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O Corpo-Máquina

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 87-90)

A Modernidade, que colocou o Homem no centro do mundo, não dispensou Deus, mas reconsiderou seu papel. Para Leibniz, o mundo é como um relógio e Deus o relojoeiro que o criou (SIBILIA, 2002). Como uma máquina, após sua criação o mundo funciona por si, sem necessitar a intervenção do criador. Ou seja, o pensamento moderno não nega a existência de Deus, mas sua interferência direta nos assuntos humanos. Dado o impulso inicial, o mundo passou a funcionar segundo leis naturais que não sofrem mais interferência divina. Essa noção fisicalista é caracteristicamente moderna, época em que ciência e tecnologia avançam de mãos dadas e se produz uma proliferação dos mecanismos disponíveis: relógios, moinhos, canhões. O pensamento moderno está impregnado pela Física. O corpo humano é apenas mais uma dessas máquinas perfeitas.

A forma moderna de estar no mundo transformou os significados dados ao corpo humano. Se para os medievais a realidade primária estava na alma, o Homem moderno transforma-se num autômato de órgãos, ossos e músculos. Descartes, no século XVII, cindiu o ser humano em duas substâncias: a mente pensante, de origem divina (res cogitans) e o corpo-máquina, pertencente à natureza e passível de estudo científico (res extensa)36.

Gradativamente a res cogitans foi sendo deixada de lado. O próprio pensamento acabaria, no século XX, por tornar-se uma reação bioquímica da res extensa. O corpo passou a ser percebido como um mecanismo complexo, cujo funcionamento poderia ser compreendido pelo conhecimento das leis universais que o regem. À Medicina caberia fazer reparos quando o corpo-máquina apresentasse algum defeito, bem como garantir sua correta manutenção. A fim de cumprir essa tarefa, foi necessário deixar de lado alguns preceitos religiosos e examinar o corpo, com seus órgãos, sangue, secreções, até seus pontos mais recônditos, de modo a conhecer todos os segredos dessa máquina. Paradoxalmente, o corpo-máquina tornou-se um cadáver inerte, esfacelado, com suas vísceras expostas, violentado pelo saber médico (SIBILIA, 2002). A vida era uma exceção inquietante dos corpos frios, que serviram como base para as teorias e explicações das estruturas do corpo.

Até o século XVII, a estática da anatomia tinha primazia sobre a dinâmica da fisiologia. Tentava-se explicar o movimento das engrenagens por uma imagem congelada da

36 Segundo Rorty (apud BENDASSOLLI, 2002), a noção de mente foi inventada por Descartes. Ainda

que se possa inscrever o pensamento cartesiano numa tradição platônica, até então se considerava que o homem era composto por corpo e alma. A mente é um produto do racionalismo moderno, sendo tomado por Descartes como o lugar da razão e do conhecimento. Além disso, ainda que a noção de corpo e alma como elementos distintos emirja na filosofia grega, somente em Descartes (2003), na obra Discurso do Método, elas serão consideradas substâncias distintas e independentes.

máquina. O corpo estático da anatomia mostrou as peças do corpo-máquina, mas não foi capaz de mostrar seu funcionamento. Os preceitos médicos inventados em Atenas na época de Péricles (em torno de 600 A.C.) perduraram praticamente inalterados por cerca de 2300 anos (SENNETT, 2003a).

Em 1628, o aparecimento da obra De motu cordis, de William Harvey, iria abalar essas noções. Harvey, considerado o fundador da fisiologia moderna, observou seres vivos para entender seu funcionamento. Fixou sua atenção na circulação sangüínea. Juntamente com seus discípulos, arrancava corações de cadáveres frescos para ver se continuavam se contraindo após a morte. Os estudos de Harvey revolucionaram a compreensão do corpo humano e tiveram efeitos em outras áreas do conhecimento. As noções de circulação criadas por Harvey serviram como base para os projetos urbanísticos: as vias urbanas foram comparadas com veias e artérias e o ar deveria circular de forma análoga ao sangue no corpo para manter a sanidade ambiental. Harvey também inspirou outras investigações no campo da fisiologia. Poucos anos após a publicação de seu trabalho, surgem outras obras tratando, por exemplo, do sistema nervoso, da respiração e da reprodução (SENNETT, 2003a).

A obra de Harvey, contemporânea aos trabalhos de Galileu, insere-se na mesma perspectiva de desafio aos conhecimentos tradicionais, questionados por meio de observações empíricas. Enquanto Galileu observava o céu com seu telescópio, Harvey voltava sua atenção às pulsações do corpo, procurando compreender a circulação do sangue. A ciência deixou a alma de lado e concentrou-se no corpo. Esses novos saberes deram condições para o próprio surgimento da disciplina moderna: o corpo a ser disciplinado era um corpo cujo funcionamento vai sendo gradativamente conhecido. O corpo para ser útil precisava ser saudável. Devia ser isolado da sujeira e inserido dentro de sistemas ordenados. Somente o corpo saudável poderia ser docilizado e treinado para o trabalho. A noção de higiene iria nortear a produção da ordem moderna, inspirando os novos modelos urbanísticos e articulando-se com as formas de governamento dos sujeitos.

