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2.2 URBANIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL

2.2.2 As condições de moradia nos assentamento informais

Uma característica marcante nas cidades tem sido a formação espontânea de bairros, geralmente nas periferias, onde a população se antecipa ao Planejamento Urbano e à consequente estruturação do espaço, instalando-se em locais desprovidos de instalação de equipamentos e da oferta de serviços públicos minimamente necessários para se habitar adequadamente (saúde, educação, saneamento, pavimentação, energia elétrica, transporte, lazer, segurança pública, entre outros).

78 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução: Neil R. da

Silva. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 316-317.

79 BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Tradução: Silvia Mazza. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 565-

Por isso, pode-se afirmar que existe um grande desafio de natureza urbanística que se apresenta às autoridades públicas, principalmente nos países em desenvolvimento, consistente

em superar a formação de duas “cidades paralelas” no mesmo espaço geográfico: a formal

(originariamente disciplinada, salubre e politicamente aceita) e a informal (de formação espontânea, insalubre e politicamente rechaçada).

Para Fiorillo80, faz parte da tradição jurídica nacional considerarem-se abusivas as moradias e os bairros construídos espontaneamente pelos habitantes. Assim, o poder público tem optado por realizar grandes conjuntos habitacionais, porém em quantidade absolutamente insuficiente às necessidades da população.

Há uma descrição de Benevolo81 que traduz bem esse fenômeno da divisão do mesmo

espaço em “duas cidades”, com características bem distintas:

os edifícios projetados pelos arquitetos e em conformidade com os regulamentos, as cidades disciplinadas pelos planos urbanísticos e providas com os serviços públicas, as ruas, os parques etc., dizem respeito somente a uma parte da população; outra parte não está em condição de se servir deles, e se organiza por sua própria conta em outros estabelecimentos irregulares.

Esses estabelecimentos irregulares ou marginais a que se refere o autor são, por exemplo, os espaços demarcados pelo Poder Público local como sendo Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), denominadas popularmente de comunidades periféricas ou favelas, onde as famílias ocupam o solo sem título jurídico de domínio ou de posse, e marcado pela ausência dos serviços públicos de saneamento básico, transporte, saúde, educação, eletricidade, entre outros, que geralmente chegam atrasados e, ainda assim, de forma deficitária.

Para designar essa parte informal da cidade, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)82 trabalha com o conceito de aglomerado subnormal, definindo-o como sendo:

um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.

80

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Direito a cidades sustentáveis no âmbito da tutela constitucional do meio ambiente artificial. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Estado de direito ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 276-277.

81

BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Tradução: Silvia Mazza. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 703.

82 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características

As moradias nesses locais são insalubres em virtude dessa deficiência, principalmente quando se observam os problemas relacionados ao abastecimento de água tratada, à coleta e destino dos esgotos, ao tratamento dos resíduos sólidos, às condições do solo, à qualidade do ar e dos espaços de circulação e lazer. Há, nesses ambientes, grave dano à qualidade de vida e, consequentemente, à dignidade da pessoa humana.

Portanto, o que basicamente caracteriza esse tipo de assentamento humano é a carência econômica das famílias, a deficiência dos serviços públicos essenciais (saúde, educação, assistência social), ocupação ilegal do terreno, intenso adensamento de pessoas e desvio aos padrões urbanístico-arquitetônicos, com vias de circulação estreitas e irregulares, lotes de tamanhos e formas desiguais, além de construções sem autorização dos órgãos públicos de fiscalização.

Nesse aspecto, são preocupantes os dados das Nações Unidas apontando no sentido de que aproximadamente 26% (vinte e seis por cento) da população urbana brasileira vive em favelas83. A existência da Central Única das Favelas (CUFA), organismo representativo desses assentamentos humanos, ilustra bem a dimensão do problema84.

Na busca para superar essas dificuldades, o Estado deve intervir na propriedade urbana, estabelecendo regras que delimitam a ocupação do solo e fixando as exigências arquitetônicas mínimas para se construir, especialmente quanto à orientação, fechada, recuo, ventilação e luminosidade. E, o que é mais importante: fiscalizar a aplicação desse regramento, evitando a proliferação de novos assentamentos informais.

E, para isso, o Poder Público dispõe dos instrumentos de planejamento em geral, como o Plano Diretor e o Código de Obras e Posturas, e específicos, como o zoneamento ambiental, usado para dividir o espaço urbano em zonas ou regiões, de acordo com as pretensões de uso da terra (habitação, comércio, indústria, lazer, preservação ambiental).

Além disso, dispõem os municípios de vários instrumentos tributários, financeiros, jurídicos e políticos, previstos no Estatuto da Cidade, a exemplo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, inclusive com progressividade no tempo, os incentivos fiscais, a demarcação de ZEIS, regularização fundiária e assistência às famílias carentes85.

83

MINISTÉRIO DAS CIDADES. Secretaria Nacional de Habitação. Trabalho social e intervenções habitacionais: reflexões e aprendizados sobre o seminário internacional. Brasília: Publisher Brasil, 2011, p. 15- 16.

