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O Corpo-Informação

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 90-95)

Em 25 de abril de 1953, a revista Nature publicou um trabalho de Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins, no qual era apresentada a dupla hélice da estrutura molécula de DNA. A “descoberta do segredo da vida” valeu-lhes o Prêmio Nobel em 1962 (ORTIZ, 2003). Como um texto bioquímico, o DNA contém as informações que produzem cada ser vivo. A

38 Efeito de computação gráfica, freqüentemente utilizado no cinema, que transforma uma forma em

outra, um personagem em outro.

39 Mito alemão cuja ambição por poder e conhecimento infinito leva-o a compactuar com Mefistófoles,

o demônio. Irá sofrer as conseqüências de seus atos.

40 Com isso não quero dizer que a ciência tenha abandonado a pretensão de descobrir verdades, mas

quero problematizar o lugar dado à verdade na ciência contemporânea. A busca da verdade, que se constituía em um fim para a ciência moderna, na Contemporaneidade tornou-se um meio para que se possam alcançar resultados capazes de impactarem na vida prática.

vida, que foi da ordem do divino na sociedade medieval, transformou-se em mecanismo perfeito na Modernidade e, desde meados do século XX, tornou-se informação.

Parece que, ao desvendar o “segredo da vida”, foi franqueado um portal de conhecimento que permite a manipulação do corpo até suas últimas conseqüências. A morte é o limite a ser vencido. Desde a descoberta do DNA até esse início do século XXI, a ciência, nas suas mais diversas áreas, construiu um arsenal que modifica completamente sua relação com aquilo que se chama vida. Genética, biotecnologia, informática e nanotecnologias encontram-se e misturam-se, colocando no jogo armas capazes de mudar as próprias regras. Tradicionais binarismos modernos estão se reconfigurando. As fronteiras entre natural/artificial, humano/animal, orgânico/máquina são cada vez menos visíveis. Manifesto Ciborgue (HARAWAY, 2000), é uma apologia a esse borramento dos limites.

Neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos — teóricos e fabricados— de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. [...]. Esse ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção (HARAWAY, 2000, p.41 e 42).

Haraway (2000) aposta na confusão como possibilidade de construção de outras políticas de verdade. Na confusão não encontraremos quem sempre fomos, mas recriaremos aquilo que viremos a ser. O humano e a máquina estão se fundindo. Os ciborgues não necessariamente portam próteses, mas têm suas capacidades modificadas pelos diversos artefatos tecnológicos com os quais interagem cada vez mais intensamente. Essa fusão se aprofunda cada vez mais com a criação de máquinas portáteis, que carregamos junto ao corpo, fazendo delas apêndices cada vez mais indispensáveis. São os computadores de bolso, os celulares que fundem funções diversas, os chips que podem ser implantados sob a pele e os vários smart devices41 que estão sendo desenvolvidos. O corpo obsoleto, com elementos

degradáveis, está sendo reconstruído pelas máquinas. Para a autora, esse corpo ciborgue que emerge na Contemporaneidade será capaz de construir um novo modelo social, onde as marcas culturais, tais como gênero e etnia, se dissolvam. O corpo, fonte de sofrimento, se fundiria no maquínico para eliminar identidades marginalizadas. O objetivo de Haraway é a construção de um mito irônico e polêmico, distante do Humanismo e promotor de uma época que supere as antigas desigualdades.

41 Smart devices ou, em português, dispositivos inteligentes são artefatos portáteis que serão carregados

ou incorporados à roupa ou, no limite, colados ao corpo, para desempenhar funções diversas relacionadas na maioria das vezes com trocas e armazenamento de informações.

