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Legislação Brasileira para Educação a Distância

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 129-134)

Tratarei aqui da legislação sobre a EaD no Brasil não para tomá-la como uma origem dos processos, mas para mostrar a cristalização na forma de lei de sentidos que já circulavam no tecido social. A lei nas sociedades de normalização é, na maioria das vezes, a transcrição de normas pré-existentes, num movimento de fortalecimento da mesma através da legislação e da imposição de sanções legais. Os documentos que serão utilizados nesta seção encontram-se disponíveis no portal de Secretaria de Educação a Distância (BRASIL, 2005).

A primeira lei nacional a tratar do tema EaD foi a de nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, conhecida com Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Nessa lei, educação e ensino a distância são utilizados como sinônimos e de forma indiscriminada. Na seção em que trata do Ensino Fundamental, a LDB indica que esse nível escolar deve ser presencial, exceto em situações emergenciais. Isso sinaliza uma compreensão de que, frente às exigências de autogoverno características da modalidade, ela só poderá ser bem sucedida com sujeitos que já tenham desenvolvido essa competência e que é papel da escola

desenvolvê-la. Portanto, parece que para a escola contemporânea já não basta ensinar aos alunos a cumprirem horários e obedecerem ordens, mas deve ensinar técnicas de autogestão.

O artigo 80 do título VIII dessa lei irá tratar especificamente da EaD. Na época em que foi elaborada a LDB, apenas se iniciava o uso da internet no Brasil e a EaD era mediada, em geral, pelas transmissões de rádio e TV, além de materiais impressos. Isso fica muito claro quando esse artigo define em seu parágrafo 4 algumas facilidades a serem concedidas no uso dessas mídias com finalidades educativas. O artigo 80 determina que apenas instituições credenciadas pela União poderão oferecer cursos a distância. Portanto, o credenciamento de cursos a distância deve ser antecedido por um credenciamento da própria instituição que a autorize a oferecer essa modalidade de cursos. A Figura 7.1, apresentada na seção anterior, mostra a evolução do número dessas instituições.

O artigo 80 da LDB foi regulamentado pelo Decreto nº 2.494, de 10 de fevereiro de 1998, que legisla sobre cursos de Ensino Fundamental e Médio para jovens e adultos, cursos de Educação Profissional e Ensino Superior. Podemos destacar como um ponto importante desse decreto a equiparação dos cursos presenciais e a distância, por meio da autorização para transferência e para aproveitamento de créditos entre essas modalidades. Ele também determina a necessidade de exames presenciais nos cursos a distância, o que deve ser levado em conta nos projetos de cursos e traz limitações em relação a sua abrangência geográfica. No caso de Ensino para Jovens e Adultos e Educação Profissional, os exames presenciais poderão ser realizados em instituições credenciadas apenas para esse fim. O Decreto nº 2.494 também determina a obrigatoriedade de divulgação das instituições credenciadas para oferecer cursos a distância, o que vem sendo realizado pelo site da Secretaria de Educação a Distância. Os procedimentos e critérios para o credenciamento das instituições para oferta de cursos de graduação e de educação profissional serão definidos pela Portaria nº 301, de 7 de abril de 1998.

Os cursos de pós-graduação lato e stricto sensu foram regulamentados somente três anos depois, pela Resolução CNE/CES nº 1, de 3 de abril de 2001. De acordo com o documento, para oferecer cursos de pós-graduação lato sensu também é necessário o prévio credenciamento da instituição. O mesmo credenciamento autoriza uma instituição a oferecer cursos de graduação e de especialização. Já para oferecer cursos stricto sensu é necessária somente uma autorização para o funcionamento do curso. A necessidade de exames presenciais fica mantida em ambos os casos, bem como a obrigatoriedade de realizar

presencialmente os exames de qualificação e as defesas de dissertações de mestrado, teses de doutorado e de monografias dos cursos lato sensu.

O último documento oficial que regulamenta a EaD em todos os níveis de ensinos é o Decreto 5.622, de 22 de dezembro de 2005, que não apresenta grandes alterações em relação ao que já havia anteriormente.

