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dEFEsa dE dirEitos

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 187-191)

Marcus Orione Gonçalves Correia

O tema que discutiremos é bastan- te amplo e pode ser analisado a partir de três aspectos: a relação entre justiça e política, a resistência e a conquista de direitos, e a justiciabilidade. Para melhor desenvolver nossa análise, faremos um estudo de cada um desses aspectos, e, por fim, tentaremos uni-los em uma perspectiva comum. Comecemos com a relação entre justiça e política.

De início, deve-se observar a política como o espaço por excelência de reali- zação maior do homem. Na sua relação com o outro, a expressão de uma vida comunitária melhor somente se faz pelo exercício constante de um diálogo entre iguais. Para que esse diálogo entre iguais se estabeleça, não devem existir sujeitos com maiores vantagens do que os ou- tros no sistema de escolhas do destino da coisa pública. Assim, para que haja uma verdadeira participação política, a idéia de igualdade é indispensável. Por outra parte, a noção de igualdade cons- titui a base da concepção de justiça. Portanto, e de forma sintética, política e justiça se unem a partir do conceito de igualdade. Somente entre iguais é possível que homens, realmente livres, estabeleçam parâmetros para uma vida melhor em sociedade.

Por sua vez, deve-se ter o cuidado para não se fazer qualquer confusão entre o direito e a justiça. A noção de justiça é muito maior do que a noção de direito, que, como construção de poder, costuma realizar uma limitação,

não raras vezes indevida, do primeiro conceito. E, aqui, há um problema, pos- to que o direito, em si, tem verdadeira dificuldade em lidar com a noção de igualdade, típica do conceito de justiça.

É interessante perceber como, em diversas oportunidades, a liberdade e a igualdade são vistas como conceitos antagônicos. A equação, em geral, é a seguinte: liberdade versus igualdade. Essa observação não se cinge ao direi- to, mas atinge os mais diversos cam- pos científicos de observação de ambas (sociologia, filosofia e outros afins).

No direito, a questão se acentua, visto que a liberdade é, como se dá em qualquer fenômeno jurídico, diminuída na sua real extensão. A explicação é clara: o positivismo jurídico está ha- bituado a realizar recortes, evitando a totalidade. Assim, a liberdade ou a igualdade apenas são representadas, no direito, por traços que mais se pare- cem com caricaturas de uma realidade muito mais ampla e densa.

É fato, já de início, que, no ca- pitalismo, a liberdade é, em si mes- ma, uma ficção. Na verdade, estamos muito mais limitados nos nossos ru- mos do que pensamos e mais limita- dos no agir do que imaginamos. Isso, não obstante, é realçado e mesmo acentuado pela dimensão do direito. Assim, temos, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a jornada li- mitadora de trabalho, e o que aparece como uma conquista da civilização, na

medida em que houve a sua diminui- ção; porém, esta mesma jornada imposta pode ser vista, pelo viés do trabalhador, como algo que restringe a liberdade. No direito civil, podemos citar os limites às nossas ações por cláusulas contratuais, às quais, mais aparentemente do que qualquer outra coisa, encontramo-nos livres para aderir. No direito penal, a imposição da pena é fator restritivo de nossa liberdade.

Logo, o direito é apenas mais um instrumento eficaz de restrição das li- berdades. É claro que alguns utilitaristas imediatamente irão lembrar que a liber- dade de um começa onde a liberdade do outro termina. Portanto, qualquer um é completamente livre, desde que não im- pinja, em nome de sua liberdade, ônus à liberdade de outra pessoa.

Não é de se estranhar que esse ra- ciocínio simplista remonte ao século XIX, às observações de Stuart Mill em sua clássica obra Sobre a liberdade. No entanto, no capitalismo, a apuração da liberdade a ser preservada em face da liberdade de outro não passa de sim- ples ilusão. A liberdade, nessa lógi- ca, é substituída imediatamente pela ideia de interesse. O que era liberdade, no capitalismo, equivale a liberdade/ interesse. A noção de interesse, por sua vez, está intimamente relacionada com a de poder. Prevalecem as liberdades, isto é, os interesses dos que detêm o poder. Logo, no capitalismo, liberdade é o mesmo que interesse/poder.