A busca de corpos saudáveis inverteu a máxima soberana, procurando meios para fazer viver e, apenas quando não houvesse mais nada a fazer, deixar morrer, articulando-se com o surgimento do biopoder (FOUCAULT, 2002). A produção de corpos sãos tornou-se central na sociedade de normalização. Boa parte da informação estatística, desde sua origem, estava (e ainda está) ligada à saúde: nascimentos, mortes, doenças, hábitos. O urbanismo organizou cidades mais higiênicas, o sanitarismo ganhou importância, as casas se reconfiguraram, pesquisas foram realizadas para evitar e tratar doenças, campanhas ensinaram novos hábitos à população. A saúde é um dos pontos-chave da sociedade

moderna. Os mecanismos do corpo-máquina foram gradativamente desvendados. Conforme já vimos no capítulo 4, se a Modernidade inventou um corpo-máquina passível de ser disciplinado, inventou também um corpo-espécie, que foi chamado população, sobre o qual atuavam as forças biopolíticas. Os saberes médicos, ao expor as vísceras e mostrar o funcionamento do corpo, produziu um conhecimento sobre a vida humana que se constituiu numa das principais condições para a emergência do biopoder, cujo objetivo é administrar e regular o corpo-espécie.

Os estudos sobre anatomia e fisiologia humana prosseguiam. Entretanto, a noção de um corpo formado por humores, substâncias necessárias para manutenção da vida, resistiu desde Hipócrates até o século XIX, quando Rudolf Virchow estabeleceu uma nova forma de compreender as patologias, baseada nas alterações celulares (REZENDE, 2005). A substituição dos humores pela estrutura celular promoveu uma nova revolução na medicina e no modo de pensar o corpo. Esses conhecimentos surgidos no século XIX, juntamente com o abalo provocado ao mundo mecânico moderno pelas teorias físicas do século XX, foram gradativamente dissolvendo a idéia de um corpo-máquina. As vísceras expostas já não apresentavam mais segredos. Para conhecer já não era necessário cortar, mas penetrar numa nova ordem espacial. O novo não estava sob a pele, mas nas microscópicas células (REZENDE, 2005).

A arte renascentista redescobriu o corpo e a arte moderna o multiplicou e massificou. Se a escultura, com seu volume e sua solidez, era a mais representativa expressão cultural do Renascimento, as técnicas industriais de reprodução da imagem do corpo são as expressões características da Modernidade. A fotografia e, posteriormente, o cinema expõem o corpo com a rapidez e precisão que caracterizam os tempos modernos (ROSÁRIO, 2005).

Como Prometeu37, a tecnociência moderna propôs-se a dominar a natureza para

proporcionar à espécie humana o que entendia ser uma vida melhor. O conhecimento científico foi tomado como um vetor capaz de gerar o progresso. A ciência parecia ser o instrumento necessário para construir uma sociedade justa e racional. O conhecimento moderno inscreve-se numa tradição prometéica (MARTINS apud SIBILIA, 2002), que se assenta na crença de uma evolução crescente e permanente, mas cujos avanços encontrarão, inevitavelmente, limites intransponíveis. A ciência moderna nunca pensou em vencer a

37 Titã da mitologia grega, roubou o fogo divino de Zeus para o dar aos homens, com o intuito de

promover o bem-estar. Como castigo Zeus ordenou que fosse acorrentado a um rochedo, onde todos os dias uma águia ia comer-lhe o fígado. Sendo Prometeu imortal, o órgão voltava a se regenerar. Simboliza a arrogância da Humanidade em tentar tomar para si prerrogativas divinas, o que resulta em severo castigo.

morte e tornar os indivíduos imortais. Contentava-se em proporcionar-lhes uma vida mais longa e com menos sofrimento. Fazer viver o quanto mais e o quanto melhor possível. Mas sabendo da inevitabilidade de deixar morrer.

Mas a ciência alçou vôos cada vez mais altos. Os sucessivos avanços fizeram surgir o desejo de não apenas aprimorar a condição humana, mas de ultrapassá-la. Como uma velha pele, abandoná-la. À medida que se tem avançado na Contemporaneidade, Prometeu, como num processo de morphing38, transforma-se em Fausto39 (MARTINS apud SIBILIA, 2002).

Decide pagar o preço para viver no Olimpo. O conhecimento contemporâneo cada vez mais tenta ultrapassar aquilo que se imaginava ser os limites do divino. A ciência já não trabalha para que se encontre a verdade40 e para que se construa uma sociedade mais harmônica, mas

para controlar a natureza e para trazer benefícios individuais para aqueles que tenham condições de acesso. Já não há limites: até mesmo a vida pode ser ilimitada. A ciência prometéica torna-se ciência fáustica na Contemporaneidade.

A Modernidade não se arrogava o poder de aperfeiçoar o corpo: já era o bastante conservá-lo, retardar sua degradação. Mas os avanços foram grandes demais para manter essa modéstia. Os conhecimentos que foram sendo desenvolvidos trouxeram os delírios contemporâneos, que dariam arrepios aos velhos cientistas aliados de Prometeu. Já não se trata de preservar, mas de criar. Criar corpos mais perfeitos e, no limite, criar a própria vida. Ao contrário de Frankstein, é a criação de uma vida administrável, que nada tenha de monstruosa, que não possa se voltar contra o criador. A tecnociência contemporânea inventou corpos obsoletos e pretende criar o homem pós-orgânico.

No documento OUTROS TEMPOS, OUTROS ESPAÇOS (páginas 87-90)