e pedras preciosas. Os mercadores, ao explorarem o espaço, aprenderam aquilo que Harvey (2001, p.208) chama de “preço do tempo”. Encontrar um novo caminho, que reduzisse o tempo de deslocamento, passou a ser uma preocupação, gerando uma competição entre Portugal e Espanha. Expedições, que custaram muito dinheiro e muitas vidas, mas que prometiam grandes lucros ao vencedor, foram realizadas sob o patrocínio dessas cortes, desejosas de auferir lucros substanciais. As viagens para o Oriente mantêm estreita relação com a compreensão de espaço contínuo e homogêneo. A busca de trajetos mais curtos está imbricada com a noção de tempo como algo distinto do espaço: se é possível percorrer o espaço em menos tempo, logo ambos são coisas diferentes. Cabe observar que esses fatos – concepção de espaço e tempo como entidades distintas e as grandes navegações – se entrelaçam, não havendo uma relação de causa e efeito, mas uma causalidade imanente8, ou seja, algo que produz

determinado efeito e é atualizado por esses efeitos.

Simultaneamente às grandes navegações, acontecem, no início do Renascimento, demarcações de terras com a finalidade de determinar novas fronteiras políticas e direitos de propriedade, o que viria a substituir o sistema medieval, impondo a ordem moderna. Esses acontecimentos foram possíveis graças aos mapas renascentistas, cujo principal atributo era sua objetividade na representação do espaço (HARVEY, 2001). Os mapas medievais foram substituídos pelo mapa ptolomaico9, produzidos sobre uma grade, o que permitia a

localização dos lugares em função de sua latitude e longitude (SILVA, 2004). O sistema ptolomaico deu origem à cartografia moderna, inclusive à obra de Mercator10.

8 Causa imanente entendida como “aquela que funciona como se dobrando sobre si mesma, de modo

que, em seu efeito, se transmuta, se atualiza, se integra e se diferencia de si mesma” (VEIGA-NETO, 1996, p.223).

9 A técnica cartográfica criada pelo egípcio de origem grega Cláudio Ptolomeu, em Alexandria, no

século II (provavelmente entre os anos 150 e 170), estava baseada em princípios da matemática e da geometria. Os mapas originais de Ptolomeu foram perdidos, mas no século XV chega à Europa a tradução latina de seu tratado Introdução à Geografia, efetuada pelo florentino Jacopo Angeli da Scarperia, entre 1406 e 1409 (RIBEIRO JR, 2004).

10 Mercator, matemático e astrônomo flamengo, é o mais conhecido cartógrafo do Renascimento. No

É também no século XV que Gutemberg inventa a imprensa, o que impulsiona a difusão da informação por meio da escrita. A comunicação por meio de textos impressos descontextualiza a informação. O autor do texto está ausente fisicamente, mas se materializa através daquilo que redige. O lugar é afetado por atores que agem a distância. A comunicação escrita independe de amarras temporais e espaciais. A experiência de tensão entre presença e ausência gradativamente irá se acentuar e será uma das marcas da Modernidade (FRIEDLAND; BODEN, 1994).

No século XIV, o dia foi dividido em 24 horas e surgiram os primeiros relógios em torres de cidades italianas11 (NATIONAL INSTITUTE OF STANDARDS AND

TECHNOLOGY, 2004). Estava lançada a seta do tempo, que pretendia distinguir o passado do futuro de forma objetiva e linear. O tempo individual e marcado pela rotina da vida da Idade Média estava dando lugar ao tempo objetivo da Modernidade. O relógio mecanizou o tempo, modificando a percepção da temporalidade e a organização social. Primeiramente, essa transformação atingiu as zonas urbanas, onde o tempo até então era um tempo divino, marcado pelo badalar do sino. Os relógios nas torres e fachadas tornaram o tempo laico. Suas batidas já não chamavam para obrigações religiosas, mas para as atividades do mundo material. Gradativamente, o tamanho dos relógios é reduzido, popularizando-os e levando- os às zonas rurais, cujo tempo até então continuava marcado pelos fenômenos naturais. O relógio inventa um tempo mensurável e objetivo, desvinculado da natureza e daquilo que acontece no lugar onde se vive. Essa noção também irá colaborar com a “cisão do binômio espaço-tempo” (ESCOLANO, 2001, p.43).

“A revolução renascentista dos conceitos de espaço e de tempo assentou os alicerces conceituais em muitos aspectos para o projeto do Iluminismo” (HARVEY, 2001, p.227). Sua representação por meio da geometria e da ciência ótica e a invenção do tempo como algo quantificável servirão de base para o espaço homogêneo e o tempo objetivo que emerge da razão iluminista.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 35-37)