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artiCulaçõEs Em dEFEsa da rEForma aGrária

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 103-108)

Sérgio Sauer

Com o processo de redemocratiza- ção política do Brasil, o qual teve iní- cio em fins dos anos 1970, resultando no primeiro governo civil, em 1985, e no processo Constituinte, entre 1987 e 1988, os movimentos sociais agrários

retomaram e deram um caráter nacio- nal às lutas por terra. Surgem novos movimentos sociais (ver MoviMEn- to dos traBalhadorEs rurais sEM

tErra) que, associados às organizações

Pastoral da tErra e sindicalisMo

Rural), ampliaram as lutas e intensifi-

caram as demandas por Reforma Agrá- ria em todo o Brasil.

Anterior a esse processo de abertu- ra política, enfrentando os duros anos da ditadura militar (1964-1985), foi criada, em 1969, a Associação Brasi- leira de Reforma Agrária (Abra), sob a coordenação de José Gomes da Silva. A história e o compromisso da Abra com os temas do campo, na verdade, estão intimamente ligados a seu idealizador, fundador e principal liderança. Assim como seu principal coordenador, a Abra e os acadêmicos a ela vinculados foram incansáveis na articulação e na defesa da Reforma Agrária, mesmo nos anos mais duros da ditadura.

Como lembra Sônia Moraes, José Gomes da Silva, um engenheiro agrô- nomo e militante incondicional da Reforma Agrária, “era um obstinado pela justiça no campo” (2006, p. 15). Suas posições e militâncias, portanto, faziam-se presentes na agenda e arti- culações da Abra, especialmente nos debates teóricos e no “apoio à luta pela terra”, sendo a associação um “lugar de acolhimento e incentivo aos movimen- tos sociais existentes no país” (Moraes, 2006, p. 16).

Em um contexto de constantes ameaças, perseguição política e repres- são, a Abra fez coro com outras en- tidades e organizações do campo – a exemplo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975, e da Confede- ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), criada em 1963 – na defesa dos povos do campo, no in- centivo a grupos de estudo e reflexão, e em ações e mobilizações em prol da Reforma Agrária. Segundo Carvalho, a Abra se tornou “um espaço de agre-

gação de pessoas de vários matizes, de pesquisadores universitários e autôno- mos; uma escola de Reforma Agrária, um centro de pensamento e de ação” (2006, p. 28).

Já nos anos de abertura política, a Abra – como “lugar de acolhimento e incentivo aos movimentos sociais” en- tão em ascensão – mobilizou e partici- pou ativamente nas lutas políticas, auxi- liando nas formulações e mobilizações por um país democrático e no processo Constituinte, com José Gomes da Silva atuando como um dos principais ani- madores da participação popular e como o formulador da emenda cons- titucional de Reforma Agrária (Silva, 1987), assumida pela Campanha Na- cional pela Reforma Agrária (CNRA) e entidades do campo, a exemplo da CPT, Abra, Contag, e do então recém- criado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A Campanha Nacional pela Refor- ma Agrária (CNRA) foi organizada nos anos 1980 e coordenada pelo Betinho (Herbert de Souza), então liderança importante de uma organização não governamental, o Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas (Ibase), sediado no Rio de Janeiro. Essa cam- panha desembocou, já nos anos 1990, no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA), outra rede importante nos processos de articulação, mobilizações e lutas por terra no Brasil.

Em pleno processo de redemocra- tização política e de ascensão das lutas por terra, várias entidades articularam a CNRA a partir de 1983, como uma ma- neira de apoiar as demandas populares e as lutas por Reforma Agrária. Segun- do depoimento de Betinho, no início parecia “difícil construir um discurso

e formular uma proposta de interven- ção social que unisse, pelo menos par- cialmente, a CPT, a Linha 6 da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], a Contag, o Cimi [Conselho In- digenista Missionário] e a Abra”, mas, “depois de nove meses de conversas e articulações, nasceu a CNRA” (Souza, 1997, p. 13).

A CNRA desempenhou importan- te papel político, articulando diferen- tes atores e dando maior visibilidade às lutas do campo e aos muitos casos de violência (assassinatos, tentativas de assassinatos, ameaças de morte etc.) contra os trabalhadores rurais e suas lideranças. Junto com a Abra, contri- buiu nas mobilizações em torno do Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), lançado em 1985 pelo Go- verno Sarney, e nas formulações e propostas ao texto da Constituição de 1988 (Silva, 1987).

