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5.2 MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

5.2.2 Contextualização do direito à moradia

Partindo do geral para o particular, a ideia agora consiste em pormenorizar a aplicação dessas teorias especificamente do direito fundamental à moradia, cotejando-as aos aspectos normativo-constitucionais, às lições doutrinárias e, ainda, a precedentes jurisprudenciais. Na situação em análise, observam-se na doutrina diferentes categorias e dimensões que podem comportar o direito à moradia, surgindo a consequente necessidade de serem colocadas à prova essas reflexões.

Antes, merece ser dito que, no campo do Direito, as teorias são importantes para alicerçarem e consolidarem os institutos. Todavia, é imprescindível traduzi-las em linguagem simples e aplicá-las às situações práticas e cotidianas, do contrário ocorre o esvaziamento e a perda de credibilidade, quando então se passa a questionar qual a utilidade de uma determinada teoria.

No que se refere à questão da habitação, é possível extrair uma leitura constitucional viável do termo moradia, no sentido de que ele possui uma dimensão de trincheira em defesa da família, de forma a conter, entre outras coisas, a invasão domiciliar arbitrária dos agentes do Estado em buscas e apreensões ou mesmo de particulares em atividades de cobrança de dívidas, por exemplo.

Em razão disso, conclui-se que, para a classificação de Paulo Bonavides, bem como na de Ingo Sarlet, essa concepção de moradia se enquadra como direito fundamental de primeira geração/dimensão e, consoante a proposta de Dimoulis e Martins, insere-se na categoria dos direitos de resistência e na dimensão subjetiva dos direitos fundamentais.

Afinal, trata-se de uma posição jurídica de que dispõe o titular para defender a intimidade, a privacidade e o sossego no lar, que é reforçada pela inviolabilidade de domicílio, impondo ao Estado e às demais pessoas o dever de abstenção, de não retirar o direito de quem já o detém ou de impedir alguém de consegui-lo licitamente.

Essa questão é importante, inclusive, para se compreender que, independentemente do título de domínio ou até de posse, ou das condições estruturais, a casa (própria ou não, segura ou precária) está resguardada pelo manto da proteção constitucional da intimidade e da privacidade.

Sobre essa discussão, há uma posição bem demarcada por João Maurício Martins de Abreu269, que, analisando o discurso normativo vigente do direito à moradia, conclui:

269 ABREU, João Maurício Martins de. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática

não importa a espécie ou o meio pelo qual se acessa a moradia, se através da aquisição da propriedade, da locação imobiliária, “da compra da posse irregular”, da ocupação de áreas públicas ou privadas; a constituição da moradia, independentemente da espécie de moradia, implica, imediatamente, a atração de

todo o arcabouço normativo atualmente vigente em sua defesa – se legítima ou não,

é questão para cada caso concreto e suas circunstâncias.

Diante dessa constatação, já se pode afirmar que as famílias residentes em ambientes improvisados, como casas de taipa ou barracos de papel e lona dos assentamentos informais, têm a seu favor o mesmo direito de invocar a garantia fundamental da inviolabilidade de domicílio, como fazem os moradores da parte formal da cidade.

Mas, é igualmente possível se inferir da Constituição a existência do direito a uma posição jurídica subjetiva do titular, no sentido de legitimar-se a demandar do Estado um ambiente adequado para residir, constituindo-se, destarte, num direito a prestação. No caso, tem-se um direito social a ser concretizado por ação do Estado.

Sobre a inclusão da moradia como um direito social, a partir da Emenda Constitucional nº 26/2000, é pertinente o comentário de Ingo Wolfgang Sarlet270, para quem essa inserção apenas ratifica o que implicitamente já estava consignado:

tendo em conta a circunstância de que a moradia (...) guarda conexão direta com as necessidades vitais da pessoa humana (...) já se poderia (...) partir da premissa de que a nossa ordem constitucional vigente já consagrava um direito fundamental implícito à moradia.

Assiste razão ao autor, pois, na prática, não há como dissociar a existência com dignidade do direito a uma moradia estruturada, segura e saudável, precavida em relação às intempéries naturais (variação de temperatura, ventos, chuvas, alagamentos) e humanas (despejos, furtos e roubos).

Ressalte-se que, mediante a previsão dos direitos sociais fundamentais, a pretensão da Constituição é assegurar uma melhor condição de vida às famílias, sobretudo àquelas mais pobres, diante de um cenário de desigualdade material. O Estado tem o dever de, por exemplo, promover políticas que garantam às famílias carentes o acesso à moradia digna.

