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A simples menção constitucional à moradia já é de extrema relevância para as famílias brasileiras, pois lhes confere ao menos a possibilidade de pleiteá-lo nas diversas esferas políticas federativas (União, Estados e Municípios), quer seja em nível administrativa ou em âmbito judicial.

Mas, a concepção mais precisa desse direito exige, dos estudiosos do tema, algumas reflexões, a fim de delimitar-lhe os contornos normativos. Por isso, o primeiro ponto de

abordagem consiste em contextualizá-lo na ordem jurídica (internacional e interna) e, ao fazê- lo, definir-lhe a natureza jurídica. Seria a moradia um direito humano, um direito fundamental ou ambos ao mesmo tempo?

Nesse sentido, as lições de Canotilho242 vêm a calhar. Esse autor, utilizando os critérios da origem e significado, explica que direitos humanos são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos, numa dimensão que ele denomina de “jusnaturalista-

universalista”, enquanto que direitos fundamentais seriam aqueles garantidos num espaço e

num tempo limitado, ou seja, vigentes numa ordem jurídica concreta.

Mais clara ainda é a distinção feita por Sarlet e Figueiredo243, no sentido de que os direitos humanos são aqueles assegurados no plano do direito internacional e os direitos fundamentais seriam aqueles consagrados no plano do direito constitucional de cada Estado.

Seguindo esse referencial, constata-se a existência do direito à moradia (ou à habitação) no sistema global e no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, cite-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos244 (de 1948), que relaciona a moradia ao direito a um padrão de vida que garanta o bem-estar pessoal e familiar,

consoante o disposto no art. 25, inciso I: “Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz

de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,

habitação...”.

Vale a pena lembrar que, na origem dessa Declaração, logo depois da Segunda Guerra Mundial (1938-1944), havia um sentimento de repulsa na comunidade internacional contra as mazelas perpetradas contra a humanidade durante esse conflito bélico, como o preconceito de raça e origem, com a consequente geração de refugiados.

Portanto, trata-se de um Documento prevendo direitos de liberdade, igualdade, dignidade e segurança pessoal que definem um padrão mínimo de qualidade de vida para as pessoas e, como visto, a moradia se insere nesse paradigma.

O que se confirma também no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, prevendo que “ninguém será objeto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada,

242

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 393.

243 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e

direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 13.

244 Sobre esses e outros documentos de proteção aos direitos humanos, cf. COMPARATO, Fábio Konder. A

na sua família, no seu domicílio...” (art. 17, I), e no Pacto Internacional de Direitos

Econômicos Sociais e Culturais245, cujo art. 11, I, aduz:

os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes [moradia], bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida.

No primeiro Pacto, observa-se a pretensão de impedir a ação arbitrária do Estado contra a segurança e o sossego no âmbito do lar familiar. Já no segundo, é perceptível a aspiração no sentido de que os Estados adotem ações concretizantes dos direitos sociais (prestações estatais), incluída a moradia.

O direito à habitação consta ainda da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial246, cujo art. 5º, “e”, III, estabelece que:

Artigo 5º De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos:

(…)

e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente: (…)

iii) direito à habitação;

Nesse documento, fica evidenciada a preocupação com eliminação da discrimanção em geral, ou seja, aquela decorrente de raça, de cor ou de origem nacional ou ética. Mas, ao prevê a necessidade de se garantir o direito à habitação, ambiciona a formação de um padrão mínimo de vida, o que pressupõe a garantia de moradia a todos igualitariamente.

A temática da moradia faz parte ainda da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher247, consoante prescreve o seu artigo 14, item 2:

Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdades entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular assegurar-lhes-ão o direito a:

(…)

245 Os textos integrais desses dois Pactos estão disponíveis na internet:

<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto1.htm> Acesso: 06 abr. 2013.

246

Texto disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/conv_int_eliminacao_disc_racial.htm> Acesso: 06 abr. 2013.

h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações.

Esse documento, de 1979, direciona-se para a proteção das mulheres que residem nas zonas rurais, mas, por analogia, é aplicável integralmente à proteção das mulheres que habitam as cidades. Não razão lógica para diferenciá-las quanto à titularidade do direito à igualdade e, consequentemente, de não sofrer discriminação pelo fato de ser mulher.

