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democracia e capitalismo

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 193-200)

Será com a consolidação do capi- talismo, sobretudo a partir do final do século XVIII, que as reivindicações de- mocratizantes voltarão à cena histórica de maneira mais frequente e com no- vos desdobramentos, porém também reatualizando antigos impasses. Trata- se de uma peculiar configuração histó- rica e social que revolucionou comple- tamente as relações sociais anteriores, baseadas na vida camponesa e servil das grandes massas e na existência de uma nobreza guerreira. A dinâmica capitalis- ta recolocaria sob outro formato o tema da liberdade e da igualdade sociais.

Para apreender as complexas deter- minações que envolvem o tema da de- mocracia, permitindo refletir sobre ela de maneira mais ampla, convém averi- guar os fundamentos da liberdade e da igualdade em sociedades regidas pela lógica capitalista. Como sabemos, o capitalismo é uma forma específica de relação social, na qual a grande maioria

da população é desprovida de meios de assegurar a própria existência (despro- vida de meios de produção). Essa mas- sa urbana e livre originou-se da expro- priação do povo do campo que, sem poder assegurar sua sobrevivência, teve de vender o que lhe restava: a capacidade de trabalhar. Esse trágico processo de expulsão camponesa, entretanto, será apresentado como a realização da anti- ga aspiração de liberdade, uma vez que agora os trabalhadores livres não estão mais submetidos ao controle direto de um proprietário (como estavam os ser- vos ou os escravos). Essa nova liberda- de, a de não mais depender diretamen- te de um senhor, revela-se incompleta, pois é a condição da sujeição aos capri- chos do mercado de trabalho.

Vejamos agora o que concerne à igualdade. Os proprietários de meios de produção (os detentores da rique- za econômica) compram essa força de trabalho como qualquer outra merca- doria, pelo seu valor, que corresponde ao tempo socialmente necessário para reproduzir o próprio trabalhador, mas dispõem do uso dessa força por certo lapso de tempo, no qual podem fazê-lo trabalhar muito mais do que o corres- pondente ao valor dessa força. O ser humano é capaz de produzir muito mais do que necessita para sobreviver, e é esse excedente de trabalho que cons- titui o fundamento do lucro capitalista. A relação que se estabelece entre os detentores de meios de produção (meios que permitem produzir bens e assegurar a reprodução da existência) e os trabalha- dores necessitados de vender sua força de trabalho é considerada uma relação entre iguais, como a que supostamente ocorre em qualquer relação mercantil, qualquer relação de compra e venda.

Como se observa, uma profunda desigualdade se oculta nesta relação

de tipo contratual: para uns, vender a força de trabalho é condição necessária e urgente para garantir a própria sub- sistência; ademais, o crescimento da população exacerba a concorrência entre eles. Assim, a venda da força de trabalho precisa ser assegurada não apenas eventualmente, mas de manei- ra permanente. Ora, mesmo quando o trabalhador consegue vendê-la, não tem nenhuma garantia de conseguir a sua permanência: o risco da demissão é sempre iminente. A própria existência está em jogo.

Para os proprietários, os trabalha- dores serão admitidos ou demitidos, segundo a conveniência para a valori- zação de seu capital, e eles tendem a figurar apenas como mais uma peça na engrenagem do processo produtivo. Sem trabalhadores, a dinâmica capita- lista não pode existir, mas lhe é indi- ferente – e mesmo conveniente – que haja enorme quantidade de trabalha- dores procurando trabalho, ofertando- se ao menor preço. Dessa forma, será possível obter maior obediência dos trabalhadores, atemorizados com a concorrência e com a demissão.

A desigualdade social – o contraste entre a riqueza e a necessidade – é a base da suposta igualdade na relação de compra e venda da força de trabalho. Essa relação é traduzida juridicamen- te na forma do “contrato” – forma que, inclusive, fornece o modelo para a suposição de que o próprio Estado resultaria de uma adesão voluntária a um “pacto” ou “contrato” realizado igualmente por todos e, por essa razão, tornado legítimo e insuperável. Trata- se de uma igualdade apenas formal, cuja essência preserva e aprofunda a desigualdade entre os seres sociais.