A esse respeito, mencionem-se o art. 6º, por força do qual se prevê o direito social à moradia, e o art. 23, IX, que estabelece a competência comum da União, dos Estados, do

normativo é o conteúdo da lei e as correspondentes diretrizes interpretativas abstratamente sugeridas pela doutrina jurídica e pelos órgãos autorizados a fazê-las, como o Comitê da Organização das Nações Unidas.

270 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

Distrito Federal e dos Municípios para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Isso traduz uma exigência no sentido de que todos os entes da federação devem implantar políticas públicas habitacionais que garantam uma moradia adequada, devendo naturalmente priorizar as famílias de baixa renda, que não podem adquirir uma residência diretamente no mercado.

Em cumprimento a essa diretriz, editou-se, por exemplo, o Programa Minha Casa Minha Vida, instituído pela Lei nº 11.977/2009, que tem como principal finalidade permitir que as famílias de menor poder aquisitivo também tenham acesso à moradia271, como será analisado adiante.

Aplicando-se essa noção de moradia às teorias acima referidas, tem-se que, conforme a doutrina de Paulo Bonavides, trata-se de um direito social, de segunda geração, a ser demandado ao Poder Público, que se obriga a garanti-lo perante os titulares. E, para Dimoulis e Martins, cuida-se de direito fundamental prestacional, também de índole social, que demanda atuação positiva do Estado no sentido de concretizá-lo, de modo a configurar uma dimensão subjetiva.

Considerando ainda o trabalho de Dimoulis e Martins acerca das dimensões dos direitos fundamentais, infere-se que a moradia, seja como categoria de resistência, seja como direito social (prestacional), também possui uma dimensão objetiva. Veja-se por quê.

Ora, uma vez a moradia positivada constitucionalmente como direito social fundamental, não pode mais o Estado retroceder e excluí-la da prerrogativa na ordem jurídica. Há, nesse aspecto, uma verdadeira competência política negativa, impedindo o retrocesso. E qualquer legislação com esse intuito pode ser, inclusive, objeto de controle abstrato de constitucionalidade. Portanto, ainda que não haja uma determinada violação direta e real a direito fundamental, os respectivos titulares têm a seu favor a garantia objetiva de proteção.

A propósito disso, existe no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, o Recurso Extraordinário 407.688-8-SP, no qual ficaram registrados elementos de aplicação prática dessa teorização.

O caso envolvia uma discussão se o direito constitucional social à moradia (art. 6º) impediria ou não a penhora de uma imóvel residencial de um fiador, solidariamente

271 Art. 1º O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à

produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais).

responsável pela execução de um contratado de locação, restando consignado no voto do Ministro Cezar Peluso272 que:

a regra constitucional [art. 6º] enuncia direito social, que, não obstante suscetível de qualificar-se como direito subjetivo, enquanto compõe o espaço existencial da pessoa humana, “independentemente da sua justiciabilidade e exeqüibilidade

imediatas”, sua dimensão objetiva supõe provisão legal de prestações aos cidadãos,

onde entrar na classe dos chamados “direitos a prestações, dependentes da actividade mediadora dos poderes públicos”.(os grifos e as aspas são do original). O Ministro foi acompanhado pela maioria dos membros daquela alta Corte, desprovendo o recurso e permitindo a penhora do bem de família do fiador, segundo uma compreensão de que isso não afrontaria o direito social à moradia, que são realidades distintas. Mas, em relação ao que se discute aqui, qual a lição principal que se extrai dessa decisão?

Sem adentrar no mérito da decisão, pode-se identificar, pelo menos, o reconhecimento daquela Corte quanto ao dever do Poder Público com vistas a implantar ações para assegurar moradia para as famílias de baixa renda, que ainda não têm acesso à habitação adequada. Essa é, portanto, a demonstração real da categoria social e da dimensão subjetiva do direito à moradia, que cria uma vantagem ao titular e pressupõe um agir por parte do Estado.

Do trecho “sua dimensão objetiva supõe provisão legal de prestações aos cidadãos” é

possível retirar, em princípio, a conclusão de que é incumbido ao Estado um dever de agir para concretizar direitos fundamentais. Mas, é igualmente factível se concluir pelo reconhecimento de um dever geral de tutela a esses direitos.

No que se refere à dimensão objetiva, vale salientar o que afirmado no quarto capítulo acerca do comando constitucional que lança aos municípios a missão de implantar a política de desenvolvimento urbano, direcionando-lhe, desde já, os objetivos: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182, caput).