84

Para conferir uma relação de favelas brasileiras, v. o sítio eletrônico <http://cufa.org.br/>.

85 A legislação nacional de caráter urbanístico-ambiental será abordada no próximo capítulo. O Planejamento

Um exemplo desse perfil intervencionista é apresentado por Benevolo86, segundo o qual, a cidade de Paris passou, século XIX, por grandes transformações urbanas, como demolição de prédios para abertura de novas ruas, divisão da cidade em distritos e obrigação de se manter uniformidade arquitetônica nas fachas frontais dos prédios.

No caso brasileiro, essa intervenção encontra fundamento no art. 225 da CRFB (dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado) e no art. 182 (dever de ordenar o desenvolvimento da cidade para garantir o bem-estar dos habitantes). Todavia, como nem sempre houve essa intervenção, acabou surgindo a situação de precariedade de sítios urbanos.

Enxergando a cidade sob o ponto de vista da função socioambiental de abrigar a vida e de proporcionar a pleno desenvolvimento das aptidões humanas, Luiz Fernando Roberto87 faz uma análise sobre o papel do Estado no tocante à ordenação do espaço e a formação das moradias irregulares. Para ele, tais moradias são privadas de serviços básicos e geram impactos negativos ao meio ambiente urbano, razão pela qual o Poder Público tem o dever de atuar nessas áreas para corrigir-lhes as falhas, garantindo à população igualdade de acesso aos equipamentos públicos e ordenando a ocupação do solo.

Mas, é inevitável que se apresente uma questão importante: de que forma e em qual momento deve haver a intervenção pública para superar o problema das moradias jurídica e ambientalmente irregulares?

Por força de determinação constitucional88, o princípio da prevenção impõe, ao Poder Público e os particulares em geral, o dever de prevenir a ocorrência de prováveis danos ambientais causados por determinada obra ou atividade humana, uma vez comprovada essa possibilidade pela ciência. Disso resulta a necessidade de estudos prévios acerca dos impactos ao meio ambiente quando determinado comportamento é conhecimento ameaçador ao equilíbrio.

A fixação de moradia em encostas de morro, margens de rios ou em outras áreas de risco deve ser proibida e, acaso iniciada, deveria ser imediatamente suspensa, mediante intervenção de órgãos públicos e com a colocação das famílias em outro local seguro.

86 BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Tradução: Silvia Mazza. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 589.

87 ROBERTO, Luiz Fernando. A importância da atuação preventiva do poder público diante da ocupação

irregular do solo urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental. Belo Horizonte, ano 10, n. 55, jan./fev. 2011, p. 70-74.

Nesse diapasão, Luiz Fernando Roberto89 defende que essa atuação preventiva deve ser na forma de planejamento, fiscalização e políticas públicas habitacionais. Tudo com fundamento nos princípios da prevenção e da precaução, pois, a não ser dessa forma, a situação irregular vai se perpetuar e se consolidar, visto que novas ocupações espontâneas irão acontecer pelo dinamismo inerente ao fenômeno urbano.

Lembrando que, pelo princípio da precaução, recomendam-se cuidados antecipados por parte do Poder Público e dos particulares, para que um comportamento não gere efeitos indesejáveis. Assim, mesmo que o dano não tenha ocorrido e que não haja prova irrefutável de que ele possa ocorrer, diante da incerteza científica, é preferível a cautela. Trata-se do Princípio 15 da Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento90, que, pela pertinência ao tema merece reprodução:

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

Mas, nem sempre os Estados, particularmente em nível municipal, têm adotado as medidas preventivas no tocante à construção de moradias e à formação dos bairros irregulares, agravando-se, ano a ano, a degradação ambiental urbana e o prejuízo à qualidade de vida das pessoas. A atuação do Estado passa a ser, então, apenas corretiva, buscando eliminar ou, pelo menos, amenizar as consequências da omissão histórica no controle da ocupação do solo urbano.

Acrescente-se a isso, o elevado custo para evitar a catástrofe, como é o caso do projeto do Município do Rio de Janeiro (Morar Carioca), que pretende urbanizar todas as favelas da cidade até 2020 a um custo estimado em R$ 8 bilhões (oito bilhões de reais), com recursos provenientes de instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Caixa Econômica Federal91.

Outras medidas forma adotadas, como a alteração da legislação relativa ao parcelamento do solo urbano. Em 1999, a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que trata

89 ROBERTO, Luiz Fernando. A importância da atuação preventiva do poder público diante da ocupação

irregular do solo urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental. Belo Horizonte, ano 10, n. 55, jan./fev. 2011, p. 72-74.

90

INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Declaração do Rio de

Janeiro. Estudos Avançados. São Paulo, 1992, vol. 6, nº 15. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141992000200013&script=sci_arttext> Acesso: 18 dez 2012.

91

AGÊNCIA BRASIL. Rio lança projeto de urbanização para acabar com favelas até 2020. Folha.com. São Paulo: 28 jul. 2010. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/773842-rio-lanca-projeto-de- urbanizacao-para-acabar-com-favelas-ate-2020.shtml> Acesso em: 18 dez. 2012.

do parcelamento do solo urbano, foi alterada pela Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999, a fim de, por exemplo, flexibilizar algumas exigências.