Não são apenas os cursos de graduação credenciados como cursos a distância que podem oferecer atividades não-presenciais. Em 2001, por meio da Portaria nº 2.253, de 18 de outubro de 2001(BRASIL, 2005b), o Ministério da Educação permitiu que os cursos de graduação presenciais passassem a oferecer disciplinas na modalidade a distância ou semipresencial. A carga horária dessas disciplinas não pode ultrapassar o limite de 20% da carga horária total do curso. Esse documento indica o avanço da EaD na passagem do século XX para o século XXI, bastante impulsionado pela disseminação do uso da internet. Isso fica bastante claro quando, no seu artigo 2º, a Portaria determina que essa oferta deve incluir métodos que incorporem o uso de tecnologias de informação e comunicação. A Portaria nº 2.253 foi substituída pela Portaria nº 4.059, de 10 de dezembro de 2004 (BRASIL, 2005c), cuja principal modificação diz respeito à forma de comunicar ao SESu as alterações curriculares realizadas pela introdução de atividades não-presenciais nos curso de graduação.

Além da legislação, o Portal da Secretaria de Educação a Distância também apresenta o documento Os Referenciais de Qualidade para Cursos a Distância (BRASIL, 2005a), que tem por objetivo orientar a elaboração de projetos de cursos de graduação a distância, de modo a garantir a qualidade do ensino. Esse documento traz recomendações referentes aos diversos aspectos que devem ser contemplados no projeto a ser apresentado ao MEC para obter autorização para o funcionamento de um curso de graduação a distância. No texto, podem- se observar diversos pontos que estão articulados com os eixos de pesquisa que foram propostos no capítulo 2 e que comento a seguir.

Segundo esse documento, “o uso das novas tecnologias da informação e das comunicações pode tornar mais fácil e eficaz a superação das distâncias, mais intensa e efetiva a interação professor-aluno, mais educativo o processo de ensino-aprendizagem, mais verdadeira e veloz a conquista de autonomia pelo aluno” (BRASIL, 2005a, p.6). Nessa frase encontramos relações com os três eixos da pesquisa. Embora não seja nomeada uma tecnologia específica, os termos da citação levam a pensar na internet como principal recurso de mediação. Em primeiro lugar, a afirmação de que as tecnologias de informação e comunicação colaboram na superação de distâncias, mostra que o uso de tecnologias na EaD está acentuando a compressão espacial. Já a noção de uma tecnologia que intensifica as

interações e torna o processo mais educativo constitui uma representação da tecnologia como sendo capaz de preencher a ausência do corpo e promover uma co-presença num espaço digital onde o tempo parece não importar. Por fim, ao referir-se à tecnologia como um instrumento que torna possível acelerar a conquista da autonomia pelo aluno, a toma como um mecanismo que torna o governamento dos sujeitos mais eficaz, colaborando para desenvolver sua competência de gerir a própria vida.

