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o debate conceitual

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 60-66)

A agroecologia foi definida por Altieri (1989), na primeira publicação mais sistemática sobre o tema,1 como

as bases científicas para uma agricultu- ra alternativa. Como ciência, a agroe- cologia emerge de uma busca por su- perar o conhecimento fragmentário, compartimentalizado, cartesiano, em favor de uma abordagem integrada. Seu conhecimento se constitui, mediante a interação entre diferentes disciplinas, para compreender o funcionamento dos ciclos minerais, as transformações de energia, os processos biológicos e as relações socioeconômicas como um todo, na análise dos diferentes proces- sos que intervêm na atividade agrícola.

A agroecologia pode ser caracteri- zada como “uma disciplina que fornece os princípios ecológicos básicos para

estudar, desenhar e manejar agroe- cossistemas produtivos e conservado- res dos recursos naturais, apropriados culturalmente, socialmente justos e economicamente viáveis”2 (Altieri,

1999, p. 9; nossa tradução), propor- cionando, dessa maneira, bases cien- tíficas para apoiar processos de tran- sição a estilos de agriculturas de base ecológica ou sustentável (Caporal e Costabeber, 2004).

Essas definições já indicam aspectos importantes da agroecologia, e permi- tem diferenciá-la de outros processos dos quais tem sido interpretada como sinônimo, seja do ponto de vista da elaboração teórica, seja do cotidiano. Assim, Caporal e Costabeber (2004) alertam que não se devem confundir os “estilos de agricultura alternativa” com a agroecologia, ou mesmo com a agricultura de base ecológica, que se baseia em orientações e princípios mais amplos, ao passo que os objetivos das agriculturas alternativas (orgânica, bio- lógica, natural, biodinâmica, dentre ou- tras) podem estar limitados a atender a um nicho de mercado “ecologizado” e, por vezes, elitizado.

Um dos conceitos-chave que orien- tam teórica e metodologicamente a agro- ecologia é o de agroecossistema, unidade de análise que permite estabelecer um enfoque comum às várias disciplinas cien- tíficas. Um agroecossistema é, em resu- mo, um ecossistema artificializado pelas práticas humanas, por meio do conheci- mento, da organização social, dos valores culturais e da tecnologia, de maneira que sua estrutura interna é “uma constru- ção social produto da coevolução entre as sociedades humanas e a natureza”3

(Casado, Sevilla-Guzmán e Molina, 2000, p. 86; nossa tradução) (ver agroE- cossistEMas).

Para o desenvolvimento de uma agri- cultura sustentável e produtiva, a agroecologia orienta práticas de: apro- veitamento da energia solar através da fotossíntese; manejo do solo como um organismo vivo; manejo de processos ecológicos – como sucessão vegetal, ciclos minerais e relações predador– praga; cultivos múltiplos e sua associa- ção com espécies silvestres, de modo a elevar a biodiversidade dos agroe- cossistemas; e ciclagem da biomassa – incluindo os resíduos urbanos. Dessa forma, “o saber agroecológico con- tribui para a construção de um novo paradigma produtivo ao mostrar a pos- sibilidade de produzir ‘com a nature- za’” (Leff, 2002, p. 44).

Muito embora não exista produ- ção “fora da natureza”, o modelo da Revolução Verde e do agronegócio de- senvolve-se com base em tecnologias “contra a natureza”, que bloqueiam ou impedem processos naturais que são a base do manejo agroecológico nos agroecossistemas – como é o caso do uso de herbicidas, que bloqueiam ou mesmo fazem regredir a sucessão eco- lógica em determinado ambiente.