Antes dessa mudança, a lei nacional já estabelecia o percentual mínimo 35% (trinta e cinco por cento) da gleba para fins de circulação, implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público92:

§ 1º - A percentagem de áreas públicas prevista no inciso I deste artigo não poderá ser inferior a 35% (trinta e cinco por cento) da gleba, salvo nos loteamentos destinados ao uso industrial cujos lotes forem maiores do que 15.000 m² (quinze mil metros quadrados), caso em que a percentagem poderá ser reduzida.

Mas, de acordo com as novas regras, compete à legislação municipal definir, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento93:

A legislação municipal definirá, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento.

Assim, fica perceptível que a intenção dessa mudança foi facilitar o processo de regularização dos loteamentos realizados à margem das regras urbanísticas, preservando a segurança jurídica das moradias neles edificadas, haja vista existir, geralmente, a boa-fé dos adquirentes dos lotes.

Também se instituiu a usucapião coletiva, nos termos do art. 10 da Lei nº 10.257/2001, com vistas a regularizar a situação de moradias construídas ao arrepio da legislação urbanística, onde em mesmo é possível identificar as áreas ocupadas individualmente pelos moradores. Aduz o citado dispositivo que:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (sem grifo no original).

Outro instituto criado para conferir a roupagem de legalidade nas habitações juridicamente irregulares foi a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, prevista no

92 Texto revogado pela Lei nº 9.785/1999.

art. 4º, V, “h”, da Lei nº 10.257/2001, e regulamentada pela Medida Provisória nº 2.220/2001.

Com efeito, o art. 1º desse diploma legal estatui o seguinte:

Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

Sem se adentrar nas questões relativas à constitucionalidade ou não desse ato normativo (relevância e urgência da matéria, de modo a justificar a edição de uma Medida Provisória, e a possível invasão de competência), observa-se que, nesse caso, a intenção é regularizar as ocupações perpetradas em terrenos públicos localizados em área urbana, que, por serem imprescritíveis, não se sujeitam à usucapião individual ou coletiva.

Esse tipo de ocupação é, inclusive, muito dramático sob o ponto de vista social, afinal as famílias se fixam por anos nesses locais, às vezes até pagando tributos, e mesmo assim, são desalojadas compulsoriamente, sem que lhes sejam oferecidas moradia noutro local.

Mas, segundo a crítica de Luiz Fernando Roberto94, esse tipo de medida é insuficiente,

representando apenas um paliativo: “trazer para a legalidade os grupos marginalizados e, ao

mesmo tempo, flexibilizar o direito urbanístico para adaptá-lo à realidade das habitações informais já existentes” não é um compromisso com a “transformação da realidade degradada

ou com a prevenção de novas ocupações irregulares”, conclui o autor.

Com efeito, essas medidas apenas afirmam a problemática existente (a cidade legal e a ilegal), trazendo uma roupagem de legalidade às ocupações clandestinas, sem, no entanto, transformarem a realidade fática, afinal não impede que se formarem novas áreas com os mesmos problemas.

Ora, conforme se aborda no próximo capítulo, o Ordenamento Jurídico assegura que dispor de uma moradia adequada é um direito de todos, não se admitindo mais que isso se restrinja apenas às famílias ricas, que habitam bairros estruturados, de casas e prédios arquitetonicamente projetados, ambientalmente saudáveis e assistidos pelos Poder Público.

É preciso então avançar socialmente e assegurar esse direito às classes pobres, que ocupam os chamados assentamentos informais, como as periferias urbanas, as áreas públicas ou privadas irregularmente ocupadas e os loteamentos clandestinos. Em função disso,

94

ROBERTO, Luiz Fernando. A importância da atuação preventiva do poder público diante da ocupação irregular do solo urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental. Belo Horizonte, ano 10, n. 55, jan./fev. 2011, p. 72.

impõem-se novos conceitos e posturas políticas, como a questão do preço da moradia e da acessibilidade a esta, mas, principalmente, com reconhecimento da cidade como bem ambiental a ser especialmente tutela para as atuais e para as futuras gerações.

De modo que existem aspectos positivos e negativos com o processo de urbanização. Por um lado o crescimento das cidades tem gerado consequências indeléveis ao ambiente, especialmente na forma dos diversos tipos de poluição (atmosférica, resíduos sólidos, efluentes, sonora e visual), gerando fatores desencadeadores de estresse e de outras doenças da contemporaneidade. Mas, observando-se a questão com outro olhar, conclui-se que ela tornou possível um significativo específico para o meio ambiente (o artificial), permitindo uma maior intervenção do poder público na fiscalização do equilíbrio ecológico.

Em suma, a qualidade de vida de milhares de pessoas continua a demandar a atuação mais efetiva do poder público no sentido de garantir as condições adequadas de habitar no meio urbano, o que ocorre mediante políticas públicas. É isso que explica a construção do meio ambiente artificial, do que cuida o próximo item.