Nesse processo de redemocratiza- ção política e rearticulação popular, consolida-se também, a partir do fi- nal da década de 1980, “uma estrutura sindical paralela ao sindicalismo oficial da Contag, com a criação do Departa- mento Nacional dos Trabalhadores Ru- rais (DNTR)” (Picolotto, 2011, p. 2), como prolongamento da Articulação Sindical Sul, formada em 1984 por li- deranças e entidades ligadas ao campo, como a própria CPT, e o então recém- criado Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).

O DNTR, departamento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), além de defender a “liberdade e autonomia sindical” (Picolotto, 2011, p. 2), articu- lou sindicatos de trabalhadores rurais e departamentos estaduais (DETRs) em lutas por direitos e por terra. Isso for- taleceu a bandeira da Reforma Agrária

e as entidades agrárias nesse período. Em meados dos anos 1990, com a fi- liação da Contag à CUT, essa central dissolveu o DNTR, mas ações sindi- cais ampliaram a bandeira da Reforma Agrária (ver sindicalisMo Rural). No

início da década de 1990, federações sindicais e sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) do sistema Contag, além da histórica defesa da aplicação do Es- tatuto da Terra, também “passaram a mobilizar famílias sem-terra e a ocupar áreas exigindo a desapropriação para fins de Reforma Agrária” (Sauer, 2002, p. 149).

Diante de toda essa pressão pela Reforma Agrária, o Governo Sarney, ao lançar o I PNRA em 1985, prome- teu assentar 1,4 milhões famílias em quatro anos. No entanto, as alianças políticas – especialmente as alian- ças com setores ruralistas que deram sustentação ao primeiro governo ci- vil pós-ditadura – inviabilizariam o I PNRA; diante do fracasso do mes- mo, as mobilizações pela Reforma Agrária se concentraram no processo de elaboração da nova Constituição, a partir de 1987 (Sauer, 2010).

Associada a outras entidades e mo- vimentos – Abra, Contag, MST, Cen- tral Única dos Trabalhadores, CPT, Ibase, Instituto de Estudos Socioeco- nômicos (Inesc), entre outros, a CNRA sensibilizou, mobilizou e pressionou membros (deputados e senadores) da Assembleia Nacional Constituinte a incluir um capítulo sobre a Reforma Agrária na nova Constituição (Silva, 1987). Nesse processo, as entidades da CNRA apresentaram uma “Emenda Popular da Reforma Agrária”, subscri- ta por um milhão e duzentas mil pes- soas, emenda com o maior número de apoios (Russo, 2008).

Apesar dessa mobilização e do am- plo apoio à emenda, os embates e dis- putas com as entidades patronais (ver organiZaçõEs da ClassE DoMinantE no CaMPo) resultaram em um texto

constitucional ambíguo, o qual levou as entidades e redes a avaliações nega- tivas, alguns inclusive o consideraram uma grande derrota (Souza e Sauer, 2009). Apesar de a emenda popular ter sido acolhida e a Reforma Agrária fazer parte da Constituição (art. 184 a 186), a inclusão do conceito de “terras produ- tivas” (e a proibição de desapropriação das mesmas, conforme art. 185) foi – e continua sendo – considerada uma der- rota (Souza e Sauer, 2009), levando as entidades e movimentos a retomar as mobilizações e lutas diretas por terra.

As ocupações de terra se amplia- ram e, no início da década de 1990, o governo federal regulamenta os artigos da Constituição, promulgando a “lei da Reforma Agrária” (lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993). A crescente con- centração de ações políticas no plano nacional levou ao deslocamento da CNRA, antes sediada no Ibase, no Rio de Janeiro, para o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA), sediado em Brasília. As mobi- lizações em defesa da Reforma Agrária resultaram, em meados dos anos 1990, na articulação do FNRA, dando segui- mento às ações e articulações da Cam- panha Nacional pela Reforma Agrária. O FNRA foi estabelecido nacio- nalmente por volta de 1995; atualmen- te, é composto por mais de quarenta movimentos sociais, organizações do movimento sindical rural, entidades de representação, pastorais sociais e orga- nizações não governamentais (ONGs) (Sauer, 2010). Fazem parte dele mo- vimentos e entidades como o MST, a Contag, a Federação Nacional dos

Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf), o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Peque- nos Agricultores (MPA) e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil), entre outras organizações e entidades de apoio às lutas por justiça no campo.