Segundo Lenoir (2000), estamos vivenciando um novo Renascimento. Enquanto aquele ocorrido nos séculos XIV e XV deu origem ao Humanismo, o atual, articulado com as tecnologias contemporâneas, está anunciando uma era pós-humana, em que a condição humana será ultrapassada com auxílio das máquinas. As tecnologias estão mudando nossa percepção do mundo, do tempo, do espaço e de como utilizar nosso corpo. “Os novos meios baseados em computadores estão reformulando os canais de nossa experiência, transformando nossa concepção de ‘real’, redefinindo nosso significado para ‘comunidade’ e até mesmo o que compreendemos por nós mesmos” (LENOIR, 2000, p.77). Os transplantes de órgãos questionam a fronteira entre morte e vida e confundem o conceito de posse do próprio corpo. Os transplantes de órgãos animais fraturam os limites do humano. Os implantes e próteses desconstroem as fronteiras entre o mineral e o orgânico. “Um sangue desterritorializado corre de corpo em corpo” (LÉVY, 1996, p.30). O corpo perde sua individualidade, assumindo uma dimensão coletiva. Conforme Lévy (1996), o corpo é virtualizado pelas infinitas possibilidades que se abrem para sua reconstituição com as tecnologias atuais. Sua virtualização, entretanto, não significa sua desmaterialização. “A virtualização do corpo não é portanto uma desencarnação mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogênese do humano” (LÉVY, 1996, p.33). O corpo virtual de Lévy não é um espectro, mas uma materialidade transformada com ajuda dos aparatos tecnológicos.

A Medicina por imagens está borrando as fronteiras entre exterior e interior do corpo, ao fazer ver, sem rasgar a pele, aquilo que ela antes ocultava. As imagens médicas fazem surgir novas peles. No corpo contemporâneo, o limite que separa seu interior do exterior está sendo ameaçado. A pele é cada vez mais transparente. Os signos que descrevem o corpo e permitem sua leitura sofreram profundas mudanças: no século XIX dissecavam-se cadáveres para traçar desenhos de anatomia e produzir atlas médicos; no século XX, os sistemas de representação se aperfeiçoam e tornam possível olhar o interior sem feri-lo; nos dias de hoje, recursos radiográficos mostram detalhes desconhecidos até então e o uso de imagens tridimensionais auxilia na visualização. A brutal exposição das vísceras dos corpos frios é transmutada numa discreta e elegante fotografia captada através de uma pele que se torna transparente.

Atualmente, as tecnologias de informação tornaram possível simular computacionalmente o funcionamento do corpo humano. Com o uso da técnica dos

elementos finitos42 podem-se prever os efeitos sobre o corpo de fatores diversos, como

movimentos repetitivos, interações entre o corpo e próteses, ações de forças externas e crescimento de tumores, entre outros. Os resultados são obtidos por meio de complexos cálculos matemáticos e são representados por figuras, cujas cores consistem numa mensagem a ser decodificada. Esses modelos permitem acessar informações que as imagens geradas a partir da materialidade do corpo ou mesmo a exposição material das vísceras não poderiam revelar. O modelo torna-se mais real que seu referente, torna-se hiperreal43 (LENOIR, 1997).

No final da década de 80, quando Haraway (2000) escreveu seu manifesto, vivia-se um momento em que as possibilidades da tecnociência explodiam e pareciam acenar com novas possibilidades para o humano. Talvez estivéssemos num momento em que seria possível surpreender a própria história, produzindo, como imaginam Jódar e Gómez (2005), um sujeito sem identidade, que se opusesse a individualidades normalizadas e se mostrasse num caleidoscópio. Mas, parece-me, que esse instante fugidio nem bem surgiu e já se apagou. Desde a publicação do manifesto, no final da década de 80, muitas outras fusões aconteceram.As identidades contemporâneas são mais fragmentárias, voláteis e nômades do que as identidades modernas, até mesmo porque as próprias normas são cada vez mais instáveis. Ainda assim, a normalização não parece estar perdendo sua força, pois as normas são cada vez mais baseadas em princípios reguladores, que as naturalizam e fazem com que os sujeitos em condições de conhecê-las e compreendê-las as abracem e retomem por conta própria com menor resistência44.As fronteiras estão sendo borradas, porém os sulcos que as

substituem podem exercer um controle até mais intenso. Nesses tempos fáusticos, pretendemos mudar a natureza. Manipular o corpo, criar novas formas para o corpo, torna- se quase um imperativo. Entretanto, segundo Bauman (2004, p.73), a normalização da identidade atinge tal intensidade que parece haver reduzidas chances de escape.