A igualdade, nesse contexto, passa a ser uma dimensão menor. Não se pode fazer que alguém desigual possa, para receber certo benefício social, esco- lher se pretende, ou não, submeter-se às regras de alguém mais poderoso que escolheu por ele. Dizer que a lei é obra de todos é uma falácia, pois o Legislativo, que impingiu as condições, é escolhido

em eleição popular. É claro que aqui não podemos nos sentir confortá- veis com tais “frases feitas” e de pou- co conteúdo no mundo dos fatos. O mundo real, aquele que palpita lá fora, mostra que os poderes hoje são apenas arremedo da vontade popular.

Ora, se os próprios interessados estão alijados do processo de escolhas, não há como se admitir que serão livres com a imposição de condições que al- guns acreditam que lhes farão livres. A lógica de capacidades para a constru- ção de liberdades, assim, merece crí- ticas: que capacidades? Decididas por quem? Para fazer construir que tipo de mundo? Aliás, aqui estamos diante de qualquer crítica que se possa fazer à meritocracia, e devemos nos lembrar das palavras de Paulo Freire, para quem ninguém deve ser considerado titular da autonomia do outro.

Caso não se observem as críticas anteriores, não estamos jogando um jogo de iguais. E liberdade sem igual- dade não significa coisa alguma.

Por isso, entende-se por que alguns preferem fazer uma leitura dicotômica da igualdade em relação à liberdade. Colocadas em lados opostos, fica muito mais fácil para a lógica capitalista a sua própria consolidação. Um capitalismo em que igualdade e liberdade, e acres- cento aqui, solidariedade, fossem postas lado a lado, certamente seria muito difí- cil – se não impossível – de concretizar. Logo, a relação entre política e jus- tiça, observados ainda os limites do di- reito posto, está na busca da superação dos limites de igualdade/liberdade im- postos pela ordem capitalista.

Agora já temos elementos para o segundo aspecto: o direito de resistên- cia como espaço para a conquista de novos direitos. Somente a arena políti-

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ca, na condição de lugar de resistência, é capaz de fazer gerar maior criação de justiça como lugar da igualdade/liber- dade. Sem a primeira, a segunda não se realiza; sem a segunda, a primeira é im- possível. Portanto, a resistência a uma ordem estabelecida conforme certos padrões indicados pela lógica poder/ interesse de certos setores menos com- prometidos com o bem-estar geral da coletividade é a única forma de esta- belecer uma sociedade mais justa. So- mente mediante o exercício do direito de resistência é que podem surgir no- vos direitos, com o que a justiça se fará mais presente.

Diante da violência existente em uma sociedade contra determinados grupos, admite-se o direito de resistên- cia. Há os que falam em direito à deso- bediência civil, postulado por autores liberais como Ronaldo Dworkin, em sua conhecida obra Levando os direitos

a sério. Há os que falam em direito à

revolução, alcunhada pelo prestigiado constitucionalista Friedrich Müller, no seu Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo, que narra o seguinte episódio:

“O último governante da dinastia de Habsburgo reagiu à informação: ‘Majes- tade, revolução!’ com a pergunta ‘Pois é, mas será que eles podem fazer isso?’” (Müller, 2004, p. 14).

Preferimos, em consonância com a mais moderna teoria dos direitos huma- nos, falar em direito de resistência ou de legítima defesa social nos casos em que haja o desrespeito aos direitos fundamen- tais dos segmentos mais pobres da socie- dade, direitos ligados ao que há de mais básico e rudimentar na existência huma- na; coisas como direito à terra, à moradia, à alimentação e ao trabalho, por exemplo. Passamos, por fim, para o último item de nossa análise, em que tratamos da noção de justiciabilidade. Ela pode-

ria ser considerada, de forma bastante simplista, a possibilidade de se levar aos canais institucionais a luta pelos direitos, conseguidos por meio da re- sistência, que se realiza pela política e se concretiza, também institucional- mente, pelo direito à resistência. Nessa esfera, a justiça busca se realizar por in- termédio da luta nos canais instituídos, para a construção de uma sociedade mais justa. Essa justiciabilidade geral- mente é concebida em uma noção mais restrita, confundindo-se com a busca pelos direitos no Poder Judiciário. Pre- ferimos acreditar em uma noção mais ampla, em que ela apareça como a pró- pria expressão da resistência, com base na noção de justiça, em todos os canais instituídos em que se dá a construção do direito (inclusive nos poderes Legis- lativo e Executivo).