A liberdade e a igualdade existentes sob o capitalismo são contraditórias.

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Expressam conquistas históricas, mas reforçam e resultam de desigualdades sociais que tolhem a liberdade da gran- de maioria. Marx e Engels realizaram a mais profunda crítica da sociedade ca- pitalista. Mostraram claramente como a ordem jurídica burguesa – inclusive a que rege os processos eleitorais – resul- ta de uma profunda cisão social, tradu- zida na contraposição entre o âmbito privado e o público. Essa cisão exaspe- ra dois níveis de contradição: preserva a propriedade privada, que condensa e concentra crescentemente o poder econômico, ao mesmo tempo em que idealiza o Estado, como se ele respon- desse a todos de maneira homogênea, como se fosse uma razão acima da vida social. A igualdade formal perante a lei legitima e protege a desigualdade real.

Marx, comentando sobre a separa- ção entre Estado e religião, considera- va que “não há dúvida de que a eman- cipação política [do Estado diante das religiões particulares] representa um grande progresso” (Marx, 2005, p. 22). Não obstante, esse progresso perma- nece insuficiente no que diz respeito à emancipação real da humanidade, que somente pode fundar-se na sua prática concreta de produção e reprodução da existência. O papel real da propriedade privada na vida social capitalista é ocul- tado sob a forma cindida da política, na qual predomina a idealização formal da igualdade:

O Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status

social, de cultura e de ocupação, ao

declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferenças

não políticas, ao proclamar todo

membro do povo, sem atender a estas diferenças, coparticipan- te da soberania popular em base

de igualdade, ao abordar todos os

elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer a sua natureza es-

pecial. Longe de acabar com es-

tas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus. (Marx, 2005, p. 22)

No segundo nível de contradição, Marx sublinha como a forma da pro- dução organizada pelos grandes pro- prietários tende a ser socializada, isto é, realizada de maneira cooperada por to- dos os trabalhadores, cada vez mais in- tegrados numa extensa e complexa ca- deia produtiva e que abrange territórios cada vez maiores, enquanto a forma da propriedade e da organização da vida social segue regida pela propriedade pri- vada, cada dia mais concentrada. Rea- firma a urgência da superação da cisão entre a vida efetiva da grande maioria – a socialização do processo produtivo – e a forma pela qual ela se apresenta, alienada à propriedade privada, sob o Estado capitalista. Antonio Gramsci, o grande pensador italiano, acrescentaria que as lutas históricas dos trabalhadores envolviam tanto a socialização real da existência (com o fim da propriedade privada dos meios de produção) quanto a socialização da política.

A reiteração cotidiana dessas con- tradições suscita no conjunto das pes- soas comuns a percepção tanto das limitações de sua liberdade quanto da inexistência efetiva de igualdade em

contratos (formalizados ou não) esta- belecidos entre desiguais. As reivindi- cações democratizantes, portanto, se intensificam sob o capitalismo, procu- rando superar as limitações impostas por essa forma social de existir que ao mesmo tempo exalta a importância da liberdade e da igualdade e as reduz a palavras com escasso sentido.

Duas grandes guerras civis marca- ram o novo poder burguês: as revolu- ções inglesas do século XVII e a Revo- lução Francesa de 1789. As palavras de ordem desta última, “Liberdade, Igual- dade e Fraternidade”, demonstram a marca popular mesclada com as propo- sições da burguesia então ascendente, limitadas a uma reorganização do Esta- do. Derrotados os setores populares, a Revolução Francesa traduziria a vitória política da burguesia sobre a nobre- za precedente. Entretanto, o Estado que se seguiu a tais lutas nada tinha de democrático.

