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Internet e sociedade

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 114-117)

O uso doméstico de computadores tomou grande impulso com a comercialização da internet. Ferramenta usada para o lazer, para o trabalho e para a educação, vem apagando fronteiras entre esses campos, misturando público e privado e redefinindo as noções de distância, velocidade e tempo. A noção de fantasmagoria59 (GIDDENS, 1991) é bastante

adequada para compreendermos o funcionamento da internet em termos sociais e culturais: ela transforma nossas vidas cotidianas através acontecimentos remotos, que talvez nem chegassem a nosso conhecimento sem a existência desse artefato cultural.

Para o usuário da internet as fronteiras dos mundos públicos e privados são cada vez mais tênues. O mundo do trabalho e o mundo do estudo estão agora dentro do lar: home offices e cursos a distância lá se instalam, mediados por esse artefato tecnológico. Se os horários ficam mais flexíveis, isso não significa um menor controle de trabalhadores e estudantes. Conforme Sennett (2003), empregadores que permitem que seus empregados trabalhem em casa criam esquemas de controle até mais rígidos do que aqueles existentes na relação face a face. “Os trabalhadores, assim, trocam uma forma de submissão ao poder – cara a cara – por outra, eletrônica” (SENNETT, 2003, p.68). A vigilância disciplinar, que funciona por confinamento físico, nas atividades remotas é substituída pelo controle tecnológico, num espaço liso, sem barreiras. Do enclausuramento dentro de edifícios passamos para as malhas da grande teia60. A rígida grade individualizadora das sociedades

disciplinares agora se apresenta como uma rede flexível, tão tênue que mal podemos perceber sua retícula. Parece que estamos passando de uma disposição geométrica cartesiana do mundo, para uma noção riemanniana61.

59 A noção de fantasmagoria, apresentada no Capítulo 3, está relacionada ao fato de que

acontecimentos remotos, que em outras épocas não seriam sequer de nosso conhecimento, atualmente penetram em nosso cotidiano e o modificam

60 Referência à WWW.

61 O espaço euclidiano é composto por planos e não está relacionado com o tempo. Encontra-se

relacionado com as representações cartesianas. Ainda que seja uma boa representação para nossa percepção cotidiana, não serve quando tratamos de Física Moderna e da Teoria da Relatividade. Riemann concebeu uma geometria baseada em superfícies de curvatura positiva constante (que pode

É algo freqüente ouvirmos ou lermos sobre o “impacto” das novas tecnologias. Essa metáfora expressa uma representação de tecnologia que a coloca fora da cultura, sendo produzida numa exterioridade onde, talvez, estivesse a neutralidade tecnológica. As tecnologias de informação e comunicação, entre elas a internet, estão articuladas com as mudanças sociais e não podem ser compreendidas como exteriores às mesmas. O que se deve interrogar são as condições que possibilitaram a invenção e disseminação dessas máquinas, mostrando-as como artefatos culturais que são. Seu uso provoca novos desdobramentos sociais, econômicos e culturais, que trazem novas demandas tecnológicas, havendo então uma relação circular entre cultura e tecnologia. Essa noção de “impacto” vem sendo criticada por autores como Lévy (1999) e Sterne (1999), que contestam essa autonomia creditada aos aparatos tecnológicos. Como já mostramos antes, a informática se desenvolveu para atender determinadas condições da Modernidade. Entretanto, se as tecnologias são desenvolvidas a partir de necessidades engendradas pela cultura, quando são dispostas para uso público, a sociedade delas se apropria, retomando-as e modificando suas finalidades e usos. Dizer que existem condições que tornam possível a criação de uma dada tecnologia não significa que se possam fixar seus usos ou determinar como se dará seu posterior desenvolvimento.

A noção de uma tecnologia autônoma, desvinculada de aspectos sociais e culturais, que viria atingir a sociedade numa relação de exterioridade, fez com que se formasse uma idéia da internet como sendo geradora de um mundo virtual, concebido como fruto da fantasia e que se contrapõe ao mundo real. O virtual, em geral, é compreendido como algo que produz efeitos de realidade, sem que seja efetivamente real. É uma simulação, uma ficção. Mesmo com a materialidade do comércio e das movimentações financeiras realizados via web, o virtual segue, muitas vezes, sendo representado como oposto ao real.