Entretanto, a agroecologia não pode ser entendida apenas como um conjunto de técnicas. Com base na es- cola europeia, a agroecologia pode ser definida como

[...] o manejo ecológico dos re- cursos naturais mediante for- mas de ação social coletiva que apresentem alternativas à atual crise civilizatória. E isso por meio de propostas participati- vas, desde os âmbitos da produ- ção e da circulação alternativa de seus produtos, pretendendo estabelecer formas de produção

e consumo que contribuam para fazer frente à atual deteriora- ção ecológica e social gerada pelo neoliberalismo.4 (Sevilla-

Guzmán, 2001, p. 1; nossa tradução)

Essa definição amplia significativa- mente o entendimento da agroecologia. Um primeiro aspecto dessa ampliação diz respeito ao fato de se conceber a agroecologia para além de instrumento metodológico que simplesmente per- mite melhor compreensão dos sistemas agrários e soluciona problemas produ- tivos que a ciência agronômica conven- cional não resolve, ou mesmo agrava. Nesse sentido mais amplo, as variáveis sociais ocupam papel relevante. Ainda que se parta da dimensão técnica de um agroecossistema, daí se pretende compreender as múltiplas formas de dependência dos agricultores na atual política e economia. Outros níveis de análise dizem respeito à matriz socio- cultural ou comunitária, ou seja, à prá- xis intelectual e política, à identidade local e às relações sociais em que os sujeitos do campo se inserem. Isso resulta na inserção da produção ecoló- gica em propostas para “ações sociais coletivas” que superem o modelo pro- dutivo agroindustrial hegemônico.

Um conceito base dessa forma de compreender a agroecologia é a coe- volução entre os sistemas naturais e sociais, entre ambiente e cultura, sen- do que os seres humanos têm a capa- cidade de direcionar essa coevolução (Gliessman, 2000). As populações do campo, sua cultura e suas formas de or- ganização e resistência são elementos centrais no processo de coevolução; no entanto, não se pode desconsiderar a hegemonia das relações capitalistas no campo no direcionamento dessa coe-

volução. Esse processo é dinâmico, pois, conquanto os sistemas tradicio- nais de produção reflitam a experiên- cia adquirida por gerações passadas, o conhecimento que eles materializam continua a se desenvolver no presente, num processo permanente de adap- tação e mudança (Wilken, 1988, apud Gliessman, 2000).

Essa abordagem, portanto, reco- nhece que as populações do campo são portadoras de um saber legítimo, construído por meio de processos de tentativa e erro, de seleção e aprendi- zagem cultural, que lhes permitiram captar o potencial dos agroecossiste- mas com os quais convivem há gera- ções. Basta lembrar que a esmagadora maioria das espécies agrícolas e dos animais domésticos atualmente exis- tentes é obra do trabalho coletivo e milenar dos povos camponeses, e não de institutos de pesquisa, universida- des ou empresas.

Evidentemente, não se trata de des- cartar a ciência e a tecnologia, mas da necessidade de um diálogo de saberes que reconheça nos povos do campo e da floresta sujeitos privilegiados da agroecologia, um diálogo não exclusi- vamente técnico, nem com finalidade econômica e ecológica apenas, mas também de ordem ética e cultural, e que se materialize, inclusive, em ações sociais coletivas. Esse diálogo traz pro- fundas implicações.

A generalização do modelo da Re- volução Verde levou a um avanço na divisão do trabalho entre a indústria e a agricultura: à agricultura restou apenas a tarefa de produzir matéria- prima para a agroindústria, a partir de insumos e máquinas fornecidos pela indústria. Porém, além disso, apro- fundou-se especialmente a separação

entre concepção/planejamento e exe- cução, separação cujo objetivo é “dar à direção capitalista do processo de trabalho os meios de se apropriar de todos os conhecimentos práticos, até então, monopolizados, de fato, pe- los operários” (Linhart, 1983, p. 79). Esse processo se evidenciou muito mais na indústria (por meio da “gerên- cia científica” de Taylor), mas também se estendeu ao campo e seus sujeitos, que se tornaram meros consumidores de técnicas e sistemas de produção de- senvolvidos em centros de pesquisa, empresas e universidades.