Ao longo de todo o século XIX, trabalhadores europeus lutaram ardua- mente, com objetivos de abrangências diversas: reivindicavam sobretudo di- reito ao trabalho (jamais conseguido), à participação nos processos de sele- ção de dirigentes, à educação pública e laica; e construíram formas próprias de organização, enfrentando longuíssi- ma e violenta proibição da associação de trabalhadores etc. Muitas dessas lu- tas foram derrotadas em verdadeiros banhos de sangue, como ocorreu na Comuna de Paris em 1871, quando os trabalhadores e a população assumiram seu autogoverno, em todas as dimen- sões da vida: econômica, cultural, edu- cativa, política etc.

As lutas sociais expressavam a pos- sibilidade efetiva de transformar com- pletamente a forma de ser social, de revolucionar o conjunto da existência.

Essa nova organização concreta e a cada dia mais sólida de trabalhadores passou a atemorizar os setores domi- nantes, resultando em modalidades gradativas (mas segmentadas) de de- mocratização, cuja expressão mais conhecida é o direito à sindicalização e ao sufrágio, implantados a partir de finais do século XIX. Esse último somente se tornaria universal poste- riormente, já bem entrado o século XX, quando ocorreu o acesso ao voto para as mulheres.

Novamente, foram conquistas sig- nificativas e contraditórias. Com sua incorporação à política, os trabalhado- res, em maior número, poderiam (ao menos em princípio) alterar a forma da organização da vida social. No entan- to, as conquistas tiveram também um gosto amargo, levando alguns autores a considerá-las uma “domesticação” elitista (Hobsbawm, 1988, p. 125-162), pois a institucionalização do sufrágio levou ao desmantelamento da lógica da organização nacional dos trabalhado- res e uma nova retórica velada dos par- lamentares substituía o debate franco e aberto. Além disso, o ingresso no par- lamento modificava a atuação de certos representantes dos trabalhadores que, afastados de seu meio de origem, se acostumavam aos ambientes luxuosos e passavam a atuar conjuntamente com as classes dominantes. Os custos das campanhas eleitorais, que demonstra- vam a importância crescente do poder econômico, fizeram pensadores libe- rais como Schumpeter, em meados do século XX, dizerem abertamente que o sufrágio universal não significava uma escolha popular, antes expressava a constituição de um mercado eleitoral.

A Revolução Russa de 1917 e a persistência da União Soviética após a Segunda Guerra Mundial introdu- ziram uma tensão constante entre

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um projeto socialista, de democracia social com forte teor igualitário, e o mundo capitalista, que exibia uma de- mocracia política sob a qual se gene- ralizaram importantes direitos sociais, sobretudo para as populações euro- peias e estadunidenses, no que ficou conhecido como o “Estado de bem- estar social”. A experiência soviética, cuja influência foi relevante para asse- gurar conquistas sociais em inúmeros países, apesar de ter resultado de um formidável processo revolucionário, converteu-se numa ditadura partidária com reduzida participação das grandes massas na condução da vida social, o que levaria ao crescimento de desigual- dades internas que minavam o discurso oficial e levariam à sua derrocada.

As prerrogativas democráticas mo- dernas, duramente conquistadas em diversos países, sobretudo a partir do século XIX, são, entretanto, constan- temente revertidas no seu contrário: pelo seu amesquinhamento, ao serem reduzidas à “liberdade da circulação da propriedade e de mercado”, ou pe- los recursos cada vez mais faraônicos envolvidos nos processos eleitorais, o que reafirma o poder econômico (e cultural) na institucionalidade do Es- tado. Embora o sufrágio universal seja vitória da imensa maioria da popula- ção, a permanência das classes sociais impede a sua evolução democratizante (Macpherson, 1978), gerando cinicamen- te reduções da liberdade e da igualdade:

A própria condição que torna possível definir democracia como se faz nas sociedades li- berais capitalistas modernas é a separação e o isolamento da esfera econômica e sua invul- nerabilidade ao poder demo- crático. Proteger essa invul- nerabilidade passou a ser um

critério essencial de democra- cia. Essa definição nos permite invocar a democracia contra a oferta de poder ao povo na es- fera econômica. Torna mesmo possível invocar a democracia em defesa da redução dos di- reitos democráticos em outras partes da “sociedade civil” ou no domínio político, se isso for necessário para proteger a pro- priedade e o mercado contra o poder democrático. (Wood, 2003, p. 202)

Antes mesmo do final da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ao longo de toda a década de 1980, também nos países capitalistas, as conquistas de teor democrático estive- ram sob ataque. Crescia o processo de blindagem do controle econômico (e mi- diático) em relação às decisões políticas, acarretando sucessivas perdas de direi- tos sociais, que prosseguem em nossos dias. Neste ano de 2011, multiplicam-se em todo o mundo reivindicações e lu- tas democratizantes, seja para superar ditaduras, como nos países árabes, seja para denunciar o caráter incompleto de procedimentos eleitorais que se limitam a reproduzir as desigualdades do capital e do mercado, como na Espanha.

A democracia é um conceito ina- cabado e em processo. As reivindica- ções democratizantes incorporam as lutas por igualdade e por liberdade, que não podem estar isoladas. Por essa razão, limitar a definição de democra- cia unicamente ao âmbito político faz submergir as reivindicações igualitárias sob o peso da institucionalização da propriedade do capital. Porém, a cons- trução de uma efetiva socialização da existência supõe a mais ampla e livre participação das massas em todos os processos decisórios.

notas

1 “Ce que je soutiens en fait, c’est que le sustème pleinement démocratique de la seconde

moitié du Ve. s. av. J.C n’aurait pas été introduit s’il n’y avait eu l’Empire athénien.”

2 “[...] les orateurs et les écrivains de cette période (ou ceux qui en parlent) montrent une

conscience de classe si explicite que seul un historien moderne très borné peut garder un silence total sur les divisions de classe.”

Para saber mais

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dEsaProPriação

Miguel Lanzellotti Baldez

Para bem entender o conceito ju- rídico de desapropriação constitu- cionalizado no Brasil como modo de aquisição da propriedade pelo poder

público, ato discriminatório da autori- dade administrativa, que pode executá- lo sem dar satisfação ou pedir licença a qualquer outro poder institucional,

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é necessária uma rápida consideração política sobre o papel do direito numa sociedade dividida em classes como a nossa. Pois bem, o direito imposto no Brasil, disfarçado ou dissimulado em regras abstratas – quer dizer, normas que consideram todos iguais, sem dis- tinguir diferenças sociais nem econô- micas –, é o direito construído histori- camente pela classe dominante, a classe burguesa, hoje representada de modo predominante pelo capital internacio- nal. Essa preliminar é fundamental para bem entender-se que a desapro- priação é instrumento de intervenção administrativa vinculada e submissa à propriedade e, consequentemente, um direito instituído como salvaguarda de quem seja proprietário. Ou seja, embo- ra tratada como efeito jurídico que ex- tingue a propriedade individual, consti- tui, na verdade, o meio que assegura ao expropriado a substituição do bem por outro de igual valor, a indenização (que etimologicamente significa deixar sem danos o patrimônio do proprietário), cujo pagamento deve ser prévio, em di- nheiro e conforme valor de mercado.

E o trabalhador alguma hora é pro- prietário? Às vezes é, mas sendo, sem- pre, ou quase sempre, construir a casa própria exige dele grande sacrifício. Compra ou ocupa um terreno e vai aos poucos construindo a casa na medida em que lhe sobra, no correr do tempo, do parco salário ou da noite de sobre- trabalho, um tanto qualquer para iniciar e prosseguir na construção, até que, pas- sados cinco, oito, dez anos, tem a casa pronta, ou, no mínimo, habitável...

