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2.2 URBANIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL

2.2.3 Meio ambiente artificial

As drásticas interferências que a urbanização causou ao equilíbrio ambiental, gerando os transtornos referidos acima, estimulou o surgimento de novo significado para o meio ambiente, de modo a abranger essa problemática e conferir-lhe maior especialidade e atenção. Trata-se do denominado meio ambiente artificial, gerado em razão dos processos historicamente ocorridos e agravados na sociedade industrial e globalizada do momento atual.

Alerte-se que, em verdade, apenas se criou um aspecto novo de um mesmo objeto ou bem jurídico já existente, na medida em que o meio ambiente é uno e sua divisão em diferentes elementos se explica por uma opção didática e até político-estratégico de defesa e atuação mais firme da sociedade e do Estado.

Mas, essa opção não é aleatória. Ela tem fundamento constitucional, em vista dos vários dispositivos que a Carta Magna dedica ao assunto, entre eles: a) o art. 225, que atribui maior atenção ao aspecto natural, como a proteção da fauna e da flora; b) os arts. 215 e 216, que enaltecem o acesso à cultura e o reconhecimento de um patrimônio cultural brasileiro; c) o art. 182, que se refere à política de desenvolvimento urbano, instituindo o meio ambiente artificial; e d) o art. 200, inciso IV, que ao definir as atribuições do Sistema Único de Saúde,

faz menção expressa à colaboração para proteção do meio ambiente, incluindo o do trabalho. Daí se falar em meio ambiente natural, artificial, cultural e laboral95.

A realidade brasileira justifica a preocupação com a defesa desse novo significado, afinal o país se vê diante, por exemplo, da necessidade de abrigar milhões de pessoas residindo em grandes cidades e, ao mesmo tempo, enfrentar e superar a formação de assentamentos informais, numa espécie de duplicidade de ambiência urbana.

Em atenção à vinculação da moradia à existência humana digna, justifica-se esse reconhecimento do Meio Ambiente Artificial, que há ser entendido como sendo aquele constituído pelo espaço urbano construído (edificações) e os equipamentos públicos (as ruas, as praças, as áreas verdes e os espaços livres em geral)96, ao que se acrescem os centros culturais, assistenciais e de educação e saúde, quando erguidos e mantidos pelo poder público97.

A categorização ou classificação do meio ambiente em diferentes matizes pode ser encontrada também em Fiorillo98, para quem o termo meio ambiente é um conceito jurídico indeterminado (cabendo ao intérprete o preenchimento do conteúdo correspondente), que comporta diferentes aspectos (natural, artificial, cultural e do trabalho), consideradas as atividades degradantes e o bem imediatamente agredido.

De igual modo, o Supremo Tribunal Federal adotou essa classificação na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.54099, onde restou consignado que:

A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. (sem grifo no original).

95 Entre outros, adotam essa tipologia: Édis Milaré (Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina,

jurisprudência, glossário. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais) e Celso Antonio Pacheco Fiorillo (Curso de direito ambiental brasileiro. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

96

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 21.

97 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 7 ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 344.

98

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 79.

99 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Deferimento de Medida Cautelar na Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 3.540. Relator: Min. Celso de Mello. Procurador Geral de República e Presidente da

República. Brasília-DF, 03 de fevereiro de 2006. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3540&processo=3540> Acesso em: 04 dez. 2012.

Percebe-se que esses elementos que integram o conceito de ambiente urbano se vinculam ao direito à boa qualidade de vida, por isso passa a gozar de proteção especial, inclusive em nível constitucional, por derivar da dignidade da pessoa humana.

Para o cumprimento do sentimento preservacionista constitucional, o meio ambiente a ser conservado há de corresponder àquele ecologicamente equilibrado, cujos elementos bióticos (fauna, flora, pessoas humanas) e abióticos (água, solo, atmosfera) possam interagir sem, contudo, implicar em supressão total de qualquer deles. Essa é a concepção de sustentabilidade ambiental constitucionalmente adequada.

Segundo Milaré100, o ambiente urbano se notabiliza por ser um bem de uso comum do povo, incumbindo ao poder público e à coletividade a preservação, manutenção e uso disciplinado, que se vincula ao território do município, a quem cabe a tutela imediata. Além disso, notabiliza-se esse ambiente por manter relação com o meio natural, devido ao fluxo de matéria e energia que são carregadas para a cidade, alterando a paisagem. Noutro viés, conclui o autor, o meio ambiente artificial deve ser propício à saúde e ao bem-estar dos usuários, além de expressar estilos de civilização e de vida, que se alastra cada vez mais e altera substancialmente a fisionomia do planeta.

Se a marcha da urbanização e todas as consequências se regem pela força da inevitabilidade, há de se pensarem formas de regulação, contenção e fiscalização desse avanço, como o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a organização do espaço urbano (zoneamento, uso e ocupação do solo).

Analisando o conflito entre construção civil (símbolo das cidades) e preservação ambiental, Artur C. Novaes101 lembra que a cidade é construída de edificações e sempre constituirá agressão ao meio ambiente natural. Mas, ressalta que “se o conflito é inevitável, é nossa obrigação administrá-lo da melhor maneira possível”. E conclui que esse é o papel dos urbanistas.

Afinal, como afirma Milaré102, “a desordem das cidades e o caos urbano requerem (...) medidas mitigatórias ou compensatórias, através de práticas de planejamento, monitoramento

e controle da qualidade de vida urbana”. Essa é a concepção de sustentabilidade urbana, tão

forte que já fala num direito à cidade.

100

MILARÉ MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 346-347.

101 NOVAES, Artur C. Construção civil e preservação ambiental. O Povo. Fortaleza, 15 de outubro de 2011.

Opinião, p. 7.

102 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 7 ed.

Essa proposta aparece na Carta Mundial do Direito à Cidade, publicada em 2004, vinculada a movimentos sociais e a fóruns que debatem a temática, a exemplo do Fórum Social das Américas, realizado em Quito, e o Fórum Mundial Urbano, ocorrido em Barcelona, ambos no ano de 2004.

No preâmbulo da citada Carta103, o direito à cidade é definido como sendo:

o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social. Entendido como o direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado.

Na parte dispositiva da Carta há o detalhamento da cidade desejada, ou seja, aquela

“sem discriminação de gênero, idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando

a memória e a identidade cultural” (Art. I, 1).

Consta também do documento o compromisso com a garantia de direitos, inclusive a saúde ambiental, na medida em que estabelece a corresponsabilidade das cidades e das

autoridades nacionais, que devem se comprometer a “adotar medidas até o máximo de

recursos que disponha, para conseguir progressivamente, por todos os meios apropriados (...) a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais sem afetar seu

conteúdo mínimo essencial” (Art. I, 3).

A emancipação da moradia adequada e da própria cidade sustentável, que garante o bem-estar coletivo, é uma tarefa a cargo do Poder Público, com a participação e a colaboração da sociedade, e que possui forte dependência em relação à dimensão normativa.

No próximo capítulo, trabalha-se a aproximação entre os elementos urbanísticos e ambientais na perspectiva jurídico-normativa, abrangendo a ordem jurídica internacional e o sistema normativo brasileiro, na intenção de construir um discurso propositivo em defesa da habitação urbana de boa qualidade.