No discurso popular, a cultura se apresenta cada vez mais como a parte herdada da identidade que não se pode nem deve remendar (senão por obra e risco de quem remenda), enquanto os traços e atributos tradicionalmente

42 Técnica de simulação computacional para prever o comportamento físico de um determinado

sistema.

43 Para Jean Baudrillard (1991), estamos vivendo em uma época onde o significado do real está em

crise: o real entendido como aquilo que pode ser copiado, simulado, cede espaço para modelos sem um real que os origine, para modelos que precedem o real, para o hiperreal.

44 Cabe ressaltar que uma parcela crescente da população está sendo alijada do processo de

normalização por não ter acesso a informações sobre as normas ou por não ter condições de compreendê-las. A compreensão de normas baseadas em princípios de prevenção de risco, características da biopolítica contemporânea, necessita uma determinada concepção de espaço-tempo que alguns segmentos sociais não desenvolveram. Desse modo, esses discursos têm dificuldade de capturar e produzir processos de subjetivação nesses sujeitos.

classificados como “naturais” (hereditários, geneticamente transmitidos) são cada vez mais considerados sujeitos à manipulação humana e portanto abertos à escolha —uma escolha em relação a qual, como sempre, quem escolhe deve sentir-se responsável e assim ser visto pelos outros.

Depois da valorização do corpo no Renascimento e de sua massificação na Modernidade, a arte contemporânea quer reconstruí-lo. Talvez a manifestação artística mais representativa da Contemporaneidade seja a chamada body art45, que está articulada com a

noção de uma natureza a ser manipulada. Os dois artistas de maior projeção nesse campo são Stelarc e Orlan. Na página de abertura do site do australiano Stelarc, encontra-se repetida algumas vezes a frase “O corpo está obsoleto”, indicando a orientação de seu trabalho. Ele explora o acoplamento do corpo com a tecnologia. Para o artista “Já não se trata de perpetuar a espécie humana por REPRODUÇÃO, mas de potencializar o intercurso macho-fêmea por uma interface humano-máquina” (STELARC, 2005, grifo no original). Em sua obra, o que se destaca é o uso de seu próprio corpo acoplado a máquinas e próteses, proporcionando espetáculos que se colocam num limiar entre o repulsivo e o fascinante, de um ser humano amplificado nas suas funções pela tecnologia ou literalmente conectado ou teleoperado a distância por outros.

Se Stelarc (2005) quer acoplar o corpo às máquinas, para Orlan (2005) o corpo é algo a ser transfigurado. Ela leva o conceito de corpo-arte ao extremo e tem reconstituído sua face por meio de cirurgias plásticas. O caráter artístico destes procedimentos fica por conta de que em cada cirurgia uma parte do rosto é reconstituída à imagem de uma pintura renascentista: queixo da Vênus de Botticelli, testa da Gioconda e assim por diante. O processo de transformação do corpo é a própria expressão artística e não seu resultado estético. As intervenções cirúrgicas têm caráter performático, funcionando como instalações, tendo em vista a preparação realizada no próprio ambiente.

Na atualidade, cada um parece se tornar um adepto da body art, manipulando o próprio corpo das mais diversas maneiras: tatuagens, piercings e modelagem do corpo através de exercícios, dietas, cirurgias e tratamentos estéticos. Criador e criatura fundem-se num só corpo. As técnicas para cuidar do corpo vão bem além da manutenção da saúde. Cada um é convidado a uma permanente vigilância sobre seu corpo, com o objetivo de modificá-lo e conformá-lo a padrões adotados de acordo com as conveniências. Atualmente, o corpo é a própria representação do sujeito, refletindo seus valores e comportamentos. É um

45 Forma de expressão artística pela modificação do corpo, que inclui diversas formas de intervenção:

patrimônio a ser gerido e sobre o qual deve-se exercer um trabalho permanente para realizar as benfeitorias necessárias. “Todo corpo contém a virtualidade de inúmeros outros corpos que o indivíduo pode revelar tornando-se o arranjador de sua aparência e seus afetos” (LE BRETON, 2003, p.32). A tecnologia reduz continuamente a função produtiva do corpo, tornando-o, cada vez mais, um avatar de presença. Cada um deve manipular o próprio corpo, de modo a criar um ícone que o represente adequadamente.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 90-95)