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O Espaço e o Tempo da Razão Iluminista

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 37-40)

A separação entre espaço e tempo que se opera no Renascimento, conjugada com uma noção objetiva da representação do espaço —baseada na geometria e na ciência ótica—

ele é atribuída a idéia de nominar de Atlas o conjunto de cartas geográficas. Sua obra terá grande influência sobre a cartografia moderna (SCHILLING, 2005).

11 Esses primeiros relógios eram movidos por sistemas de pesos e, em geral, não contavam com

ponteiros de minuto. No século XVI foram inventados os relógios movidos por molas, o que os tornou menores e mais precisos.

e do tempo —entendido como linear e quantificável— coloca-se como condição para a emergência da concepção objetiva e científica do Iluminismo e da ordem moderna.

Ainda em meados do século XV, durante o Renascimento, o cardeal Nicolau de Cusa lançou o tratado Sobre a douta ignorância, em que tenta mostrar a existência de um espaço único, que incluiria o Céu e a Terra. Sua defesa de uma compreensão do cosmo baseada em princípios matemáticos e de idéias que seriam o fundamento da física do século XVII o coloca como um dos precursores da ciência moderna. Sua concepção de um universo sem limites e sem centro estilhaça o espaço medieval e a teoria geocêntrica simultaneamente (WERTHEIM, 2001). Para Cusa, havia apenas um mundo universal, negando o dualismo do espaço do corpo e espaço da alma. Além disso, seu espaço ilimitado continha um número infinito de outros mundos, ou seja, uma infinidade de astros, todos eles habitados. Os seres que habitavam os outros mundos poderiam ser diferentes de nós, mas não melhores ou piores. Apesar de extraordinárias para uma época que antecede em meio século a invenção do telescópio, suas idéias tiveram pouca repercussão entre seus contemporâneos. Elas não se enquadravam nos regimes de verdade vigentes, não estavam na ordem do discurso medieval, o que tornava difícil que encontrassem ressonância na época.

O primeiro a produzir rupturas mais amplamente reconhecidas na cosmologia medieval foi Copérnico, que, no século XVI (entre 1530 e 1542), realizou um minucioso estudo mostrando ser possível um sistema heliocêntrico, embasando matematicamente essa concepção já aceita pelas camadas de maior cultura na época (WERTHEIM, 2001). Ainda assim, o estudo de Copérnico não aboliu a distinção entre espaço celeste e espaço terrestre. O espaço copernicano mantém a divisão medieval, seu pensamento ainda não está do lado da racionalidade moderna. Johannes Kepler, no início do século XVII, unificou o espaço dualista medieval, integrando os mundos celeste e terrestre num único domínio físico (WERTHEIM, 2001). Os corpos celestes também passaram a ser entendidos como corpos materiais que obedecem às mesmas leis físicas do espaço terrestre. A unificação do espaço marca uma transformação muito mais profunda nas percepções do mundo do que aquela causada pela teoria heliocêntrica. De certa maneira, Kepler formaliza as idéias que Nicolau de Cusa tivera dois séculos antes.

Enquanto Kepler construía teorias para explicar o cosmo, Galileu o observava pelo telescópio que inventou em 1610. O novo “tubo ótico”, que tornava possível ver as montanhas da Lua e as manchas do Sol, encerrava definitivamente a crença medieval de um espaço celeste imutável e imaterial (WERTHEIM, 2001). No século XVII quase todos os estudiosos e intelectuais já aceitavam o heliocentrismo e a hipótese de que o espaço celeste

continha corpos materiais. Entretanto, continuava em aberto a questão sobre os limites do cosmo. Haveria limites externos ou seria ele efetivamente infinito, como acreditava Cusa? A noção de espaço infinito encontrou maior resistência porque implicava em refutar a crença aristotélica-cristã de que a organização do espaço era um reflexo de Deus. Um Deus infinito, superior a todas as coisas, não poderia criar um espaço igualmente infinito.