Mas é muito difícil que, no campo ou na cidade, o trabalhador consiga tornar-se proprietário, pois o Códi- go Civil, tanto o de 1916-1917 quanto o atual, de 2002-2003, só admite qua- tro modos de aquisição da propriedade:

registro imobiliário quando se trate de ato entre vivos (venda e compra, que exige disponibilidade de dinheiro, mo- nopolizado pelo Estado em benefício do capital, e a raríssima doação), sucessão hereditária, que serve para consolidar patrimônios já formados, usucapião – hoje até certo ponto democratizado, mas que historicamente serviu para agregar terra ao latifúndio –, e acessão, modos de aquisição claramente limita- tivos e inacessíveis aos trabalhadores. Resta-lhes a posse ou apossamento individual, como se dá nas favelas, ou coletivo, como se dá principalmente no campo pelo Movimento dos Trabalha- dores Rurais Sem Terra (MST), ou ain- da, na cidade, quando os trabalhadores, afirmando coletivamente a necessidade ética de morar, ocupam a terra. Aí o trabalhador, inevitavelmente definido no campo do direito oficial como pos- suidor, ainda tem de lutar contra a vio- lência contida nas entranhas do capital, para a conservação da posse.

Em suma, quando o poder público exige das classes trabalhadoras, nas ci- dades, a casa ou o terreno em que mo- ram para destinar o bem a qualquer fim público definido na Constituição ou em leis infraconstitucionais relativas à desapropriação, o método, tratando-se do trabalhador, é a violência contida na própria dialética da sociedade brasilei- ra, nas práticas de remoções coletivas sabidamente admitidas por juízes e tri- bunais, cuja leitura da realidade é sem- pre contaminada pela ideologia jurídica própria de sua formação burguesa.

Vale ressaltar que, no campo, em face da tradição das lutas camponesas que confluíram para a bem-sucedida e estratégica ação do MST relativamente à terra, o instituto da desapropriação foi utilizado, de modo muito sutil e

difícil de perceber, para dificultar, re- tardar ou impedir a Reforma Agrária. Entenda-se: nas desapropriações para Reforma Agrária, a terra expropriada só será suscetível de desapropriação quando for comprovadamente impro- dutiva, abrindo-se assim largo lapso de tempo, em processo administrativo e judicial para que o latifúndio, valendo- se de meios legais ou ilegais, fabrique uma duvidosa prova da produtivida- de da terra. Só depois de decorrido esse lapso de tempo estará definitiva- mente concluído o ciclo necessário à aquisição da terra e à consumação do assentamento. Isso se o processo e o procedimento forem bem-sucedidos e diferentes da desapropriação tradicio- nal, historicamente definida como ato de império do poder público, cujo pro- cedimento é ágil e eficaz quando visa aos interesses, legítimos ou não, das ca- madas privilegiadas da população, ten- do de longe e à espreita a especulação imobiliária, essa paroxística modalidade de produção capitalista da cidade.

Com relação ao trabalhador cuja igualdade se esgota no caráter abstra- to da norma jurídica, a desapropriação tem uma face dupla, ou não se aplica, quando poderia, na cidade, favorecer o possuidor do imóvel, assegurando- lhe o recebimento da indenização pela perda do bem, como prevê a Consti- tuição Federal; já no campo, quando se desapropria para efetuar a Reforma Agrária, modifica-se a estrutura legal de seu procedimento com obstáculos e dificuldades formais cujo objetivo é retardar ou impedir de vez a conclusão da Reforma Agrária.

No entanto, a desapropriação em sua tecnicidade, traçada pelo direi- to burguês, é o ritual de que mais se vale o Estado tanto na cidade quanto

no campo quando trata da proteção à propriedade individual ou latifundiária. Por isso, vale abordá-la nos termos e com as formalidades de seu tratamento pelos tribunais e juristas do sistema.

Nesses termos, desapropriação é modo de aquisição da propriedade

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 193-200)