Como articulação nacional e espaço de debate e de aliança, as ações (campa- nhas, assembleias, seminários, audiên- cias públicas...) do FNRA são orga- nizadas por temas consensuais, como base de atuação conjunta.1 Mesmo ha-

vendo consenso, o FNRA é um espaço de articulação e discussão, sem que as organizações membro sejam obrigadas seguir as suas decisões (Sauer, 2010).

Com base em acordos políticos, as entidades do FNRA passaram a atuar em temas como reivindicação de atua- lização dos índices de produtividade e campanha pelo estabelecimento de li- mite à propriedade da terra, em 2010 (Sauer, 2010). O FNRA organizou al- guns eventos nacionais com relativo sucesso – entre eles campanhas, semi- nários e conferências, como a Confe- rência Nacional de Terras e da Água, realizada em 2004, que contou com a participação de mais de 10 mil campo- neses sem-terra, agricultores familiares, lideranças indígenas, famílias atingidas por barragens, mulheres camponesas, entre outros.

Assim como o FNRA e a Abra, existem várias redes, associações e fó- runs que lutam pela transformação do modelo agrário, a exemplo da Articula- ção Nacional de Agroecologia (ANA). A ANA é uma rede de entidades que, fundamentalmente, promove, incenti- va, apoia, divulga e articula as experiên- cias em agroecologia (ver agroEco- logia) como uma forma diferente de

produzir no campo e de se relacionar com o meio ambiente. Essas redes exis-

tem como esforços e articulações que procuram ampliar a histórica luta por Reforma Agrária e alterar as formas

ambientalmente predatórias e social e politicamente excludentes de apropria- ção e uso da terra no Brasil.

nota

1 As entidades do FNRA, historicamente, tomaram posição conjunta pela Reforma Agrária

e contra a violência no campo, com ações como a realização da “Conferência Nacional da Terra e da Água” (ver Sauer, 2007), realizada em 2004. Posicionaram-se, também, contra os programas de “Reforma Agrária de mercado”, capitaneados pelo Banco Mundial, entre 1996 e 2000, e, mais recentemente, articularam a campanha nacional pelo limite máximo de propriedade da terra no Brasil.

Para saber mais

Carvalho, A. V. de. Homenagem a José Gomes da Silva. Revista da Abra, v. 33,

n. 2, p. 19-30, ago.-dez. 2006.

grZyBowski, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo.

Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Fase, 1987.

MoraEs, S. H. N. Biografia de José Gomes da Silva. Revista da Abra, v. 33, n. 2,

p. 7-18, ago.-dez. 2006.

Picolotto, E. L. A formação de um sindicalismo de agricultores familiares no

Sul do Brasil. In: congrEsso BrasilEiro dE sociologia, 15. Anais... Curitiba:

Sociedade Brasileira de Sociologia, julho de 2011. Disponível em: http://www. sbsociologia.com.br/portal/index.php. Acesso em: ago. 2011.

Russo, O. A Constituinte e a Reforma Agrária. São Paulo, 2008. Disponível em:

http://www.reformaagraria.net/node/644. Acesso em: abr. 2011.

SauEr, S. (org.). Conferência Nacional da Terra e da Água: Reforma Agrária, demo-

cracia e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Expressão Popular; Brasília: FNRA, 2007.

______. Terra e modernidade: a dimensão do espaço na aventura da luta pela terra. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) – Departamento de Filosofia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2002.

______. Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Silva, J. G. da. Buraco negro: a Reforma Agrária na Constituinte de 1987-88. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1989.

SouZa, H. de. Prefácio. In: sEcrEtariado nacionalda cPt. A luta pela terra: a

Comissão Pastoral da Terra vinte anos depois. São Paulo: Paulus, 1997. p. 11-13. SouZa, M. R.; SauEr, S. A Reforma Agrária e a Constituinte. In: coMissão dE

lEgislação ParticiPativa. Constituição 20 anos: Estado, democracia e participação

A

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