Também o documento refere-se ao papel do professor na EaD como sendo o de

“conselheiros, quando acompanham os alunos; parceiros, quando constroem com os especialistas em tecnologia abordagens inovadoras de aprendizagem” (AUTHIER apud BRASIL, 2005a, p.8). Essa identidade constituída para o professor (que também pode ser chamado tutor ou orientador) retira-lhe a atribuição de conduzir o processo educacional, pois deverá somente acompanhar os alunos. O professor não é mais um centro. Na EaD via internet, as múltiplas ferramentas de interatividade e os recursos para apresentar conteúdos e instruções para as tarefas a serem desenvolvidas, estilhaçam qualquer centralidade possível. Ao designá-lo como um conselheiro, faz lembrar as palavras de Bauman (2001, p.77): “uma diferença crucial entre líderes e conselheiros é que os primeiros devem ser seguidos e os segundos precisam ser contratados e podem ser demitidos. Os líderes demandam e esperam disciplina; os conselheiros podem, na melhor das hipóteses, contar com a boa vontade do outro”. Se na Modernidade o saber do professor assegurava um lugar de liderança, na Contemporaneidade garante, no máximo, um bom contrato. O próprio lugar de saber antes ocupado pelo professor agora é compartilhado com outros atores, pois os docentes não apenas têm que aprender a utilizar as tecnologias de informação e comunicação e desenvolver a capacidade de ministrar cursos a distância, como também devem aprender a “conviver com alunos que eventualmente conhecem mais a tecnologia do que eles mesmos, estabelecendo uma relação de aprendizado recíproco” (BRASIL, 2005a, p.8). Também o papel de parceiro de especialistas em tecnologia que é atribuído ao professor alinha sua identidade com o discurso contemporâneo, no qual a solidariedade e a colaboração se transformam em parcerias. A parceria do professor com o especialista em tecnologia para propor estratégias de ensino mais uma vez reforça a noção de divisão do lugar de saber, tendo em vista que já não é sua responsabilidade exclusiva o planejamento do curso.

Ao que parece, a EaD não é apenas um instrumento para o governamento de alunos, mas do próprio professor, que, segundo Os Referenciais de Qualidade para Cursos a Distância, deve manter um processo contínuo de auto-avaliação e deve monitorar permanentemente a produção dos alunos, respondendo perguntas e enviando comentários com a maior rapidez

possível. O relógio da sala de aula foi substituído por uma temporalidade contínua, sem delimitações dos períodos de trabalho.

O aluno, por sua vez, estará submetido a uma avaliação “contínua e abrangente” (BRASIL, 2005a, p.12). O exame e a sanção da escola disciplinar moderna estão sendo substituídos por uma avaliação realizada através de controle contínuo e pelos feedbacks dos conselheiros. O aluno poderá estudar “no tempo e local que lhe são adequados” (BRASIL, 2005a, p.3) e poderá “em função de sua experiência e conhecimentos prévios, encurtar o tempo de estudos” (BRASIL, 2005a, p.6). Além disso, a instituição deverá “assegurar flexibilidade no atendimento ao aluno, oferecendo horários ampliados e/ou plantões de atendimento” (BRASIL, 2005a, p.10). A individualização do uso espaço-temporal não apenas promove a transformação desses conceitos, mas também funciona como um instrumento de governamento dos alunos, pois a EaD, ao dar-lhe a liberdade de escolha e a flexibilidade, pede-lhe que retribua com autocontrole. “Para muitos alunos, parece ser fácil estudar a distância. Na verdade não é. Estudar a distância exige perseverança, autonomia, capacidade de organizar o próprio tempo” (BRASIL, 2005a, p.14). Assim como para os professores, para os alunos a EaD também é um novo desafio, exigindo novos aprendizados, não apenas de conteúdos, mas de comportamentos. E a instituição deve zelar para que isso ocorra, devendo orientar “o aluno quanto às características da Educação a distância e quanto a direitos, deveres e atitudes de estudo a serem adotadas” (BRASIL, 2005a, p.11). A disciplina escolar, aprendida a duras penas nos muitos anos passados nas salas de ensino fundamental e médio, já não dá conta do que se espera do aluno de um curso de graduação a distância. O aluno nessa modalidade de curso será remodelado por práticas de governamento independentes de distâncias espaço-temporais. Ao aluno de EaD não se pede mais que saiba ficar tranqüilo em seu lugar, cumprindo os horários estabelecidos, mas que ele próprio gerencie seu ritmo de estudo.

A legislação tem sido bastante incisiva na necessidade de uso de tecnologias de informação e comunicação em EaD. Hoje, dificilmente será aprovado um projeto de curso a distância que não preveja o uso da internet. A distribuição de material impresso e outros recursos de apoio, complementada pelo contato por telefone ou por correspondência do aluno com o professor, já não basta. O desenvolvimento de sistemas para dar suporte a cursos a distância via internet tem sido tema de projetos tanto em universidades, quanto em empresas especializadas.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 129-134)