• Nenhum resultado encontrado

2.1 CONCEITO E RESGATE HISTÓRICO DA CIDADE

2.1.4 A precariedade em moradias medievais

Na perspectiva temporal, a Idade Média corresponde ao período compreendido entre dois importantes fatos históricos para a civilização ocidental: a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e a tomada de Constantinopla, que representou o fim do Império Bizantino, em 1453.

É preciso atentar, no entanto, para o fato de que a análise completa das condições habitacionais de todo o período medieval precisaria considerar as vicissitudes de um período histórico de aproximadamente mil anos (século V ao XV), o que poderia desviar o foco sintético deste capítulo.

A pretensão aqui é, portanto, bem mais modesta: apenas levantar dados relevantes sobre a condição de vida urbana nesse período histórico, especificamente na Europa, buscando compreender fenômenos que ainda estão presentes no atual estágio de urbanização mundial.

Antes de se fazer referência a determinadas condições de moradia urbana durante a Idade Média, faz-se necessária a própria contextualização da cidade no cenário medieval, procurando identificar as principais características sociais, econômicas, culturais e políticas do período, a fim de que se possam extrair lições que auxiliem na compreensão do todo.

37 HAROUEL, Jean-Louis. História do urbanismo. Tradução: Ivone Salgado. 2 ed. São Paulo: Papirus, 1990, p.

Em suma, propõem-se repostas para as seguintes indagações: como se organizava a sociedade? Havia mobilidade social ou prevaleciam os estamentos? Do ponto de vista econômico, como eram as relações de trabalho e produção? Havia comércio? E quanto à cultura, qual o papel da religião na formação dos costumes e valores? Por fim, sob o aspecto político, como se estruturava o poder: centralizado ou fragmentado?

A respeito do assunto, Cláudio Vicentino38 apresenta, didaticamente, um panorama da Idade Média, a partir do qual se podem colher vários apontamentos, como a caracterização do modo de produção feudal, expressão maior desse período da história do mundo ocidental. Entre os elementos mais importantes trabalhados pelo autor, destacam-se os seguintes.

Trata-se do período histórico milenar (476-1453), marcado pelo modo de produção feudal, também denominado de Feudalismo, compreendido como sendo a estrutura social, econômica, cultural e política que se edificou na Europa em substituição ao escravismo da Antiguidade Greco-Romana.

Do ponto de vista social, o Feudalismo se organizava em torno de duas classes, a dos senhores feudais (proprietários das terras) e a dos servos, produtores rurais que se obrigavam a prestar serviços aos senhores feudais e garantir-lhes o sustento. Como não havia a possibilidade de ascensão social entre elas, recebeu a nomenclatura de sociedade estamental.

Quanto ao aspecto econômico, a atividade era predominantemente agrária, menos comercial, autossuficiente (para subsistência) e amonetária, cuja principal relação de produção se baseava no trabalho com a terra, de onde os servos extraiam os bens necessários à sobrevivência deles próprios e dos senhores feudais.

No aspecto cultural, havia a hegemonia da Igreja e da Religião Católica, cuja ideologia exercia forte influência inclusive sobre o exercício do Poder Político, haja vista a teoria de que o poder de governar era dado por Deus e intermediado pelo Papa39.

Embora na Idade Média prevalecesse o estilo de vida e de trabalho no campo (modo de produção feudal), algumas cidades funcionam como centros de produção (para os artesãos) e de troca dos excedentes alimentares (para os mercadores), além de se constituir num espaço de refúgio e proteção (para as famílias). Sob esse ângulo de análise, não se alterou muito a concepção de cidade formada desde os primórdios da urbanização no Oriente Médio, bem como aquela configuração da Antiguidade Clássica.

Em relação a esse período, a partir da leitura de Vicentino40 apontam-se dois fatores importantes de caracterização da cidade. O primeiro diz respeito à ascensão dos comerciantes,

38 VICENTINO, Cláudio. História geral. São Paulo: Scipione, 1997, p. 107-163.

permitindo o surgimento de um estilo de vida urbano (renascimento urbano), de modo que no século XIV, em algumas regiões, metade da população havia se deslocado para atividades comerciais e artesanais, tipicamente urbanas. O segundo se traduz na edificação das muralhas circundando a urbe, que garantiam a proteção dos moradores, contra os chamados povos invasores (hunos, sarracenos, mongóis e turcos).

Surgem daí as expressões burgos (localidade) e burguês (morador), derivadas de

burgu, que, em latim, significa “fortaleza”. Cada vez que a cidade precisava se expandir,

erguiam-se novas muralhas ao redor das anteriores, formando uma série de anéis em torno do núcleo original.

Mas, para Benevolo41, os altos custos da construção de novos muros levaram à concentração populacional e predial, à compactação e até à verticalização das casas, como forma de aproveitar, ao máximo, o espaço interno do cinturão dos muros, em prejuízo do conforto.

Essa realidade automaticamente gerava consequências ambientais (externalidades) negativas, principalmente quando se pensa na dificuldade de iluminação e ventilação naturais no interior dessas casas, ou na sanidade e mobilidade no entorno dos domicílios.

No que se refere à moradia, Mumford42 relata que as casas tinham dois ou três andares, sendo construídas em fileiras contínuas, à base de paus, barro, pedras e tijolos. A cobertura em palhas, telhas ou lajes. As janelas eram, inicialmente, protegidas por folhas; depois, por pano, papel e, finalmente, por vidro, viabilizando a penetração da luz natural.

Se por um lado, essas fileiras contínuas se justificavam por questão de segurança e também de otimização dos espaços internos das muralhas, elas dificultavam a circulação do ar e potencializavam conflitos de vizinhança. Já o uso da palha e do papel representava, certamente, um risco constante de incêndio, o que comprometia a própria segurança da família.

Ao largo desse quadro, existia uma arquitetura da Idade Média, que, segundo Adhemar Marques43, foi marcada por dois estilos. O românico, caracterizado pela edificação de catedrais como fortalezas de Deus, à base de pedra, estrutura em paredes largas e pilares grossos, e o estilo gótico, notabilizado pela verticalidade e leveza das formas, inclusive com

40 VICENTINO, Cláudio. História geral. São Paulo: Scipione, 1997, p. 138.

41 BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Tradução: Silvia Mazza. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 270.

42

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução: Neil R. da Silva. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 308.

muitos vitrais. Ressalte-se que esses padrões arquitetônicos são historicamente vinculados à rica Igreja Católica e nem sempre ficaram disponíveis às classes mais pobres.

No que se refere ao conforto do lar, outra particularidade em moradias medievais é que algumas casas careciam de utensílios básicos, como forno, banheiro e espaço para cuidar dos doentes, no que eram compensadas por serviços públicos: forno comum, casa de banho municipal e hospital público44.

Portanto, durante o período medieval, a cidade se explica diante de fenômenos econômicos e sociais, resistindo à dispersão em direção ao campo. Havia vida urbana, estimulada pela produção artesanal nas oficinas e a respectiva comercialização, além da sempre presente preocupação com a segurança, ainda que em estruturas instáveis.

Já quanto às condições de moradia, as cidades nem sempre se apresentavam como suficientes para garantia de um padrão ou qualidade de vida, haja vista as precárias condições urbanístico-ambientais à época, considerados aspectos como iluminação, ventilação, higiene e estrutura das casas.