Política, justiça, resistência, con- quista de direitos e justiciabilidade são expressões que se complementam na busca de uma sociedade que supere as limitações daquela sociedade forma- tada nos atuais moldes restritivos do capitalismo. Para tanto, é indispensável uma leitura sempre crítica do direito e a percepção de que a superação so- mente se faz a partir de uma socieda- de mobilizada, para a qual a noção de justiça como expressão da igualdade é mais importante do que o próprio di- reito. Somente a participação política é forma de concretização da igualdade. Concluímos lembrando que o direito não emancipa ninguém. São as próprias pessoas, livres, iguais e, especialmente, interagindo dentro de organizações, movimentos populares, partidos políti- cos, sindicatos, associações, descobrin- do-se como agentes da sua história e da história do seu país, aprendendo a intervir e intervindo coletivamente na sociedade, que se emancipam.

Para saber mais

canotilho, J. J. g.; corrEia, E. P. B.; corrEia, M. o. g. Direitos fundamentais

sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.

FrEirE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

lyra Filho, R. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.

Müller, F. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2004.

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dEmoCraCia

Virgínia Fontes

O tema da democracia é um dos mais fascinantes e mais difíceis de tra- balhar nas ciências humanas, pois es- pelha fortes tensões na vida social, que se refletem no interior da produção de conhecimento.

Para alguns, o conceito pode ser politicamente circunscrito ao quadro jurídico do Estado e ao seu arcabouço institucional e, sobretudo, eleitoral. A democracia seria uma forma específica de organização da vida política e ad- mitiria viés descritivo (e prescritivo). Aproximado à noção de cidadania, expressaria um ponto culminante na história humana, em razão da aquisi- ção de direitos civis, políticos e sociais (Marshall, 1967). Mesmo para esses, a democracia é muitas vezes apresentada de maneira fluida, como uma “ideia”, simples, atrativa, renitente e, por vezes, assustadora (Dunn, 1995, p. 9-11).

Para outros, dentre os quais me in- cluo, o conceito não pode ser definido de maneira isolada das demais condi- ções socioeconômicas e culturais que organizam a vida social: a política resta

tolhida se não tem acesso às decisões cruciais da vida econômica, se elas per- manecem blindadas sob a propriedade do capital. A democracia denota na atua- lidade ao mesmo tempo um conjunto de reivindicações e uma forma institu- cional, muitas vezes conflitantes.

Sob o capitalismo, hoje mundial- mente dominante e produtor de desi- gualdades, a conquista de direitos, fruto de lutas sociais e políticas, quando res- trita ao âmbito jurídico-político, per- manece limitada. Conquistas políticas – reais e significativas – são coaguladas pela disparidade do poder econômico, político, social e cultural que emana da grande propriedade. As lutas pela democracia, se não enfrentam o con- junto das determinações da vida social, podem alcançar relevantes vitórias par- ciais, mas também podem se converter em formas de acomodação de alguns setores populares, como muitas vezes ocorreu no processo histórico.

Tomaremos o termo em seu senti- do mais amplo e não circunscrito. Em lugar de considerar a “democracia”

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como algo finalizado com a implanta- ção de um regime político, como suge- re a primeira definição, introduziremos o viés da reivindicação democrática ou da democratização (Lukács, 1998, p. 15-16) como correspondendo a uma antiquíssima aspiração, o que não a im- pede de ser mais atual do que nunca: assegurar a igualdade (que é diferente da homogeneidade) de todos os seres sociais, garantir a liberdade de todos e de cada um, proceder de maneira que a direção do destino coletivo emane de todos, e que os benefícios e prejuízos das decisões, com seus erros e acertos, revertam a todos.

As reivindicações democráticas não se limitam a um anseio genérico, mas remetem a lutas concretas de classes exploradas, de subalternos e oprimidos, em diferentes sociedades e em diversos períodos históricos. A história dos ex- perimentos democráticos é complexa: muitas vezes reivindicações democráti- cas obtiveram melhores condições para alguns setores subalternos, ou a incor- poração de alguns grupos na dinâmica social dominante, sem necessariamente colocar em xeque o conjunto da desi- gualdade e sem assegurar para todos as liberdades experimentadas por alguns. A reivindicação democrática será trata- da aqui como a constante atualização das lutas dos subalternos pela demo- cratização permanente, isto é, pela rea- lização concreta das aspirações à liber- dade e à igualdade.

As variadas experiências históri- cas de democratização revelam-se ao mesmo tempo originais e limitadas, demonstrando a intensidade de sua persistência. As lutas democratizan- tes e suas experiências concretas rara- mente se circunscreveram à forma de governo; ao contrário, relacionam-se

ao conjunto das relações sociais das quais emergem.

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 187-191)