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4.1 PLANEJAMENTO URBANO

4.1.2 Política de desenvolvimento urbano

A abordagem dos contornos da política de desenvolvimento urbano pressupõe, além de conceituá-la, apresentar-lhe os fundamentos e as características. Nesse sentido, é primordial, inclusive, reconhecer que essa é uma expressão plurissignificativa: afinal, o que é desenvolvimento urbano?

Pode-se afirmar que ela se traduz na fórmula constitucional que designa o Planejamento Urbano, com as respectivas idiossincrasias: a) imprescindibilidade num mundo em processo de urbanização; b) interdisciplinaridade no momento da realização; e c) instrumentalidade no plano do ser.

A silhueta cidadã da Carta Política de 1988, que se faz presente já no título dos princípios fundamentais, quando elenca a cidadania como um dos fundamentos do Estado (art. 1º, II), aparece também no capítulo da Política Urbana (art. 182 e 183). Naturalmente isso não de deu por uma dádiva dos constituintes, mas, sobremaneira, por força da mobilização e pressão da sociedade civil organizada, que impulsionaram a inserção da temática do desenvolvimento urbano no Texto Magno.

Colaboram com essa tese os dados de Marise Duarte188, segundo a qual ocorreu uma intensa mobilização de vários grupos sociais durante o processo de elaboração da atual Constituição. Esses grupos pretendiam inserir direitos e garantias na Constituição, como foi o caso dos setores ligados à questão urbana, que conseguiram apresentar uma emenda popular com mais de 130 mil assinaturas propondo um capítulo sobre Política Urbana.

Consciente da dimensão do problema e em função da pressão popular, a CRFB dedica um capítulo específico à política de desenvolvimento urbano (Capítulo II, do Título VII, arts. 182 e 183), atribuindo aos municípios a responsabilidade de executá-la com base em legislação nacional, determinando, desde já, o objetivo a ser alcançado: organizar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Discutindo o tema, Nelson Saule Júnior189 afirma que isso representou uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro ao se estabelecer, pela primeira vez, um capítulo específico sobre política urbana, contendo princípios, competências e instrumentos jurídicos e urbanísticos.

188 DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente e moradia: direitos fundamentais e espaços especiais na

cidade. Curitiba: Juruá, 2012, p. 93.

189

SAULE JÚNIOR, Nelson. Formas de proteção do direito à moradia e de combate aos despejos forçados no Brasil. In: FERNANDES, Edésio (Organizador). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 101.

Essa competência ficou a cargo dos municípios em função, sobretudo, da grande diversidade econômica, demográfica, histórica e cultural existente entre os mais de cinco mil municípios brasileiros, de forma que cada um prepara o respectivo Plano Diretor, atendendo ao interesse local, mas sem descurar das normas gerais estabelecidas pela União.

Além da interdisciplinaridade, como se abordou no item anterior, merece destaque a questão da participação popular na concepção, elaboração, execução e avaliação da Política Urbana. Com efeito, por se tratar de um assunto fortemente ligado ao cotidiano das famílias, essa participação assume papel decisivo.

São as próprias comunidades manifestando suas dificuldades e angústias, apresentando sugestões, elegendo as prioridades e fazendo as indicações para os investimentos públicos a fim de que garanta o cumprimento das funções sociais da cidade (morar, trabalhar, circular e divertir-se).

Essa foi outra razão pela qual a CRFB remeteu aos municípios a tarefa de promover o desenvolvimento urbano, uma vez que o poder decisório local está bem mais próximo da população, possibilitando que os anseios sociais possam ser canalizados e as políticas sejam formuladas em harmonia com os interesses da comunidade.

Todavia, isso se tornará possível somente com o fortalecimento da democracia participativa, que, segundo Paulo Bonavides190, é onde reside a chave constitucional do futuro no Brasil, pois ela faz soberano o cidadão-povo, o cidadão-governo, o cidadão-nação, o cidadão titular efetivo de um poder invariavelmente superior. Não haveria democracia sem

participação e “a solução de direito positivo para introdução da democracia participativa se acha na cláusula do parágrafo único do art. 1º da Constituição”, segundo o qual todo o poder

emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.