Trata-se de uma espécie de dever de agir e, nessa ação, protegem-se direitos fundamentais, como a saúde da família em cidades saneadas ou mesmo o sossego e a privacidade do lar em domicílios juridicamente seguros, por exemplo.

Desse modo, o ente político local não pode se eximir dessa tarefa (competência negativa) e ainda se obriga a executar a Política de Desenvolvimento Urbano, de modo a

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688-8-SP. Michel Jacques Peron e Antônio Pecci. Relator: Min. Cézar Peluso. Brasília-DF, 08 de fevereiro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp> Acesso: 24 abr. 2013.

proteger direitos fundamentais. Essa é a dimensão objetiva, porque não se projeta o atendimento a pleitos, situações ou vantagens subjetivas (individuais ou de grupos específicos), mas de toda a coletividade.

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJRN) também há precedente do qual se infere a reconhecimento das categorias e dimensões dos direitos fundamentais.

No caso, o direito à moradia, na concepção de direito de primeira geração, de resistência contra o Estado, e na dimensão subjetiva, foi reconhecido a pretexto de respeitar o princípio da função social da propriedade urbana.

Com efeito, na Apelação Cível nº 2011.016497-5, Relator Desembargador Osvaldo Cruz, o TJRN vinculou moradia à dignidade humana e negou um pleito de desocupação de área verde na cidade de Natal273:

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ambiental. Apelação cível. Ação Civil Pública. Desocupação de área verde. Espaço ocupado ao longo de 30 anos com imóveis residenciais e comerciais. Omissão e desídia do Município em regulamentar a situação. Cobrança de IPTU relativo aos imóveis construídos em área pública. Sopesamento de princípios constitucionais no caso concreto. Prevalência da segurança jurídica, da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF), do direito à moraria (art. 6º, CF), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). Possibilidade de atender aos fins do meio ambiente ecologicamente equilibrado sem demolição das construções. Relativização do disposto nos arts. 37 e 225, ambos da CF/88. Dissonância com o opinamento do Parquet. Manutenção da sentença. Recurso conhecido e desprovido.

No caso, o Ministério Público Estadual propôs Ação Civil Pública contra o Município de Natal haja vista este está, no entendimento do Parquet, omitindo-se em coibir as invasões de áreas públicas e de áreas verdes no bairro de Potilândia e isso (confirmado na sentença de primeiro grau) promoveria uma verdadeira desapropriação da sociedade em benefício dos particulares que se apropriaram do patrimônio púbico, social, do patrimônio ambiental de todos os cidadãos natalenses e, de maneira surpreendente, permitiu a continuação dos invasores no local. Por essa razão, pleiteava a desocupação e consequente demolição das residências irregularmente construídas.

O Tribunal, como se depreende da ementa, julgou improcedente essa argumentação, ao fundamento de que era um espaço ocupado ao longo de 30 anos com imóveis residenciais e

273 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Apelação Civel n° 2011.016497-5.

Ministério Público e Município de Natal. Relator: Desembargador Osvaldo Cruz. Natal-RN, 06 de março de 2012. Disponível: < http://esaj.tjrn.jus.br/cjosg/pcjoDecisao.jsp?OrdemCodigo=0&tpClasse=J> Acesso: 24 abr. 2013.

comerciais, onde inclusive havia cobrança de IPTU relativo aos imóveis construídos em área pública.

Assim, realizando o sopesamento de princípios constitucionais no caso concreto, concluiu pela prevalência da segurança jurídica, da função social da propriedade, do direito à moraria e da dignidade da pessoa humana, relativizando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Aqui, é inevitável se reconhecer que o Tribunal, ao julgar dessa forma, enalteceu o direito à moradia, na concepção de direito de primeira geração, de resistência contra a intervenção do Poder Público, e na sua dimensão subjetiva, na medida em que valorizou a função social da propriedade e protegeu a moradia daquelas famílias historicamente instaladas no local.

Ressalte-se que, para minimizar os prejuízos ambientais, o Município de Natal deveria, então, neutralizar as externalidades negativas, a fim de reequilibrar o meio ambiente, mediante, por exemplo, a criação de novas áreas verdes na mesma região, além de ampliá-las noutras localidades, numa espécie de compensação pelos danos que deveria ter evitado, mas que não o fez.

Finalmente, deve-se consignar que, independentemente de categorias e dimensões, o mais importante é concretizar, ao máximo, os direitos fundamentais, incluindo o direito à moradia, mediante um conjunto bem articulado de políticas públicas de natureza socioeconômica e urbanístico-ambiental, conforme se verá adiante.