Em sentido inverso, a agroecologia exige que o camponês passe a assumir uma posição ativa, de pesquisador das especificidades de seu agroecossis- tema, para desenvolver tecnologias apropriadas não só às condições lo- cais de solo, relevo, clima e vegetação, mas também às interações ecológicas, sociais, econômicas e culturais. Na perspectiva da agroecologia, essa não pode ser tarefa de especialistas iso- lados. A agoecologia exige conhecer a dinâmica da natureza e, ao mesmo tempo, agir para a sua transformação. Além disso, ela abre caminho para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura, pois não se prova nos espaços artificializados da experimen- tação científica, mas sim diretamen- te nos campos de produção agrícola, superando, dessa maneira, a distinção entre a produção do conhecimento e sua aplicação/concretização: “Por isso, a agroecologia desafia o conhecimento, mas este se aplica e se testa no terre- no dos saberes individuais e coletivos” (Leff, 2002, p. 43). O que nos leva à conclusão de que a agroecologia não é apenas um corpo de conhecimen- tos úteis, passíveis de serem aplicados,

mas se configura como prática social, ação de “manejo” da complexidade dos agroecossistemas particulares, in- seridos em múltiplas relações naturais e sociais, relações que eles determinam e pelas quais são determinados.

É evidente que, à medida que se ampliou o questionamento e a crítica ao padrão de agricultura capitalista da Revolução Verde, os termos “agroeco- lógico” e “sustentável” passaram a ser disputados por setores representantes justamente dos interesses capitalistas que promovem feroz depredação da natureza. Na perspectiva conhecida como “duplamente verde”, o desenvol- vimento de novas tecnologias (como os transgênicos, por exemplo) seria capaz de minimizar os efeitos ambientais no- civos da Revolução Verde, garantindo, ao mesmo tempo, os atuais níveis de produtividade. Essa perspectiva vem ganhando força com o biobussines, ou bionegócio, o agronegócio pretensa- mente “sustentável”, porém, diante da

[...] transformação da geopolítica de uma economia ecologizada que hoje em dia revaloriza o sentido conservacionista da natureza – reabsorve e redesenha a econo- mia natural dentro das estratégias de mercantilização da natureza, reduzindo o valor da biodiver- sidade em suas novas funções como provedora de riqueza ge- nética, de valores cênicos e eco- turísticos e de sua capacidade de absorção de carbono (biobussines), a agroecologia se encrava no con- texto de uma economia política do ambiente.(Leff, 2002, p. 40) Nesse contexto, a agroecologia não se restringe ao desenvolvimento de expe-

riências de agriculturas de base ecológi- ca, ressaltando processos de organização social que se orientam pela luta política e transformação social, indo além da luta econômica imediata e corporativa e das ações localizadas, e por vezes assisten- cialistas, junto dos agricultores. De fato, a agroecologia possui uma especificida- de que referencia a construção de outro projeto de campo. Entretanto, tal projeto de campo é incompatível com o sistema capitalista e depende, em última instân- cia, de sua superação.

Em decorrência da separação an- tagônica entre cidade e campo, e da “alienação material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das con- dições naturais que formam a base de sua existência” (Foster, 2005, p. 229), uma falha irreparável surgiu no meta- bolismo entre o homem e a terra. Go- vernar racionalmente esse metabolismo “excede completamente as capacitações da sociedade burguesa” (ibid.). Restau- rá-lo exige uma ordem social qualita- tivamente orientada, que só pode ser alcançada na sociedade dos indivíduos livremente associados, que, como sujei- tos históricos autônomos, estejam no pleno controle do processo produtivo, esse conscientemente subordinado à satisfação das necessidades humanas, e não a uma riqueza fetichizada.

Nesse sentido, está em gestação uma concepção mais recente de agroecologia, ainda mais ampliada: a partir da prática dos movimentos sociais populares do campo, que não a entendem como “a” saída tec- nológica para as crises estruturais e con- junturais do modelo econômico e agrí- cola, mas que a percebem como parte de sua estratégia de luta e de enfrentamento ao agronegócio e ao sistema capitalista de exploração dos trabalhadores e da de- predação da natureza.