A construção dessa representação que contrapõe virtual e real é anterior ao uso da informática: a física ótica, ao estudar os espelhos, já nos fala de imagens reais e virtuais, colocando-as como formas opostas de projeções. O virtual é o que está no outro lado do espelho. O virtual é enganoso, pois reflete uma imagem que está fora do próprio espaço. Segundo Wilbur (1997), a palavra virtual origina-se de virtude. Até uma certa época, virtuoso e virtual eram sinônimos na língua inglesa. O virtuoso era aquele capaz de produzir

ser representada pelo exterior de uma esfera) e sugeriu a possibilidade de superfícies ou espaços nos quais a curvatura poderia variar e onde uma figura não poderia ser movida sem que ocorressem mudanças em sua forma e propriedades. Ou seja, nesse espaço as retas tornam-se arcos e os planos tornam-se superfícies esféricas, cujas curvaturas estão associadas com a noção de tempo. A geometria de Riemann rompe com a linearidade euclidiana.

a si mesmo como um praticante do bem. Para tornar-se virtuoso o sujeito devia operar sobre sua subjetividade e passar por um processo contínuo e sempre inconcluso de transformação: a virtude não pertencia ao mundo real, mas a um mundo miraculoso. O termo virtual ao longo do tempo desliga-se de virtude e toma o sentido daquilo que não é real ou que é ilusório.

Lévy (1996), a partir de Deleuze e Guattari, argumenta que o virtual é o que existe em potência e não em ato. O virtual não se opõe ao real, mas ao atual. A atualização do virtual não corresponde a um surgimento de algo pré-determinado, mas a uma criação. A leitura virtualmente presente no livro, atualiza-se no ato de cada leitor. Para Lévy (1996), o real se opõe ao possível. O possível é um real latente, esperando para surgir, mas sem o viés criativo. A partir desses pressupostos, esse autor constrói a virtualização como êxodo, como o não estar presente. O virtual seria uma ruptura com as coerções temporais e espaciais que restringiam os relacionamentos antes da invenção dos atuais artefatos tecnológicos. Não desejando ater-me em disputas por significados, trago essas discussões apenas para problematizar o sentido do termo virtual. Penso que para desconstruir o binarismo virtual/real se possa optar por presencial e não-presencial, mesmo sabendo do risco de construir um novo binário. Ainda assim, provisoriamente, parece ser uma alternativa um pouco mais adequada para representar os processos sociais e econômicos contemporâneos.

Nesses nossos tempos de modernidade líquida, a produção de textos também está entrando nesse liquidificador e abandonando a uma ordem rígida e pré-estabelecida. O hipertexto62 é o formato de escrita dessa nova ordem. Um texto flexível cujos limites são

voláteis e com uma noção de autor que parece estar se apagando. O hipertexto é um produto da inteligência coletiva, admitindo uma autoria coletiva e muitas vezes inominável. A leitura e a criação do texto são atos que se confundem nas atualizações das formas hipertextuais. “A partir do hipertexto, toda leitura tornou-se um ato de escrita” (LÉVY, 1996, p.46). Com a emergência do hipertexto, estamos vivendo uma revolução social de dimensões semelhantes àquela que aconteceu com a invenção da escrita (LÉVY, 1998). Os hipertextos rompem com a leitura e escrita lineares, promovendo a compressão espaço-temporal, a desterritorialização do texto e a fantasmagoria: no limite, todos as superfícies escritas podem estar simultânea e instantaneamente sobre a tela (VEIGA-NETO, 2002a).

62 Hipertexto é um sistema para a visualização de informação cujos documentos contêm referências

internas para outros documentos. O sistema de hipertexto mais conhecido atualmente é a World Wide Web.

Mas a internet é muito mais que um repositório de hipertextos. Nela se realizam operações diversas, como transações bancárias e comércio eletrônico. Mas, provavelmente, o fenômeno de maior ineditismo que ela vem permitindo emergir seja o relacionamento com sujeitos remotos, produzindo uma nova forma de sociabilidade.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 114-117)