Mais de duzentos anos após Cusa, no final do século XVI, Giordano Bruno voltou a defender o espaço infinito, reconstituindo as relações entre o divino e o espaço. Para ele, Deus seria infinito e só poderia se contentar com a criação de um espaço igualmente infinito (WERTHEIM, 2001). A aceitação do espaço infinito foi conseguida por René Descartes, durante a primeira metade do século XVII. O universo cartesiano era um espaço infinito onde se moviam corpos materiais conforme leis físicas gerais. Ainda que fosse profundamente religioso e que imputasse suas descobertas a uma revelação mística, comunicada por um anjo incumbido de lhe revelar a verdade, sua concepção mecanicista do universo foi interpretada pela maioria dos seus contemporâneos como um construto ateu. A representação mecanicista do universo seria consolidada com a obra de Isaac Newton, na segunda metade do século XVII. A mecânica newtoniana tornou possível completar a unificação dos espaços celeste e terrestre, iniciada por Kepler, ao estabelecer a lei da gravidade: a mesma força que faz uma maçã cair, anima a órbita dos planetas e da Lua. Indo mais além, sendo a gravidade uma força de atração entre duas massas, os corpos celestes necessariamente são constituídos por matéria. As leis de Newton acabam com as controvérsias da época, consagrando um espaço contínuo com corpos celestes materiais (WERTHEIM, 2001).

No cosmo Iluminista povoado de matéria não há lugar para um Deus imaterial. Nesse espaço homogêneo só um tipo de realidade é possível: a realidade física da matéria concebida pela racionalidade científica. Se no espaço heterogêneo e dualista medieval era possível acomodar corpo e alma, agora a alma não pode ocupar lugar algum. O espaço fisicalista parece não dar lugar à existência da alma. O Iluminismo é a Idade da Razão, que deporta Deus e coloca o Homem no centro da realidade. Um espaço homogêneo e um tempo objetivo participavam do projeto de emancipação do Homem, pois podiam ser manipulados e organizados racionalmente. A seta do tempo apontava para o futuro, fazendo acreditar no contínuo progresso da Humanidade por meio do desenvolvimento científico. O domínio do espaço parecia tornar possível uma sociedade mais justa e democrática. “Na visão iluminista de como o mundo deveria ser organizado, mapas e cronômetros precisos constituíram instrumentos essenciais” (HARVEY, 2001, p.227). Os mapas iluministas eram absolutamente

matemáticos e impessoais, eliminando qualquer resquício de subjetividade e sensorialidade e das práticas que os produziram. Os lugares eram localizáveis pelas suas coordenadas. O tempo cronometrado fez surgir uma concepção específica de história, baseada na ordenação cronológica dos fatos. O mundo iluminista era um mundo regido pela mecânica newtoniana. O princípio físico da ação e reação, expresso na terceira lei de Newton, dissemina-se, fazendo com que o contexto social passe a ser pensado de forma dicotômica em termos de causa e efeito. A ordem científica dos eventos físicos acaba sendo aplicada de forma generalizada e totalizante.

O tempo do Iluminismo é o tempo do relógio, tempo coletivo que irá reger a vida da cidade. O tempo determinado por necessidades pessoais e fenômenos naturais ficou para trás. A experiência subjetiva do tempo, ligada aos ritmos da vida, gradativamente passa a ser entendida como um engano que os sentidos nos levam a cometer. O espaço tornou-se um pano de fundo neutro, homogêneo e abstrato, onde se desenrola a ação social. Nesse espaço, dominado e manipulado pelo uso da geometria euclidiana, os lugares podem ser localizados com precisão. E é a noção de lugar que irá simultaneamente complementar e se antepor à noção de espaço. O lugar é onde se desenrolam as vidas cotidianas, sendo entendido como uma porção do espaço recortada de forma subjetiva e cujo sentido é construído pelas práticas sociais e culturais.

Os significados objetivos do espaço se consolidam no senso comum pela sua fragmentação em propriedades privadas. A partir de então, o espaço tornou-se um bem que pode ser quantificado, dividido e ter seu valor calculado. A propriedade da terra transformou o espaço em mercadoria (HARVEY, 2001). A racionalização do tempo e do espaço foi condição de extrema relevância para o projeto iluminista, cujo objetivo era tornar a sociedade mais justa e emancipar o Homem. Esse projeto nunca conseguiu ser implantado com sucesso e acabou dando lugar a uma sociedade capitalista, que parece estar bem distante do plano original.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 37-40)