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a implantação da reforma agrária de

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 165-168)

mercado no Brasil

O programa do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) apresen- tado na campanha eleitoral de 1994 re- conhecia a necessidade de mudanças em favor da desconcentração da proprieda- de da terra e do fortalecimento da agri- cultura familiar. No entanto, a “Refor-

ma Agrária” era pensada sem qualquer relação com a transformação da estru- tura fundiária brasileira, a democratiza- ção do poder político, o crescimento da produção agrícola e a mudança do mo- delo de desenvolvimento econômico, entendida como a ampliação e o fortale- cimento do mercado interno de massas e a redistribuição substantiva de renda e riqueza. Tratava-se, tão somente, da realização pontual e dispersa de assen- tamentos de trabalhadores sem-terra a fim de aliviar a pobreza rural. Não por acaso, quando teve início o primeiro go- verno de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o programa de Reforma Agrária foi vinculado ao programa Comunidade Solidária, de caráter assistencialista.

Apesar das orientações minimalis- tas do Governo FHC, o tema da Re- forma Agrária retornou à agenda po- lítica nacional pela confluência de um conjunto de pressões e acontecimentos desencadeados no biênio 1996-1997. Desses, foram fundamentais: a) a enor- me repercussão internacional que tive- ram os massacres de trabalhadores ru- rais em Corumbiara (Rondônia, agosto de 1996) e, sobretudo, em Eldorado dos Carajás (Pará, abril de 1996); b) o aumento em praticamente todo o país das ocupações de terra organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, em alguns estados, por sindicatos e federações ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); c) a tensão social crescente no Pontal do Paranapanema (São Paulo) em vir- tude do aumento das ocupações de terra e da violência paramilitar pratica- da por latifundiários; d) a Marcha Na- cional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, organizada pelo MST, que chegou a Brasília em abril de 1997 –

um ano após o massacre de Eldorado dos Carajás – e acabou catalisando a insatisfação popular contra as políti- cas neoliberais, transformando-se na primeira grande manifestação popular contra o governo FHC e o neolibera- lismo no Brasil.

Esse conjunto de pressões e acon- tecimentos deu visibilidade nacional e internacional ao quadro de violência e impunidade vigentes no campo bra- sileiro, bem como à luta por Reforma Agrária no Brasil. Em resposta, o go- verno federal criou, ainda em 1996, o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária, com o objetivo de retomar a iniciativa política e pautar o tratamento da questão fundiária.

O Governo FHC iniciou, então, um conjunto de ações relacionadas à Re- forma Agrária e aos conflitos no cam- po. Relativamente dispersas no início, tais ações foram ganhando coerência ao longo do triênio 1997-1999. Foram elas: a) baratear e acelerar as desapro- priações para fins de Reforma Agrária; b) reprimir as ocupações de terra, im- pedindo que propriedades ocupadas fossem desapropriadas; c) criminalizar as ocupações, utilizando os grandes meios de comunicação para criar uma imagem negativa dos “sem-terra” e da sua forma de luta social; d) implantar o processo de descentralização político- administrativa da Reforma Agrária, o que implicava “desfederalizar” a exe- cução da política fundiária; e e) intro- duzir a Reforma Agrária assistida pelo mercado do BM no Brasil.

Desde 1995, o BM recomendava ao governo federal a adoção de medidas que dinamizassem relações de compra e venda como a forma mais “eficiente” de acesso à terra para agricultores po- bres e trabalhadores rurais sem-terra. Ao mesmo tempo, o BM prescrevia a

necessidade de políticas governamen- tais que aliviassem de maneira seletiva o impacto da implantação do Plano Real no campo.

Em 1996, na esteira do aumento das ocupações de terra e da politiza- ção da questão agrária, o BM oferecera ao governo brasileiro o seu novo pro- duto, a RAM, alegando que o modelo de ação fundiária vigente no Brasil era lento, caro e conflituoso. Para o BM e o governo federal, a introdução de pro- gramas de crédito que financiassem a compra de terras negociadas voluntá- ria e diretamente entre trabalhadores e proprietários desligaria a conexão entre ocupações e desapropriações, recolo- cando em novo patamar o tratamento das questões fundiárias. Assim, a ação governamental não mais estaria a rebo- que de fatos políticos provocados pela ação dos movimentos sociais. Ademais, as projeções do BM indicavam que a RAM teria um custo por família finan- ciada mais baixo do que o do modelo convencional, o que favoreceria a sua difusão pelo país.

Sem dúvida, a rapidez e a escala com que a RAM foi implantada no Brasil não têm paralelo no cenário in- ternacional. Em agosto de 1996, teve início no Ceará o projeto São José (ou “Reforma Agrária Solidária”) e o pri- meiro financiamento para a compra de terras foi liberado em fevereiro de 1997. As negociações com o BM para um projeto maior já estavam em anda- mento, culminando em abril de 1997 com a criação do projeto-piloto Cédula da Terra, previsto para financiar 15 mil famílias em cinco estados da federação (Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Minas Gerais).

Paralelamente, em fevereiro de 1997, foi protocolado no Senado um projeto de lei para a criação de um fundo nacio-

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nal de terras, o que se consumaria em fe- vereiro de 1998, com a criação do Ban- co da Terra pelo Congresso Nacional. Note-se que, naquela altura, o Cédula da Terra mal havia começado e nem sequer fora feita a avaliação intermediária pre- vista no acordo de empréstimo com o BM. Além disso, todas as organizações nacionais de representação de trabalha- dores rurais do país eram contrárias à criação do Banco da Terra. Mesmo as- sim, o governo federal acionou a sua base parlamentar para aprová-lo, utili- zando como argumento o fato de que o programa contaria com empréstimos significativos do BM.