Enalteça-se, ainda, a intenção do documento em definir um padrão de vida adequado, reclamando direitos essenciais, como a habitação, o saneamento, os serviços de eletricidade, a mobilidade e a comunicação, num claro perfil jurídico-afirmativo. Na visão de Flávia Piovesan248 essa Convenção tem duplo objetivo: de um lado erradicar a discriminação contra a mulher (vertente repressivo-punitiva) e de outro estimular estratégias de promoção da igualdade (vertente positivo-promocional).

Ainda sobre a inserção da moradia na ordem jurídica internacional, constata-se que no âmbito do sistema interamericano a Convenção Americana de Direitos Humanos249 prevê o

direito à residência, o que faz nos seguintes termos: “Direito de circulação e de residência. 1.

Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e

de nele residir em conformidade com as disposições legais” (Artigo 22).

Essa Convenção foi aprovada na Conferência de São José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, tendo recebido adesão do Estado brasileiro em 1992250. No dispositivo acima aludido, a Convenção procura conciliar o direito dos Estados em definirem soberanamente os critérios de ingresso e permanência no seu território e o direito humano de qualquer indivíduo dispor de um local (casa, domicílio) para repousar e proteger-se contra agressões naturais ou artificiais.

Quanto ao reconhecimento do direito humano à moradia, outro aspecto normativo que merece registro diz respeito ao disposto na Agenda 21 (Eco 92)251, que aduz o seguinte:

7.6. O acesso a habitação segura e saudável é essencial para o bem-estar físico, psicológico, social e econômico das pessoas, devendo ser parte fundamental das

248 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8 ed. São Paulo: Saraiva,

2007, p. 464.

249

O texto dessa Convenção pode ser encontrado em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/oeasjose.htm> Acesso: 26 abr. 2013.

250 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva,

2007, p. 367.

251

USP. Biblioteca Virtual de Direito Humanos. Promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Table/Agenda-21- ECO-92-ou-RIO-92/> Acesso: 17 fev. 2013.

atividades nacionais e internacionais. O direito a habitação adequada enquanto direito humano fundamental está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Apesar disso, estima-se que atualmente pelo menos 1 bilhão de pessoas não disponham de habitações seguras e saudáveis e que, caso não se tomem as medidas adequadas, esse total terá aumentado drasticamente até o final do século e além. Portanto, quer seja no sistema global, quer seja no interamericano, a moradia é concebida como um direito humano, vinculado à dignidade humana e equiparado a outros direitos de grande relevância para uma boa qualidade de vida, como a privacidade, a liberdade, a saúde e a educação.

Além desses documentos de perfil mais geral, a ONU também protagonizou eventos e produziu documentos voltados especificamente para a questão da moradia adequada. Conforme demonstrado no capítulo terceiro, três documentos se destacam nesse sentido: a Declaração de Vancouver, a Declaração de Istambul e a Agenda Habitat.

Tais documentos se reportam a Assentamentos Humanos e têm como pressuposto essencial a necessidade de normatização da temática diante de um mundo em franco processo de urbanização.

Conforme abordado no citado capítulo (e sem a pretensão de repeti-lo), a Segunda Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II) discutiu, essencialmente, a temática da moradia adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos Humanos sustentáveis.

Ao produzir a Agenda Habitat, tinha como uma das diretrizes principais oferecer aos Estados um conceito de moradia adequada, que não precisa ser necessariamente numa casa própria, mas que deve ser, imprescindivelmente, num lar fisicamente estruturado e seguro, legalmente estável e ambientalmente saudável, nos termos do que se abordou no terceiro capítulo252.

Aliás, essa distinção entre propriedade e posse em relação ao direito à moradia é importante, razão pela qual será explorada adiante, quando se abordar a dimensão social do direito à moradia, cuja compreensão subentende a identificação das possíveis acepções do próprio termo moradia, aposto em vários dispositivos do Texto Magno. Essa pesquisa será objeto do próximo item.