Compartilham desse pensamento Aline Nelson e Sérgio Alexandre191, que, ao abordarem uma perspectiva de cidades inclusivas a partir do planejamento e da aproximação entre a democracia e a cultura, propõem uma reforma progressiva para concretizar a distribuição igualitária de investimentos. Isso seria alcançável através de planejamento e de gestão pública democrática, mediante a abertura de novos espaços de participação democrática na gestão das cidades, inclusive com o uso da internet.

190

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 34.

191

NELSON, Aline Virgínia Medeiros; BRAGA JUNIOR, Sérgio Alexandre de Moraes. Democracia e cultura

no planejamento do desenvolvimento urbano. Revista Direito GV. São Paulo, vol. 8(2), p. 407-426, jul – dez

Ainda a propósito da indagação acerca de quem faz o Planejamento Urbano e do papel da participação popular nesse processo, é preciso perquirir os termos da atuação do Estado (como instância de poder, dotado de força e legitimado pelas instituições políticas e jurídicas) e da sociedade nessa construção.

Nesse aspecto, pode-se trabalhar a reflexão teórica proposta por Marcelo Lopes de Souza, que, sem negar a importância da atuação do Estado, aponta o viés filosófico da autonomia (individual e coletiva) como a melhor opção na busca pela cidade planejada192.

E o que alimenta seu discurso? A tese da autonomia, que pode ser: a) individual, consistente na capacidade de indivíduos particulares realizarem escolhas em liberdade, com responsabilidade e com conhecimento de causa; e b) coletiva, consubstanciada no consciente e explícito autogoverno de uma coletividade, com garantias político-institucionais que assegurem igualdade de chances de participação nos processos decisórios relativamente aos negócios coletivos193.

Nessa hipótese, há de se concordar com o autor, o Planejamento Urbano seguiria uma lógica diferenciada, em que os destinos da cidade não seriam definidos apenas em nível de gabinetes técnicos e pelos interesses dos governantes do momento, mas, também, a partir da visão, da participação e do querer de cidadãos conscientes e livres, que decidiriam a sorte de seus espaços, no que se refere, por exemplo, à moradia, ao trabalho, à circulação e ao lazer (funções sociais essenciais da cidade).

É preciso reconhecer que essa proposta metodológica elevaria cada vez mais o grau de participação popular no Planejamento Urbano, na linha do que propugnado por Bonavides acerca da democracia participativa, que faz soberano o povo.

Do ponto de vista prático, é inevitável lembrar o exemplo dos denominadas orçamentos participativos, como é o caso da experiência de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, e de outros municípios brasileiros.

Na capital gaúcha, esse modelo de orçamento participativo teve início no ano de 1989 e, desde então, ganhou notoriedade nacional, embora não tenha sido pioneiro, haja vista experiências anteriores acontecidas em Vila Velha, no Espírito Santo, em Pelotas, no Rio Grande do Sul e em Lages, Santa Catarina194.

192

Para uma visão geral do assunto, cf. SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, especialmente o Capítulo 10, da Parte II.

193 SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 6

ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 174.

194 Para consultar o rol de cidades que integram a Rede Brasileira de Orçamento Participativo, cf.

Para Marcelo Lopes de Souza195, trata-se de uma cogestão entre o Estado e a sociedade civil organizada com o fim de elaborarem a peça orçamentária, cujo sucesso teria influenciado outros municípios a adotarem o modelo, tanto em nível nacional quanto no exterior, citando a cidade de Montevidéu, no Uruguai, e comunidades francesas.

Então, sendo um dever do poder público e um direito da população, como efetivar o planejamento (ou política de desenvolvimento) urbano? Através do uso adequado de variados instrumentos, a depender da normativa geral e de cada contexto local, conforme se verá a seguir.

Essa abordagem, no entanto, deve ser precedida da análise do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano ou simplesmente Plano Diretor. Lembrando que, no âmbito local, é esse documento quem legitima a aplicação dos instrumentos previstos em normas gerais.