Em outras palavras, partindo de uma experiência pontual no estado do Ceará até a mobilização do “rolo compressor” do governo federal no Congresso Nacional, em apenas um ano e seis meses o Brasil conheceu três projetos direcionados para a mesma fi- nalidade: instituir o financiamento pú- blico para a compra privada de terras como mecanismo alternativo à Refor- ma Agrária, a fim de aliviar as tensões sociais no campo e reconstituir o pro- tagonismo político do governo na con- dução da política agrária.

Contra essa tentativa de substitui- ção da política de Reforma Agrária posicionaram-se, de 1997 e 1999, a Contag, o MST e uma enorme gama de organizações sociais articuladas no Fó- rum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Tais programas eram vistos como extensão da agenda neoli- beral para o campo brasileiro. Naquela conjuntura, a crítica a tais programas serviu como referência para uma críti- ca mais geral às ações do governo fede- ral no meio rural.

Assim, o Fórum encaminhou, em outubro de 1998, uma solicitação ao Painel de Inspeção do BM,1 susten-

tando que o projeto Cédula da Terra: a) não estava sendo implantado como projeto-piloto, uma vez que não havia sido sequer avaliado e que o BM já as- sumira o compromisso com a sua am- pliação, consumada na criação do Ban- co da Terra; b) estava sendo executado como alternativa, e não como comple- mento à desapropriação, revogando, na prática, o papel do Estado de garantir o cumprimento da função social da propriedade, previsto na Constituição Federal de 1988; c) havia sido dirigido para estados com grande estoque de ter- ras desapropriáveis, possibilitando que terras mantidas como reserva de valor durante décadas fossem remuneradas à vista a preço de mercado; d) aquecia o mercado fundiário, contribuindo para a elevação do preço da terra, reverten- do a tendência de queda relativa até então observada; e) suas condições de financiamento eram proibitivas, o que geraria inadimplência e perda da terra; f) o projeto não atendia, por essa mesma razão, o objetivo de “combate à pobre- za rural” preconizado pelo BM; g) não se tratava de um processo transparente e participativo, na medida em que não havia publicização de informações aos mutuários ou às suas organizações de representação, nem tampouco mecanis- mos de consulta e participação social; h) permitia a reprodução de relações tradicionais de dominação e patrona- gem no meio rural, na medida em que a negociação em torno do preço da terra, longe de ser uma transação mercantil entre iguais, era controlada pelos agen- tes dominantes no plano local (proprie- tários e políticos).

Em maio de 1999, o Painel de Ins- peção julgou improcedentes todos os argumentos do Fórum e não recomen- dou à diretoria do Banco Mundial a in- vestigação solicitada. Imediatamente, o

governo brasileiro usou tal recusa como prova da suposta eficiência do projeto. Na ocasião, inclusive, o Painel chegou a desqualificar a representatividade das organizações que compunham o Fó- rum, considerando suas reivindicações de caráter “filosófico”.

Amparado por farta documentação, liberada pelo governo brasileiro tão somente porque dois parlamentares haviam assinado um pedido oficial de informações, o Fórum fez nova solici- tação ao Painel de Inspeção em agosto de 1999. Em dezembro, novamente o pedido foi negado, sob a alegação de que o Fórum não havia esgotado todos os canais de negociação com o BM e o governo federal antes de solicitar a inspeção. Naquela altura, o BM exalta- va a experiência brasileira com a RAM como um caso de sucesso e um exem- plo para outros países.

Todavia, a Contag e o MST, prin- cipais organizações nacionais de re- presentação de trabalhadores rurais, posicionaram-se em bloco, por inter- médio do Fórum Nacional pela Refor- ma Agrária e Justiça no Campo, contra o novo modelo de mercado. Essa re- sistência desafiava o discurso do BM de que o caso brasileiro era bem-su- cedido e contava com a “participação da sociedade civil”. Nesse contexto, o empréstimo que o BM havia prometi- do ao governo federal para financiar a ampliação do Banco da Terra para o âmbito nacional enfrentava um im- passe: como legitimar uma operação que enfrentava tanta resistência políti- ca? Com a irrupção da crise do Plano Real no final de 1998 e as dificuldades do governo brasileiro para garantir a contrapartida necessária ao emprésti- mo do BM, esse impasse ganhou in- grediente adicional.

A situação só foi superada em 2000, quando a Contag incluiu na pau- ta do Grito da Terra Brasil – a sua ma- nifestação anual mais importante – a demanda por crédito fundiário e deci- diu negociar com o governo federal e o BM a criação de um programa para esse fim. O BM, então, desviou mo- mentaneamente o seu apoio ao Banco da Terra para o novo Crédito Fundiá- rio de Combate à Pobreza Rural, um programa muito semelhante ao Cédu- la da Terra. Com o apoio da Contag, a diretoria do BM aprovou, em 2001, o pedido de empréstimo para implan- tar o crédito fundiário em 14 estados. Assim, ampliou-se sensivelmente a ex- periência do Cédula da Terra, que nem sequer havia sido concluído. A partir desse momento, a Contag passou a diferenciar o programa de crédito fun- diário, apoiando-o como algo distinto da experiência anterior do Cédula da Terra. Já o BM reconheceu que todos integravam a mesma matriz.

Continuidades e

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