Nessa concepção, “a agroecologia inclui: o cuidado e defesa da vida, pro- dução de alimentos, consciência políti- ca e organizacional” (Via Campesina e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2009). Compreende-se que ela seja inseparável da luta pela sobera- nia alimentar e energética, pela defesa e recuperação de territórios, pelas refor- mas agrária e urbana, e pela coopera-

ção e aliança entre os povos do campo e da cidade.

A agroecologia se insere, dessa manei- ra, na busca por construir uma sociedade de produtores livremente associados para a sustentação de toda a vida (Via Cam- pesina e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2006), sociedade na qual o objetivo final deixa de ser o lucro, passando a ser a emancipação humana.

notas

1 A primeira edição do livro, em língua espanhola, é de 1983. Em 1987, a obra foi publicada

nos Estados Unidos e, em 1989, no Brasil.

2 “[...] una disciplina que provee los principios ecológicos básicos para estudiar, diseñar y

manejar agroecosistemas que sean productivos y conservadores del recurso natural, y que también sean culturalmente sensibles, socialmente justos y económicamente viables.”

3 “[...] una construcción social, producto de la coevolución de los seres humanos con la

naturaleza.”

4 “[...] el manejo ecológico de los recursos naturales a través de formas de acción social co-

lectiva que presentan alternativas a la actual crisis civilizatoria. Y ello mediante propuestas participativas, desde los ámbitos de la producción y la circulación alternativa de sus produc- tos, pretendiendo establecer formas de producción y consumo que contribuyan a encarar el deterioro ecológico y social generado por el neoliberalismo actual.”

Para saber mais

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aGroECossistEmas

Denis Monteiro

observando paisagens,

percebendo agroecossistemas

Percorrer o território brasileiro, observando a natureza e os povos, im- pressiona pela exuberância e diversida- de. Nesse caminho, observamos vários biomas, vários ecossistemas; unida- des de conservação, parques, reservas biológicas, espaços de natureza com pouca ou nenhuma presença de ativi- dades econômicas humanas; cidades

e povoados, metrópoles ou vilas, em ambientes bastante transformados pela ação humana. Em muitos casos, é difí- cil imaginar como eram os lugares an- tes da construção das cidades. Vemos também muitas áreas de natureza de- gradada, paisagens tristes, latifúndios sem diversidade, pastos erodidos, mo- nocultivos a perder de vista, terras sem gente fruto do avanço do agronegócio. Também nesses casos, olhar as terras degradadas torna difícil imaginar os

ecossistemas ricos, cheios de vida, que um dia ali existiram. Podemos observar também áreas habitadas por agriculto- res familiares, assentados da Reforma Agrária e povos e comunidades tradi- cionais que convivem há séculos com os ecossistemas. Ali percebemos várias agriculturas, e certamente reconhece- mos os ecossistemas. Vemos povos que entram nas matas para coletar frutos e plantas medicinais nativos, praticando o agroextrativismo, a pesca, as plan- tações e criações, com várias espécies hoje cultivadas ou criadas que vieram de todos os cantos do mundo, de ou- tros ecossistemas.

Essas paisagens são formadas por uma grande diversidade de agroecos- sistemas, pois são fruto da intervenção das práticas de agricultura nos ecossis- temas. Nas áreas do agronegócio, os agroecossistemas são mais artificiali- zados e geralmente estão degradados. Contudo, em muitos territórios onde existe forte presença da agricultura camponesa, os agroecossistemas são mais biodiversificados, produzem ali- mentos com fartura e diversidade, em harmonia com a natureza, respeitando seus ciclos e recuperando e manten- do coisas que são essenciais para uma agricultura verdadeiramente sustentá- vel: águas, solos férteis, biodiversidade, riqueza cultural e sabedoria dos povos e comunidades.

Entendendo o conceito

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 60-66)