• Nenhum resultado encontrado

5.2 MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

5.2.3 Moradia e mínimo existencial urbano

A partir dessa formatação normativa, doutrinária e jurisprudencial é oportuno indagar- se acerca de uma possível vinculação entre o direito à moradia e a doutrina do mínimo existencial, mínimo social ou piso vital mínimo. É preciso questionar: viver sob um teto estruturalmente seguro, juridicamente legítimo e ambientalmente confortável compõe o mínimo necessário à sobrevivência digna? Enfim, é possível se falar em mínimo existencial urbano?

Essa análise de justifica face à relevância e atualidade da discussão em torno das exigências apresentadas ao Estado no que se refere à efetivação dos direitos sociais, entre eles a moradia, diante da histórica e retumbante alegação da escassez de recursos públicos para esse fim.

Alerte-se para o fato de que o direito à moradia digna se insere entre tais direitos, por força do que dispõe o art. 6º da CRFB, que o coloca lado a lado com outros direitos sociais de extrema importância, como a saúde, a educação, o trabalho, a previdência e assistência social, entre outros.

Essa compreensão fica ainda mais evidente que se verificam outros dispositivos constitucionais, como o art. 23, IX, atribuindo a competência comum a todos os entes da federação para desenvolver programas de melhoria habitacional e de saneamento básico, e o próprio art. 182, caput, sobre a política de desenvolvimento urbano para viabilizar plenamente as funções essenciais da cidade e garantir o bem-estar coletivo.

Porém, antes de se trabalhar essa possível vinculação entre moradia e mínimo existencial, convém esclarecer a origem, a função e o conteúdo jurídico dessa teoria no âmbito do sistema constitucional brasileiro.

De acordo com Andreas J. Krell274, a teoria do mínimo social é fruto da doutrina alemã pós-guerra, que tinha de superar a carência de direitos fundamentais sociais na Constituição da Alemanha, tendo amparo na tese da normatividade do texto constitucional.

Para o autor, a função da teoria consistia em atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público, nos casos em que a diminuição dos serviços públicos comprometesse a existência digna, de forma que abrangia saúde, alimentação, educação básica e garantia de moradia.

A propósito dessa inserção da moradia no mínimo existencial, Fiorillo275 se refere ao piso vital mínimo ao abordar a tutela constitucional da cidade no âmbito do meio ambiente artificial (natureza jurídica ambiental da cidade). Para o citado autor, os espaços habitáveis pela pessoa humana devem ser entendidos em face do que ele denomina de piso vital mínimo, ou seja, moradias que garantam o asilo individual, a intimidade, a vida privada e a organização familiar.

De forma categórica, Ricardo Lobo Torres276 afirma que “há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que

ainda exige prestações estatais positivas”. Dessa concepção, infere-se o caráter negativo,

274 KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos

de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002, p. 59-65. Também sobre a moradia no mínimo existencial, cf. SARLET, Ingo Wolfagang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 365.

275 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Direito a cidades sustentáveis no âmbito da tutela constitucional do

meio ambiente artificial. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Estado de direito ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 277-278.

276 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito

defensivo ou de resistência desse direito, bem como a sua natureza positiva ou prestacional, dependente de ações, programas e políticas públicas habitacionais.

No âmbito do sistema jurídico brasileiro, a garantia desse mínimo existencial resulta dos valores constitucionais essenciais, particularmente aqueles que dizem respeito à dignidade da pessoa humana, que se constitui num dos fundamentos republicanos277, e que se desdobra em vários princípios, tais como a liberdade, a igualdade, a segurança, a intimidade e a integridade corporal.

Para Ricardo Lobo Torres278, embora não exista uma dicção constitucional expressa ou um conteúdo específico a esse respeito (incógnita variável), o mínimo existencial abrange qualquer direito essencial e inalienável, que supere, por exemplo, a pobreza absoluta.

E as bases para essa compreensão residem, segundo esse autor, nos princípios constitucionais, entre eles o da igualdade, o da dignidade humana e a própria cláusula do Estado Social de Direito, competindo ao trabalho pretoriano construir, paulatinamente, esses contornos.

A esse respeito, cite-se que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.768, a Ministra Relatora Carmem Lúcia Antunes Rocha279 se referiu ao conceito de mínimo existencial como sendo:

o conjunto das condições primárias sócio-políticas, materiais e psicológicas sem as quais não se dotam de conteúdo próprio os direitos assegurados constitucionalmente, em especial aqueles que se referem aos fundamentais individuais e sociais ... que garantem que o princípio da dignidade humana dota-se de conteúdo determinável (conquanto não determinado abstratamente na norma constitucional que o expressa), de vinculabilidade em relação aos poderes públicos, que não podem atuar no sentido de lhe negar a existência ou de não lhe assegurar a efetivação, de densidade que lhe concede conteúdo específico sem o qual não se pode afastar o Estado.

Aduz-se, destarte, que o respeito à dignidade humana pressupõe tanto a liberdade individual, quanto a igualdade perante a lei, limitando-se a atuação invasiva do Estado e dos particulares. Mas, reclama principalmente a garantia de estabilidade social, possível com a minimização das desigualdades socioeconômicas e revelável nas condições de sobrevivência feliz.

277 De acordo com o art. 1º, inciso III, da Carta Magna, a República Federativa do Brasil tem como um de seus

fundamentos a dignidade da pessoa humana.

278

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, nº 177, p. 29-49, jul./set. 1989.

279 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.768. Relatora: Min.

Carmem Lúcia Antunes Rocha. Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, Presidente da

República e Congresso Nacional. Brasília-DF, 19 de setembro de 2007. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3768&processo=3768> Acesso em: 16 jul. 2013.

E nessa estabilidade há de se inserir a moradia em cidades sustentáveis, como determina a CRFB (arts. 6º, 23, IX, e 182, caput), a demandarem políticas públicas habitacionais eficazes, que superem verdadeiramente as carências por domicílios, saneamento, mobilidade e serviços públicos básicos, concretizando o equilíbrio urbanístico- ambiental.

Conclui-se que o direito de viver sob um teto estruturalmente seguro, juridicamente legítimo e ambientalmente confortável compõe o conteúdo normativo do minimamente necessário à sobrevivência digna, integra o mínimo existencial, portanto. Assim, é legítima a referência ao mínimo existencial urbano, factível mediante políticas públicas habitacionais, como se verá adiante.